Assistimos ao filme desavisados. Estávamos no Instituto Moreira Sales, e a sessão, prestes a começar. O documentário japonês remeteu-me ao crepúsculo do meu pai, experiência da qual nunca me consegui desvencilhar. O martírio diário. A percepção de uma vida esvaindo-se paulatinamente. O enorme sentimento de impotência. E, após consumidos longos anos da minha juventude, o ápice da perda total. Restou-me então a cama vazia, próxima à enorme vidraça do jardim de inverno contíguo ao quarto.
O trabalho sensibilizador análogo é de Naomi Kawase e intitula-se "Carta de uma Cerejeira Amarela em Flor" (2003). O projeto iniciou-se com um pedido de Nishii Kazuo, renomado crítico de fotografia: “- Não tenho mais do que dois meses de vida. Você me filmaria até o meu último suspiro? Conto com você, Kawase.” E ela o fez com dignidade, acompanhando-o em seu trajeto final.
Justo pela remessa a lembranças doídas, sinto-me capacitada a falar dele. Ressalto a beleza e o respeito com que a cineasta registrou algo tão triste e desalentador. A filmagem no hospital, simples e arrastada, agrega à alma do espectador a experiência subjetiva e lenta do esperar pela morte. Da janela avistava-se uma cerejeira, único desvio da câmara além de algumas circuladas pelo quarto e duas externas para a realização de exames clínicos. Barulho de crianças, no pátio abaixo, intensificavam-se estrategicamente em determinadas situações. O fotógrafo estabelecia semelhanças entre a sua vida e a árvore, única visão do quarto: "Meu destino é cair como uma folha de cerejeira".
O comedimento comum aos orientais, assim como a melhor convivência com o silêncio, destacam a delicadeza com que Naomi conduziu os poucos diálogos. Neles, o respeito e a reverência por uma vida prestes a se esgotar. Não há fundo musical, nem efeitos. A câmara desliza pelo rosto de Nishii, seu corpo e suas veias. Afasta-se e retorna, como se os massageasse suavemente. Quando fecha em close, temos a impressão de poder tocá-lo. Num certo momento, Naomi afirma que não aprecia o termo "documentário" por remeter a registros mortos ou frios (não me lembro as palavras usadas, mas fica a idéia). Preferiria "memórias", por serem mais vivas e adequadas. Kazuo contesta, meio ao desconforto da fraqueza física, alegando que as memórias pertencem a um momento que não mais existe. Mortas, portanto.
"..O que se mantém em mente já está morto.
Memorizamos o que não existe mais.
Logo, é triste ter algo na memória.."
Enfim...Algumas das últimas cenas foram justamente a cama vazia e o enterro do fotógrafo. Só quem vivenciou uma grande perda (não lhe cerceado o direito de vivenciar fisicamente o grande ritual de passagem) tem a dimensão do que isso representa.
O documentário pode ser visto baixando o download abaixo (c/ legendas em português):
http://www.filmesdetv.com/tsuioku-no-dansu.html
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