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Contos-->Seja o Que For... Mas se For que Seja Amor -- 19/02/2003 - 21:52 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Seja o que For... Mas se For que Seja Amor.

Pode ser um princípio de manhã bordejando nas janelas do quarto. Um céu quase branco de nuvem, um desenho animado, tipo o Pernalonga, por exemplo, visto na cama porque faltar vontade para levantar. O que é que há velhinho? Um corte seco na garganta. Contra toda a falta de originalidade, salvaguardas ou redenção. Pode ser só um resto de sonho que se estende manhã adentro, um sonho suspenso como esses títeres antigos, movido por cordéis imaginários, invisíveis, um sonho dançando na imaginação turva desse fim de sono que resiste à manhã azul que vai lá fora. No fundo, é sempre desejo ou outra forma de perversão, tanto faz! A lembrança é só um jeito estranho de estar vazio, de se comprometer, de naufragar lentamente. Mas em manhãs assim, a lembrança é, sobretudo, um jeito de gostar de si mesmo antes de estar de pé. Uma dor de cabeça. Uma falta de perspectivas, plano, projetos, uma falta absoluta de graça ou leveza. Exceto o Pernalonga trapaceando com o Hortelino Troca-Letra. E a vida trapaceando com todo o mundo, dá no mesmo. A lembrança da moça no balcão, com um laço de fita vermelha no cabelo, perguntando o que vai beber, já não é a moça no balcão, com um laço de fita vermelha no cabelo, perguntando o que vai beber. É o corpo na cama e o vazio depois. A vida trapaceou com ela também. Melhor estar certo disso. Com sua vida suburbana e minúscula, numa casa com paredes caiadas de branco e cinco conduções até o trabalho, um bar de quinta categoria que vence a madrugada sem muitas convicções. Ela vai até as seis da manhã. Depois é seguir para a casa, dormir algumas horas e voltar ao centro, para o curso de corte, cabelo e manicure que ela faz no SENAE. A vida trapaceou com ela, é bom ter certeza disso. Tem horas que não dá pé. A vida, às vezes, trapaceia com a própria vida. O noivo é torneiro mecânico, trabalha em dois turnos, faz hora-extra, não participa de greve ou paralisações e já foi operário modelo três vezes. Uma vida igualmente suburbana e minúscula. Vão casar no fim do ano, então ela deixa o bar e abre um salão de beleza no bairro onde vão morar. O noivo não sabe que ela trabalha em um single bar e que, eventualmente, faz strip-tease pra uma platéia vaga e aquática, distraída com o próprio tesão. Eventualmente. Só quando falta uma das moças. O noivo acha que ela é dama de companhia de uma senhora idosa e doente, carcomida por um câncer e que chora e geme a noite toda numa litânia desesperadora. Aos sábados tem pelada no campo atrás da fábrica. Solteiros contra casados. O rapaz ainda joga no time dos solteiros. Até o fim do ano só, como gosta de dizer, com um meio sorriso de satisfação ou repulsa, ninguém sabe. Estão todos sozinhos. A solidão é uma forma de existir. A literatura, essa dor de cabeça, as lembranças e o Pernalonga na televisão são, igualmente, formas de existir. Simplesmente. Eles vão morar numa casa com dois quartos e banheiro dentro de casa. Não é um luxo? Felicidade é banheiro dentro de casa, um soco no estômago ou um corte seco na garganta. Depende sempre do ponto de vista ou da cor do céu quando amanhece devagar. O salão de beleza na frente, em um cômodo improvisado, e anúncio tingido no muro amarelo. A casa tem de ser amarela. Financiada pelo CDHU com o fundo de garantia de mais de quinze anos como torneiro mecânico de um operário modelo, que não faz greve, não participa de paralisações e acha que consciência política é coisa de quem não tem o que fazer. Além de desconfiar do sindicato. Nos domingos eles irão ao culto ouvir o pastor falar em iluminações, na salvação da alma e na necessidade de ser caridoso, contribuir com o templo, construir uma vida nova no paraíso prometido. Felicidade é um carnê da Igreja do Evangelho Quadrangular. Se der, passado os primeiros sufocos, compram um Fusca setenta e dois para visitar os pais, que moram longe, agora, do outro lado da cidade. Onívora cidade. Se conheceram ainda adolescentes, quando ele se mudou com a família para o bairro onde ela vivia com os pais e os cinco irmãos. Namoram desde os quinze anos e as famílias se conhecem e se admiram, todos trabalhadores, decentes, dignos. Namoram no sofá da casa dela, sob os cuidados do irmão mais novo. Mas ela não sabe que ele freqüenta uma mulata que faz ponto na 15 de Novembro com a Vieira Lima, perto do centro velho da cidade. Viver é o desconhecimento surdo das coisas. Pode ser um princípio de manhã bordejando nas janelas do quarto. O Pernalonga roendo sua milésima cenoura. Pode ser a lembrança da moça no balcão, com um laço de fita vermelha no cabelo, perguntado o que vai beber. Essa má vontade com a vida minúscula e suburbana que se ensaia lentamente, em movimentos pendulares, contra a parede bruta dos dias. Poder ser só uma vontade ordinária de ser feliz enquanto a vida vai trapaceando com todo o mundo, vai deixando seu rastro violento e amargo por aí. Isso porque viver deixa sempre um gosto acre na boca, mas isso ela não pode saber para que não se acabem algumas possíveis ilusões que ela ainda mantenha viva num lugar remoto e deserto de si mesma, de seu mundo suburbano, de seu emprego de balconista ou dançarina eventual, não importa, passando a madrugada perguntando para bêbados desesperados o que eles vão beber, limpando vomito no chão, na pia, nas mesas escuras, e se preparando para uma casa amarela, um futuro de cabeleireira, manicure e pedicure, pagando o carnê da Igreja do Evangelho Quadrangular, o IPTU da casa, a prestação do CDHU, água, luz, gás de cozinha e telefone, com um marido operário, torneiro mecânico, um fusca setenta e dois e tantos ressentimentos acumulados ao longo dos anos. Só não sabe porque amanheceu ali, naquele quarto estranho, com a manhã bordejando na janela e o Pernalonga na televisão. Só não sabe porque aceitou o convite de um estranho meio bêbado, meio distraído, que se sentia sozinho e não gostaria de passar a noite remoendo aquele vazio sentimental que o consumia. Gostou dos olhos de abandono dele, implorando atenção, cuidados ou um pouco de afeto que fosse. Implorando para que a noite não terminasse também na morte absurda do desejo. E se sentiu justificada. Bela. Agradável. Talvez se arrependa mais tarde, quando chegar em casa e se sentir deserta outra vez, seca, manipulada pela vida, parte de um movimento pendular que a impulsiona com força, violentamente, contra a parede bruta dos dias. Talvez se arrependa quando estiver no meio de uma aula sobre cutículas e cremes para os pés, ou durante um drinque noturno, não saberá ao certo qual, servido com desgosto, tédio ou raiva. Talvez nem se arrependa, porque não haverá tempo ou vontade para tanto. Agora, todavia, só não sabe ao certo o que é isso tudo, ou se isso tudo é alguma coisa além da manhã invadindo o quarto, da vida trapaceada, dos sonhos feito títeres, dançando sob cordéis invisíveis, do post-coitum triste. Não tem idéia e, quer saber: seja o que for... mas se for, que seja amor. Nada menos.
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