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Contos-->Conto kafkiano pós-moderno -- 20/02/2003 - 23:03 (Adilson do Rosário Toledo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CONTO KAFKIANO PÓS-MODERNO

Acordei cedo naquele dia quente. Não estava me transformando numa barata: não tinha as perninhas finas da barata, não tinha as costas envernizadas da barata, não tinha ranhuras na barriga, típicas das baratas. Eu não era uma barata para as pessoas olharem para mim com reticências, com nojo e aversão. Eu só estou doente.
Lembro-me com saudade do escritório de advocacia onde trabalhei por seis anos. Quantos amigos e festas maravilhosas — todo sexto dia da semana. Éramos muito unidos: a Mara, o Afonso, a Gica, dr. Olindo, o Grude, o boy da firma, e eu, o técnico em computação. Seis ao todo. Dr. Olindo, o dono da empresa, era como se fosse meu irmão mais velho; me levava para todos os cantos aonde ia, me cuidava com carinho todo especial.
Hoje ninguém quer me ver. Ao contrário, fogem de mim como o diabo da cruz. Ninguém se importa comigo. Nem mesmo meus pais, minha irmã ou a empregada da casa onde moro. Não abro mais a janela do quarto onde me enclausurei. Não quero ver a claridade do dia, pois ela me faz mal. Não quero barulho: nada de rádio ou TV.
Fiquei acostumado a não ter visitas ou alguém com quem conversar. Algumas vezes minha mãe entra em meu quarto e deixa um prato de comida em cima da mesinha onde escrevo. Da última vez que ela veio, não chamou por mim. Largou o prato e um copo d’água, suspirou baixinho como quem diz “este quarto está nojento”. Acredito que chorou um pouco. Minha irmã e a empregada entram com uma vassoura na mão. Quase sempre juntas, com medo, tal a aflição que lhes causo. Ontem ouvi que a empregada estava preocupada em se contaminar com minhas roupas ou através de alguma secreção. Meu pai, por sua vez, nem sabe que eu existo — nunca mais perguntou por mim depois que caí doente. Acho que acabei com o sonho de filho homem dele. Não o culpo. Também não quero receber mais ninguém.
Não quero ser visto como uma chaga morfética ambulante, como aconteceu da última vez em que fui à igreja — um a um, os ‘irmãos’ se afastaram, me deixando solitário. Só de raiva, tossi bem alto e repetidas vezes, espalhando esperdigotos por toda a sala (como se isso fosse modo de transmissão da doença que tenho). Não voltei mais à igreja. Não quero ser perdoado. Não fiz nada de errado. Tive azar nos meus prazeres.
Nesta casa, quando ouço alguém caminhando pelo corredor, rastejo rápido pra debaixo da cama. Até já me acostumei a dormir lá.
Percebi que nos últimos dias a metamorfose tem se intensificado. Não consigo mais lavar-me. A sujeira faz parte da minha pele, juntando-se às feridas que surgiram não sei de onde. Coça muito, mas parece que meus braços encurtaram para tocá-las. Esses dias caí ao chão e não consegui dar uma volta sobre meu próprio corpo para levantar-me. Deitado, só vi minhas mãos e pernas batendo desesperadas, como se fosse realmente uma barata deitada de costas. Ando cansado, respiração ofegante. Desanimado. Emagreci. De vez em quando tenho diarréias terríveis. Já tive infecção oportunista. Parei com os remédios. Entreguei os pontos. Afinal de contas, me transformei mesmo numa barata.
Adilson Toledo
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