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Artigos-->LEMBRANÇAS DA ESCOLA SÃO FRANCISCO DE PAULA -- 30/05/2016 - 15:38 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

LEMBRANÇAS DA ESCOLA SÃO FRANCISCO DE PAULA



L. C. Vinholes



Hoje, 29 de janeiro de 2016, como de costume acordei cedo e interrompi não só o sono, mas também o conto que, sonhando, escrevia.



O assunto não era, como não é, fictício, tratava do que aconteceu nos meus primeiros anos de escola e envolvia uma das minhas tantas companheirinhas na estreia do curso primário. Valendo-me não só da lembrança do que escrevi sonhando, mas também do que vivi na realidade dos anos do final da década de 1930, tentarei refazer a história. Primeiro contando um pouco do cenário e dos atores da época.



Depois de ser alfabetizado em casa, graças à prima Antônia Lessa Motta formada normalista no Colégio Assis Brasil e que, órfão de pai e mãe, fora, por bom tempo, criada por minha mãe, fui matriculado na Escola São Francisco de Paula, sita à Praça José Bonifácio, nº 53, em Pelotas, uma casa construída no lado oposto do da Catedral e pertencente à Sociedade do Santíssimo Sacramento. A diretora da escola era a veneranda Malú Mello, Maria Joaquina Gomes de Mello, uma das três irmãs que dedicaram suas vidas à educação e ao ensino. A mais moça, professora Sílvia, chegou a ser inspetora de ensino e a do meio, dona Raquel, foi conceituada responsável pelo Instituto de Menores do Bairro das Três Vendas, no final da linha do bonde que ligava aquela periferia ao centro da cidade. O número de alunos da escola não chegava a três dezenas e, assim mesmo, o pequeno pátio interno disponível não tinha espaço suficiente para todos na hora do recreio. O que era o maior barato no recreio, além das brincadeiras convencionais de pular na corda, sozinho ou com a participação de dois companheiros segurando e agitando as duas pontas, era olhar para a sempre fechada janela do segundo andar da casa vizinha e alimentar a crença de que ali, por detrás daqueles vidros e cortinas, vivia um fantasma. Para alguns dos colegas, meninas e meninos, era apenas uma brincadeira, mas para poucos era realmente uma história de terror. A gritaria era ensurdecedora quando alguém anunciava ter visto o fantasma. Não foram poucas as vezes que a turma era advertida pela diretora. Na realidade na casa não morava fantasma algum e seus proprietários residentes eram idosos da família de Carlos Assunção, uma das mais abastadas e conceituadas da região, mecenas que, financeiramente, auxiliava a escola e a Catedral por ocasião das quermesses e das festas religiosas, principalmente a do padroeiro da cidade, São Francisco de Paula. Na base de alguns dos vitrais das naves laterais da Catedral, com figuras e clássicas cenas religiosas, o nome dos Assunção figurava como doador.



Minha casa ficava a oito quadras da escola e o trajeto de ida e volta, duas vezes atravessando a linha dos bondes, era sempre feito de mãos dadas com a prima Antoninha, Nina, como, no diminuitivo carinhoso, era chamada. Uma vez por semana, saíamos da escola e entravamos na Catedral para, sentados nos bancos da nave lateral esquerda, aprender as orações e os ensinamentos religiosos, dedicadamente ministrados por dona Malú.



Não lembro exatamente que matérias eram dadas na escola por dona Malú ou Antoninha, mas recordo que, em casa, no meio da tarde, depois de almoçar, lá estava eu novamente em frente de Antoninha para fazer os deveres. Não era nada complicado nem demorado, mas servia – e esta era a intenção -, para, desde cedo, criar o hábito de levar a sério os estudos. Parece que ainda tenho na frente dos meus olhos o caderno de caligrafia, com as três linhas, as mais de baixo perto uma da outra. Não esqueci também a beleza dos cartões brancos retangulares que traziam impressos letras minúsculas e maiúsculas, figuras de coisas e de animais e seus respectivos nomes. O que eu mais gostava era o da vaca leiteira com um exemplar holandesa acompanhada da palavra vaca. Remetia ao ambiente bucólico de onde eu morara e o da fazenda dos tios onde passava as férias. Meu fim do dia terminava nas cantorias e brincadeiras nas calçadas e no meio da rua com os companheiros da vizinhança.



Voltando ao ambiente da escola, lembro que, passando pela porta da rua, se entrava diretamente na primeira sala de aula que tinha na parede da esquerda o mapa do Brasil, o crucifixo e um enorme quadro negro, na frente do qual estava o estrado com a carteira e a cadeira da professora. As carteiras dos alunos ficavam à direita e entre elas e o estrado o espaço por onde caminhávamos até passar pelo corredor que levava para os fundos da escola onde estava a segunda sala. O espaço do lado direito deste corredor era ocupado pelo pátio do recreio.



Por determinação da diretora – certamente para agradar minha prima -, eu ficava sentado bem na frente da mesa da professora, tendo a meu lado na carteira para dois, a Áurea, menina loira, gordinha, disciplinada, aplicada e sempre atenta com o que acontecia nos estudos e nas horas de folguedo. Aluna exemplar e de muitas companheiras. Naquela época, e mesmo passados muitos anos, nunca entendi porque eu não gostava de sentar ao seu lado, mesmo sem ter preferência por sentar ao lado de outra ou de um companheiro de travessuras. Ali não me sentia confortável. Na época, principalmente no primeiro ano de escola, ficar ao lado de Áurea era quase um castigo. No ano seguinte parecia que compreendera que nada mudaria e me tornei indiferente à presença da sempre comportada parceira.



No ano letivo de 1941, a situação tornou-se ainda mais difícil, embora com o passar dos meses, a dificuldade tenha terminado em caráter definitivo. Como todos os alunos já estavam grandinhos – como costumava dizer dona Malú -, foi decidido que a escola participaria de uma festa de encerramento, festa que seria realizada no auditório do Colégio Gonzaga, uma escola conceituada com mais de 1.000 alunos, com três andares construídos sobre pilotis, mantida pelos Irmãos Lassalistas, ocupando quase todo o quarteirão ao lado direito do da Catedral. Naquele auditório realizavam-se formaturas, palestras de pessoas importantes, peças de teatro, concertos e recitais e, até mesmo, projeção de filmes de mocinho, os far west, com bandido, índios e tudo. Nos últimos três meses daquele ano, chegou o momento de começarem os ensaios: declamações é o que não faltava, modesta apresentação de ginástica embora sem uso de uniforme adequado e um final com a cantoria de todo o corpo discente entoando a então conhecida melodia do cancioneiro popular, que, na versão da época, com duas estrofes dizia:



 



“O dia do meu casório...



” Tinha um festão danado



Olhava pra toda a banda



E não nos faltava nada



Tinha pamonha,



milho verde assado



Um leitãozinho



e um franguinho apestiado.



A corte do meu casório



Foi de vinte cavaleiros



Nóis ia cotando história



Por aqueles caminhos inteiros



De vez em quanto,



mão na algibeira



E a fumaça ia fazendo a fumaceira.



 



Os ensaios satisfaziam a todos, professoras, alunos e alunas, pais e alguns curiosos. Às vésperas da apresentação oficial caminhamos até o Gonzaga, subimos ao palco e, com um auditório vazio e escuro, repassamos tudo o que havia sido preparado. No dia seguinte, no horário marcado de uma tarde ensolarada, cada um de nós foi diretamente de casa para o Gonzaga e, assim que o sino do colégio anunciou que chegar a hora combinada, o espetáculo começou. Tudo estava bonito, um dos irmãos lassalístas ajudava na coordenação, o entusiasmo era enorme e contagiante até que, para mim, chegou o momento que nunca imaginará viver. Saímos por detrás dos cortinados nas laterais do palco, nos posicionamos em duas filas de frente para o público, os companheiros que sentavam lado a lado nas carteiras da escola ali também um acompanhava o outro. Áurea e eu, como sentávamos na carteira da frente, ficamos posicionados bem próximos à ribalta e assim que alguém desse o sinal combinado, a cantoria começaria. As vozes estavam afinadas e o público estava atento. Até que repentinamente, alguém sugeriu que Áurea e eu déssemos às mãos. Senti um calafrio, mas nada adiantou. O irmão lassalista que ajudava correu até onde estávamos, pegou nossas mãos, colocou uma sobre a outra e sussurrando disse: “de mãos dadas”. Era para ser obedecido. A apresentação começou, mas para mim não teve mais fim, parecia interminável, durando muito mais do que o tempo necessário para cantar as duas estrofes que todos apreciaram e aplaudiram com muitas palmas e o pior, com pedidos de bis. O bis foi atendido por determinação de dona Malú.



O encerramento do ano letivo e a expectativa com relação ao quarto ano foram marcados por uma cerimônia muito simples, em meados do mês de dezembro, com a presença dos pais, durante a qual foi entregue o último boletim, com as notas de cada matéria. Nele, no canto superior direito, atada com uma delicada fita, chamava a atenção uma pequena medalha, na forma de coração, com vinte pedrinhas imitando diamantes encrustadas nas bordas, tendo no centro a foto do busto de Santa Terezinha do Menino Jesus. Recebido o boletim fiquei por alguns momentos olhando o que passava a ser o primeiro documento – certificado, diploma, boletim, fosse lá o que fosse -, até então recebido dando prova da dedicação e dos esforços feitos como estudante. As notas eram: Comportamento 10, Atenção 10, Assistência à Missa 10, Religião 10, Português 9,7, Aritmética 7, Ciências 8,5, História do Brasil 10, Geografia 9, Desenho 10, Canto 10, Ginástica 9 e trabalhos Manuais 7. O boletim está datado de 6 de dezembro de 1941 e na assinatura da diretora lê-se: M. Lourdes Guimarães.



Terminadas as férias, em 1942 voltamos à escola com enorme alegria, pois sentíamos saudades dos companheiros do dia a dia. O ano transcorreu sem maiores novidades, parece que tudo que acontecera no ano anterior era repetido. Nos primeiros dias de aula sentimos a falta de alguns colegas que não voltaram e a presença de outros que começaram a serem conquistados e a conquistar. Áurea e eu continuávamos no mesmo lugar em convivência tranquila. Um único acontecimento ainda está fresco na memória: a visita à escola Dona Antônia. A manhã era de sol. Guiados pela professora Antoninha e pela diretora Malú, saímos da escola em fila dupla e, parecendo incrível, de mãos dadas até a esquina da Rua Feliz da Cunha, ao lado da Praça José Bonifácio, por onde passaria o bonde, adrede encomendado. Não tardou a ser avistado e a recolher a turma. No inicio do trajeto alcançamos a Av. Bento Gonçalves e, no meio da sua alameda de árvores frondosas, chegamos à esquina da Rua Barão de Santa Tecla. O bonde virou à esquerda e seguiu por oito quarteirões passando pela Praça Piratinino de Almeida com sua enorme caixa d´água de ferro, fabricada na Escócia, importada e montada em 1875. Ao alcançar a esquina da Rua Marechal Floriano, dobrou à direita, passou pela ponte do Arroio Santa Barbara que ainda existia e dobrou à esquerda, para dois quarteirões depois parar a poucos passos da escola construída em um canteiro estreito na Av. Saldanha Marinho. Compartilhado com os novos companheiros, foi servido um lanche com bolachas, refrigerantes e um pirulito em forma de peixe e houve cantoria, mas, como o pátio da escola era muito pequeno, não havia espaço para outros entretimentos. A volta foi por um caminho diferente. O bonde correu até a Rua Marechal Floriano, seguiu por ela até a estação central na Rua Lobo da Costa, ao lado do Mercado Público. Circundou a Praça Coronel Pedro Osório, desceu a Feliz da Cunha até a esquina de onde saímos e se despediu, badalando seu sino enquanto acenávamos satisfeitos, senhores de uma nova e inesquecível experiência. Desnecessário é dizer que, em todo o trajeto, além das constantes e reiteradas recomendações, a dona Malú fazia o papel de guia turístico, mostrando e comentando todos os pontos importantes da cidade, citando nomes e fatos. Uma aula de cidadania.



A escola na qual Áurea e eu passamos dois anos de nossa infância era muito pequena e simples, construída no início de 1900, de pavimento térreo com fachada de apenas 10 metros de largura, com uma porta de madeira maciça e duas janelas, janelas guilhotina, com vidraças e, cada uma delas, com duas folhas também de madeira pelo lado de dentro; a porta com dez almofadas e as janelas, na parte superior, com vitrais coloridos verde e vermelho, com desenho imitando pétalas de malmequer; a platibanda um tanto barroca, adornada com cinco balaústres sobre a porta e seis sobre cada uma das janelas, através dos quais podiam ser vistas as velhas telhas coloniais.



Em 1943, em pleno Estado Novo da Era Vargas, começou, de fato, uma nova fase na minha vida escolar. Fui matriculado no curso de admissão do Colégio Gonzaga, colégio para meninos. O admissão era o quinto ano primário, tínhamos uniforme que se parecia com o dos soldados, ginástica semanal, ordem unida por sargento do Exército nas sextas-férias à tarde, passeio coletivo nos finais de semana à Chácara do Gonzaga na periferia da cidade para jogar futebol, nadar, fazer piquenique. No novo ambiente e com a idade passei a não entender o porquê de não sintonizar com a presença de Áurea nas aulas do São Francisco. Sabia onde tanto ela quanto eu gozávamos de privilégios, um era o de, durante as aulas, estarmos sobre os olhares das professoras que, de perto, acompanhavam nosso desempenho, eu talvez por ser primo da Nina e ela por ser filha de conhecido e prestigiado professor.



O futuro sempre reserva surpresas. E no meu caso não foi diferente. No primeiro dia de aula no Gonzaga, mais de 40 alunos ocupando as carteiras esperavam a entrada do professor. Não tardou para que entrasse acompanhado do Irmão Diretor que fez a apresentação. Levei um susto quando ouvi o nome: Davi José Zanotta. Sim o pai de Áurea, minha colega do São Francisco. No correr do ano todos nós ficamos sabendo quem, de fato, era o novo professor. Além da capaz e experiente, justificando o que dissera o diretor, era severo demais. Qualquer deslize de comportamento ou atenção durante a aula, qualquer desobediência era o suficiente para merecer castigo, castigo que deixava a todos antecipadamente apreensivos. Um deles era mandar colocar a mão esquerda sobre a escrivaninha para receber a batida com a quina da régua de madeira; e o outro era mandar estender a mão esquerda fechada, para que ele pudesse apertar o dedo mínimo com toda a força possível. Nos dois casos, as dores sentidas eram diferentes, mas nenhuma delas facilmente suportável. Certa vez o professor Zanotta explicou que castigava a mão esquerda para que as tarefas para casa não ficassem prejudicadas com dores na mão direita.



E Áurea? Ela, como eu, seguimos nossos caminhos. Às vezes tenho a impressão de que não aproveitamos o tempo da nossa convivência escolar no tanto que poderíamos ter aproveitado. Certamente faltou experiência de vida, só ganha nos anos que se sucederam. Décadas depois, em visita a Pelotas, inesperadamente, encontrei-me com Áurea em rua próxima à Catedral, em companhia de sua irmã mais velha Zita. A conversa foi amistosa, como não podia deixar de ser, e chegou a ter certo ar de saudosismos dos tempos da São Francisco, com lembranças da infância incorporadas à nossa formação. Perguntas de um lado e de outro, respostas que encheram vazios.



Não foi por acaso que a personagem silenciosa em décadas passadas foi a protagonista do sonho de agora.


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