Usina de Letras
Usina de Letras
18 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62275 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10382)

Erótico (13574)

Frases (50664)

Humor (20039)

Infantil (5454)

Infanto Juvenil (4778)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140817)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6206)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cartas-->DEPOIMENTO: UM NOIVADO DESMANCHADO -- 10/12/2002 - 11:49 (ROSAPIA (veja página 2)) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DEPOIMENTO: UM NOIVADO DESMANCHADO

Eu tinha 19 anos quando o conheci. Foi tudo muito rápido. Eu me encantei com sua beleza e seu jeito delicado de me abordar. Ele se encantou com a menininha de colégio de freira, pura e casta. Ele não era tão puro e tão casto... Mas tinha que ser assim aquela que seria sua esposa, a mãe de seus filhos. O grande problema é que eu era pura e casta na cabeça dele, não na realidade. Mas gostei da idéia e sempre deixei que acreditasse que eu era o que não era. Então, nossas horas juntos eram um martírio para mim, pois ele queria avançar o sinal, exatamente o que eu desejava, mas não podia permitir. Acreditava no que falavam os adultos: se a gente facilitar eles aproveitam e depois não casam. Ora, eu queria era casar, não foi para isso que fui criada e cuidadosamente educada? Não era esse o destino de toda mulher? Aceitei oficializar o noivado. Não mudava muito mesmo..., ele na capital... eu no interior... Mas um dia, sem mais nem menos, acordei pensando naquela farsa. Pensei naquela e em outras muitas farsas. O desastre que fora o casamento de minha mãe, graças ao qual eu existia. E outros tantos desastres da família, alguns que chegaram às vias de fato, outros que eram mantidos, quase em segredo, entre tapas e beijos. (Esclareço: tapas na intimidade, beijos diante da sociedade.) Pensei no casamento de amigas minhas. Elas tinham um orgulho danado de terem se casado virgens. E viviam dizendo que seus maridos eram o máximo. Pensava eu: mas estão comparando seus maridos com quem? Perguntei a todas elas, nenhuma conseguiu disfarçar um sorriso desapontado. Pensei em amigas mais velhas - eu as tinha várias - que me diziam: "Meu casamento foi uma besteira. Dessas que a gente faz na adolescência." Adolescência, o tempo muito bem usado para se fazerem as cabeças indefesas. E elas se casavam pensando que estavam se libertando do jugo do pai. E eu fui vendo, aos poucos, que tudo era ilusão, engodo. As meninas eram criadas para serem submissas e viverem a serviço de um amo e senhor. Puras, lindas, perfumadas... A mulher, aquela em quem não se bate nem com uma flor... - Verdade: um poeta disse isso!

Nesse dia em que despertei disposta a acordar para a vida, me perguntei: é isso que quero? Imediatamente tomei papel e caneta, escrevi ao lindo noivinho e pedi que me esquecesse. Ainda mais com aquela angústia engraçada de pano de fundo: faltava-me coragem de dizer a ele: "Você não é virgem, não é? Pois eu também não sou!"... e derrubar para sempre o seu sonho... e o meu futuro reinado...

Confesso que tinha angústias a respeito, tinha medo no fundo de mim. Tinha uma consciência tênue de que era meu direito, estava fazendo uma opção de vida. Não terminava um noivado por que o noivo dera motivos. Os motivos eram meus: queria traçar meu próprio caminho. Isso não era comum. Mas sentia que eu podia fazer aquilo. Afinal: era a minha vida, não a vida de quem me dizia que aquilo era certo, que o casamento era a única opção para uma mulher. Eu não queria ser como as mulheres que conhecia. Mas também não conhecia mulheres vivendo como eu escolhia viver naquele momento. Claro que dúvidas me assaltavam. Conhecia mulheres que ficaram solteiras, em geral amargas, envergonhadas, com forte sentimento de rejeição. Delas se falavam a boca pequena: “ficou pra tia”. Elas eram motivos de zombarias, de cruéis comentários. Tive medo. Mas venci. Postei a carta.

Dias depois, tocou o telefone, era mamãe. Estava aflita. Ele a procurara, carta na mão, desorientado, nada fizera, o que será que eu tinha contra ele? Mamãe queria saber. Eu a preveni: "Mamãe, eu posso até dizer os meus motivos, mas acho que você não vai gostar de ouvir." Ela garantiu que ouviria com coragem, que eu dissesse, exigia. Pois bem, foi mais ou menos assim nosso diálogo:

Ela:- Diga, eu não vou ficar brava com você.

Eu:- Mamãe, eu pensei bem, não quero para mim a sua vida.

Ela:- Mas porque meu casamento foi ruim o seu não tem que ser obrigatoriamente igual.

Eu:- Mas também vejo os casamentos desastrosos da família. E os de minhas amigas (citei alguns nomes) que também são uma porcaria...

Ela:- Mas a vida é assim, minha filha. A gente não pode mudar as coisas.

Eu:- Não posso mudar as coisas dos outros, mas as minhas eu posso. A verdade é que eu não estou disposta a ter um dono nem a ser dona de ninguém. Não quero ficar em casa a serviço de alguém, nem quero que alguém fique trabalhando para me sustentar, o que lhe dará o direito de sentir-se dono de mim. E ainda aquele papel que atesta o casamento e que sempre funciona como nota fiscal... Desperta a necessidade que temos de posse. Autoriza o "Você é minha" e o “Você é meu”...

Ela (já vacilante):- Você está certa. Mas é só isso? Eu sinto que você está me escondendo alguma coisa (me conhecia bem aquela mãezinha adorada!).

Eu:- Tenho mais coisas a dizer, sim. Não estou escondendo, estou apenas tentando poupar você. Sei que não vai gostar nem um pouco de saber.

Ela:- Não importa se eu goste ou não. Quero saber, diga.

Eu:- Tá bem, depois não reclame... Eu tenho pensado muito... eu já decidi que não quero ser de um homem só, quero ser de todos que me quiserem e que eu quiser... Entende? Quero ser livre, mamãe, para amar, para viver. Não quero me fechar pela vida afora, limitando-me a uma casa, uma vida doméstica, um homem a quem eu deva esperar por obrigação, filhos que também terei mais por obrigação do que por amor. Quero fazer o que quero livremente. Se um dia quiser um filho, eu vou resolver com o pai que eu escolher. E pai não tem que ser obrigatoriamente marido... Se tiver uma casa um dia, será minha, conseguida com meu esforço. Quero estar livre para amar muito e ser muito amada. (E não me lembro mais tudo o que falei, disparei a falar, não sei por quanto tempo... quando mamãe queria me interromper, eu não deixava... nem percebi que suas palavras foram se enchendo de admiração...)

Ela (concluindo, para meu espanto):- Minha filha, você está certa. Se, aos 19 anos, alguém tivesse dito isso que você me diz agora, eu não teria me casado.

Eu (disfarçando a emoção):- E eu não existiria, né, mamãe?

Ela (piadista como sempre):- É verdade... pelo menos desta dor de cabeça eu estaria livre...

Eu:- Dor de cabeça por que?

Ela:- O que vou dizer para teu noivo? Ele está desesperado.

Eu (definitiva):- Pois diga que você não tem nada a ver com minha vida. E que ele me esqueça.

E, assim, terminei aquele noivado, uma armadilha da vida que desarmei magistralmente. Nunca me arrependi, podem ter certeza. Nem mesmo quando fui chamada de titia... risos... Nem com a cara de espanto da atendente do pediatra quando, ao fazer a ficha de minha filha, perguntou o nome do pai e eu respondi “não tem”. Ela me olhou tão espantada que eu lhe perguntei: “Minha filha, você nunca viu uma mãe solteira em toda a sua vida?” Nem quando, ao fazer ficha de crédito na Mesbla de minha cidade, fui barrada porque não tinha em minha casa um marido, nem um pai, nem um irmão... e precisei brigar, e briguei, e venci.

Muitas vezes pensei, é claro, o que teria sido minha vida se eu tivesse seguido o caminho que uma família generosa me traçara. Sei que escolhi o caminho mais difícil, o que eu deveria traçar sozinha, tendo que enfrentar momentos de escolha angustiante, tendo que resolver sozinha problemas que outros resolvem, bem ou mal, juntos: angústias repartidas, responsabilidades divididas. Assim como horas boas da vida, alegrias somadas. Confesso que tive medo ao escolher, pois sabia que enfrentaria o fantasma da solidão. E enfrento. Quantas vezes desejei, no inverno, ter alguém que me aquecesse. Tantos me aqueceram! Mas eles partiam e o frio retornava. Os que me aqueceram nunca foram meus, nem eu fui deles, exatamente como eu queria. Alguns amores ocasionais foram maravilhosos, mas me deram momentos, não a vida. Só que esses pensamentos sempre se chocaram com a minha opção de vida. E esta sempre estava acima de tudo. Por isso nunca me arrependi. Resta-me a glória de saber que eu faço minha história, como reclamar?

Só anos mais tarde eu mesma cheguei a perceber o alcance que aquele momento teve em minha vida. Foi quando escrevi, por volta de 1984-1985, o poema "O Sonho da Amélia ou A Consciência da Princesa". A vida de minha mãe, nesse dia, caiu como uma enorme pedra sobre minha cabeça. E eu já tinha um bom pedaço de vida vivida de acordo com minha opção. Foi então que percebi o grande lance que foi esse do noivado terminado "sem explicação, sem motivo aparente". Era a princesa começando a tomar consciência e tendo a coragem de abdicar de uma vida que se anunciava cômoda, ao lado de um homem bonito, delicado, atencioso, trabalhador, que nada me deixaria faltar, sendo festejada por uma prole alegre e barulhenta, com reuniões familiares divertidas e movimentadas a cada aniversário, a cada natal, a cada ano mais que se completasse de um casamento feliz. Feliz? Quem poderia garantir?... Tudo isso pintando a cena agradável de uma mulher sorrindo sempre, realizada! Certamente, nesse cenário maravilhoso, estaria uma mulher se perguntando: quem sou eu afinal? O que fiz de minha vida? Talvez chorando às escondidas, talvez frustrada, talvez ansiando por uma liberdade impossível. Não sei. Nem gostaria de saber.

Mas penso também em quantos “eles” e “elas” estão se sentindo perdidos numa solidão a dois, numa união que jamais o foi verdadeiramente, arrependidos de não terem pensado, lamentando por não lhes terem avisado antes. Quantos vivem uma vida vazia porque fizeram o que todo mundo faz. E se arrependem, mas sabem que é tarde, muito tarde.

Sei que fiz o que senti ser meu dever para comigo mesma. Fiz a minha opção pela liberdade, ao menos a liberdade que eu podia tecer com minhas próprias mãos. Era o caminho que eu via, e nele pus-me a caminhar.

Às vezes penso no noivinho abandonado, um homem a quem nunca amei. Era tão lindo! Não combinava comigo: baixinha, gordinha e feinha... E acho que isso me marcou para a vida toda: nunca consegui amar um homem bonito, eles não me atraem. Quando amo um homem bonito, podem crer, é amor virtual... Para mim, os feios é que dão tesão... E combinam comigo... E quando eu os amo, torno-os tão belos que até os que estão fora e que os vêem com isenção acabam se convencendo... Eles próprios se convencem rapidinho, pois em geral os chamo de lindos... e eles adoram porque se lembram da mãezona coruja...

Por falar em mãe..., tenho uma historinha dela para arrematar este depoimento. Separada de papai ela foi viver sua vida. Trabalhava muito mas também tinha seus passeios e seus namoros. Até que encontrou o homem de seus sonhos, com quem teve um “caso” que chegou a fazer “bodas de prata”... Um dia ele anunciou que queria se casar. Imediatamente ela respondeu que não, casar não queria. Ele, espantado, perguntou por que. A resposta estava pronta: “eu tenho que seguir o exemplo de minha filha!”... E mamãe morreu... amando e solteira!

E hoje estou aqui, livre, dona de minha vida, de meu pensamento, de meu coração, entregando este depoimento de um pedaço desta vida que é minha e eu a entrego a quem quero e quando quero.

Exatamente como escolhi fazer há quase meio século!


Leiam:
O SONHO DA AMÉLIA ou A CONSCIÊNCIA DA PRINCESA

Fale com o Autor




Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui