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Contos-->O velho Dodge fundiu-se de vez -- 27/02/2003 - 08:01 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O velho Dodge fundiu-se de vez
Que eu conheço o senhor Oscar Bernardes, faz anos; que fiquei bem perto dele em vida, deve ter sido no máximo duas horas; o que conversamos não passou de duas palavras ou frases. O intrigante é que em todas essas fases de contato ele deixou impregnado em mim o seu Ser diferente: negro, altivo, esguio, sorridente e cativante. Para ele — me parecia —, não havia tempo ruim, não tinha medo, de em meio à tempestade, esconder-se de raios, debaixo de uma aroeira a beira de uma cerca de arame. Talvez por isso, ouvi de alguém, ainda que em tom afetuoso, ser ele, em algumas situações, ignorante. É perfeitamente aceitável que alguém pense assim. Claro! Pela nossa própria condição de humano!
Inconfundível o senhor Oscar! — No ser, no fazer, no ir, no vir e no ficar. Inconfundível o senhor Oscar!
Se me pegava a caminhar nas calçadas do centro, sozinho, no meio daquele vai e vem de gente, a remoer desassossegos da vida, quem me despertava ou cortava os fios do meu pensamento? O Dodge do senhor Oscar? Se me pegava a tomar suco na Paulistana, absorvido, a mirar um ponto inexistente no vazio de parede entupida de cartazes de propaganda, indiferente ao barulho das arrancadas e freadas dos carros e ao burburinho da multidão que passava pela calçada bem atrás de mim, quem me fazia aterrizar e volver? O Dodge do senhor Oscar.
Só ele e Oscar faziam com que os meus sentidos: visão e audição disputassem entre si o interagir até que eles desaparecessem no meio dos carros ou dobrassem uma esquina da avenida.
Interessante! Quanto mais o tempo passava, mais eles chamavam a minha atenção. O velho Dodge exigia cada vez mais de suas bielas e de seus pistões, já desgastados. O ruído choco e balofo, próprio daquela máquina, com o tempo parecia mais choco. O sol, a chuva e o sereno haviam se encarregado de queimar a reluzente pintura. O molejo já não mais segurava com elegância a velha carcaça dartiana. Assim como nós mesmo que, com o tempo, perambulamos pelas ruas pigarreando, arrastando os pés, descorados e enrugados, às vezes até embaçados pela baixa estima. Mas o importante é que a máquina tinha nome: Charge RT, e que o dono renome: Oscar.
Parecia até que havia uma cumplicidade entre eles. E isso me pareceu tão verdadeiro que, quando um terceiro elemento entrou na parada, á máquina fiel a seu dono disse: Ô meu camarada! Agora não dá mais. O seu velho Dodge está para fundir-se”. Então, o substituiu por um Corcel.
As duas horas que fiquei perto dele, lembro-me que era de um domingo, pela manhã. Vestia terno cáqui e camisa cáqui clara. Comemoraria 50 anos de casado. Ainda ressoa aos meus ouvidos a sua fala firme, a sua prosa peculiar:
— Olha deixa eu contar para vocês. Cheguei para o meu pai e disse: pai, eu decidi que devo casar! O meu pai disse: “Você está certo disso? Então se você for casar, você escolhe a sua mulher porque mulher tudo é a mesma coisa..., há, há, há. E no que deu: uma mulher só, por 50 anos, e sem reforma. Casei três vezes com a mesma mulher. Aí eu digo. Meu bem! Tá pra nascer mulher para mexer comigo igual você mexe... há, há há... fala qualquer coisa minha santa...”
Depois da prosa, pôs-se a discutir com os amigos se cobra jararacuçu morde o próprio rabo e se escorpião envenena a si mesmo, reportando, naturalmente, às metáforas, até que foram interrompidos por um senhor que trajava calça azul marinho, camisa riscada de vermelho; usava óculos, chapéu e sapato preto. Ele se antecipou a dar as boas vindas:
—Mais você tá bonito Catalão! Tá cheiroso... — prossegue sem interrupção — Ô cabiceira, dá mais uma para mim. Cadê a verdadeira, aí? Não tem a verdadeira? Então traga a ...! Ô irmão, pega um banco aqui ô – Você tá muito educado. Nós aqui é que resolve o problema. Ô vendeiro, por gentileza, me dá uma latinha natural? Qualquer uma...
Súbito, confere as horas, dispensa a lata de cerveja e vai-se embora. O irmão, a quem ele se referia, era um negro bem apessoado que apareceu por lá, na roda.
A propósito, no dia 27 do mês passado, ele dispensou seu velho Corcel de lata, vestiu seu terno cáqui, pegou um corcel alado e partiu magistralmente de encontro à outra jornada ou quem sabe para o descanso eterno. Na sua despedida comparecerem deputados estaduais e federais, vereadores, representante do prefeito e os amigos da indefectível esquina. Bisbilhotei o livro de visitas e pude constatar o quanto era estimado pelas famílias tradicionais. São poucas as despedidas em que fui e vi o livro de presença quase cheio.
Pouco antes de partir, ele mesmo disse que, aqui, estava fazendo horas-extras. A sua face expressava felicidade. Eu não acredito que fosse uma felicidade preparada de propósito. É difícil enganar os vivos, imagine enganar os mortos.
Por último, conforme disse no início, conversamos pouco, e se bem me lembro, o que conversamos não passou de um até breve. E continua sendo. O nosso destino é único. Segundo ouvi dizer, este destino é a única verdade revelada aos terráqueos.

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