Hamilton Bonat - general do Exército e cronista
Quase toda a população de Lagoa Serena coloria o estádio municipal. Verde Futebol Clube e Esporte Clube Amarelo fariam a grande final. Na tribuna de honra, o presidente da Liga estava ansioso. Como as arbitragens eram alvo de constante crítica, escalara o juiz mais experiente, que valia-se da sua antiguidade no quadro para ter um salário de 39 mil dinheiros. Segundo ele, juízes tinham que ganhar muito bem para não se venderem. O custo era altíssimo. Poderia levar a Liga à falência. Mas, diante da ameaça de paralização do campeonato, ela tivera que ceder: o teto remuneratório pulara para $39 mil.
Quando o trio de arbitragem entrou em campo, 111 mil dinheiros passaram pela cabeça aflita do presidente: 39 do juiz e 36 de cada bandeirinha, que, recém-admitidos, recebiam um pouco menos. Raríssimas pessoas em Lagoa Serena, sequer os principais astros de Verde e de Amarelo, ganhavam tantos dinheiros por mês.
Os locutores das rádios, pouco versados em cerimonial, ficaram confusos ao referir-se ao juiz. Como o seu salário era muito alto, trataram de mostrar respeito. Uns o chamaram de “sua excelência”; outros, de “sua senhoria”. O uniforme era impressionante, todo preto para impor autoridade. Além do escudo da Liga, bordado na altura do coração, exibia outros penduricalhos: a logomarca de uma cerveja, de uma pizzaria e de uma casa lotérica.
Começo de jogo. Marcação cerrada. Muitas faltas. A torcida do Amarelo se impacienta. “Sua senhoria” (ou excelência?) só apita a favor dos verdes. O primeiro tempo termina em zero. Início da segunda etapa. O centroavante do Verde atira-se na área. “Sua excelência” (ou senhoria?) marca pênalti. É a gota d’água… A torcida amarela invade o campo. A verde não deixa por menos: invade também. Rapidamente, o juiz aciona a polícia e sai do campo escoltado. Que ironia: policiais, que ganham míseros mil dinheiros, protegendo um juiz de 39 mil dinheiros!
Nos jornais, o saldo da tragédia. Dois mortos e hospitais lotados. Cadeias abarrotadas. O juiz declara não se sentir responsável pela invasão do campo. Repórteres concordam e põem culpa na polícia.
O pior estava por vir. Vários torcedores acionaram a Liga e os clubes por danos físicos e morais. Ganharam. Verde e Amarelo fecharam as portas. A Liga ainda tentava sobreviver, até que o próprio juiz entrou com uma ação. Não satisfeito, disse que iria se aposentar, mas não para receber apenas 39 mil dinheiros. Queria mais. Que fossem incluídos os “extras” que deixara de lucrar como garoto-propaganda da cerveja, da pizzaria e da casa lotérica. Também ganhou.
Em consequência, a Liga faliu, o verde e o amarelo sumiram das ruas, o povão passou a torcer por times de outra cidade e o juiz, agora aposentado, faz questão de ser ainda chamado de “sua excelência”. Pelo medo que impõe, considera-se merecedor de respeito, inclusive da imprensa, sempre tão corajosa para criticar a turma de farda.