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Artigos-->O Paradigma da Transpoesia -- 14/04/2002 - 20:16 (Abilio Terra Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Paradigma da Transpoesia





Michel Camus





Nós não sabemos o que é a poesia. Os conceitos unívocos que antes eram chamados de "o mundo", "a realidade", "a natureza", "a poesia" tornaram-se ingenuamente reducionistas desde que os pesquisadores tomaram consciência da pluralidade dos mundos e das culturas, da complexidade crescente dos níveis de realidade e dos níveis de percepção que escapam à lógica aristotélica e à dialética binária. Assim, existe uma infinidade de níveis de verdade e de complexidade da poesia, uma verticalidade dos níveis de percepção da poesia, uma pluralidade de direções de pesquisa, uma multiplicidade de formas de arte poética.



Muitas correntes da poesia contemporânea são estranhas à alta poesia iniciática que foi a das origens no Oriente. Evidência que os adeptos do Grande Jogo perceberam com clareza descobrindo os versículos do Rig Véda. René Daumal e seus amigos descobriram uma via poética, mística e gnóstica através das culturas contraditórias do Oriente e do Ocidente, bem como através das ciências voltadas exclusivamente para o polo do Sujeito e as ciências voltadas exclusivamente para o polo do Objeto. Na França, como em outros lugares, ainda há poetas abertos à dimensão invisível do "sagrado de coesão", para distingui-lo, como fez Roger Caillois, do "sagrado de dissolução". Há poetas transreligiosos habitados por um sentimento do Absoluto: o poeta árabe Adonis, por exemplo. Poetas místicos ateus como Bernard Noël. Poetas do enigma com diversos graus de intensidade no regime do fogo. Buscadores da verdade aos olhos dos quais a poesia iniciática orientada para o conhecimento unitivo tende a religar a essência do homem à essência do universo. Poesia feiticeira (sorcière) e da origem (sourcière). Poesia despertadora. Só o poeta desperto sabe que os vivos têm a mesma essência que os mortos. No entanto, a poesia mais despertadora hoje em dia só está viva nas catacumbas de uma época assolada pela desintegração de todos os valores, pela degenerescência de todas as religiões, pela queda dos últimos mitos como o marxismo e a escatologia utópica da ciência.

Num mundo que perdeu todos os pontos de referência, aqui e acolá ainda há alguns heréticos portadores do fogo sagrado, alquimistas do silêncio e videntes. As mídias têm medo do silêncio. Insensíveis à alta poesia, os homens que vivem na superfície da vida são incapazes de pressentir o segredo do silêncio vivo oculto em todo silêncio de morte.



Norte, Sul, Leste, Oeste fazem parte da mesma Rosa dos Ventos e são gerados pelo mesmo centro enigmático. Toda verdadeira pesquisa poética, seja qual for a sua língua ou a natureza de sua cultura, é orientada para o centro e tenta se aproximar do sentido a respeito do qual o poeta Antonin Artaud exclamou: "Mas quem bebeu da fonte da vida?" Entre as vias de pesquisa que convergem, cada uma por sua própria via de passagem, para a inacessível fonte da vida, poderíamos chamar de transpoética a via transfiguradora do poeta das origens, orientado para o autoconhecimento e para a unidade do conhecimento. Meta que atravessa e ultrapassa a poesia.



Habitado pelo sentimento do Absoluto, o poeta da origem (sourcier) é, hoje, cidadão do mundo. Ele é transnacional, no sentido em que se sente relativamente ligado a vários níveis de realidade ao mesmo tempo, mas absolutamente ligado ao que os atravessa e ultrapassa. Ou seja, sente-se cidadão do cosmo, depois cidadão da Terra (o "planeta-aldeia" de Jacques Delors), depois europeu, depois francês, depois córsego, por exemplo. O essencial é não absolutizar nenhum nível de realidade. Infelizmente, o homem tem a triste tendência, dizia Kierkegaard com outras palavras, de relativizar o Absoluto e de absolutizar o relativo. Trata-se, ao contrário, de perder nossas identificações absolutistas para atingir o que René Berger chama de trans-identidade: conceito infinitamente aberto, análogo ao da identidade infinita de toda consciência desperta para a sua transcendência interior e para a transcendência do universo, portanto, para uma dupla transcendência a ser percebida unitivamente, É possível então ser ao mesmo tempo nacional por se pertencer a uma cultura territorial, e transnacional pelo seu espírito transcultural.



Ser transcultural é, em essência, não se deixar alienar por formas e crenças, por sistemas de pensamento e ensinamentos formais. É abrir-se para a transcendência do sentido do sentido em acréscimo à linguagem, abertura que o xamã mexicano Don Juan Matus chama de "conhecimento silencioso", inseparável de nossa luminosa ignorância. O poeta da origem tende a reconciliar os irmãos inimigos: a poesia e a filosofia. A visão transcultural da poesia é forçosamente transreligiosa; é planetária antes de ser européia, francesa ou outra; floresce no centro da Rosa dos Ventos; está aberta à todas as diferenças. Nossa identidade ocidental é ilusória, na medida em que não integra o outro? o oriental? que somos desde toda a eternidade. Nessa ótica, Rûmi é nosso mestre de vida, bem como Mestre Eckhart. Nossa compreensão de qualquer cultura diferente da nossa só pode resultar de nossa própria compreensão aberta para a identidade dos contrários. Nós, ocidentais, somos por essência, os alter egos dos orientais. Fazemos parte como eles do mesmo Nous transcendental, para fazer referência à visão, em Edmund Husserl, da intersubjetividade absoluta dos seres e das coisas regidas pela essência da vida.



Um dos axiomas do poeta da origem é o princípio absoluto da relatividade de toda a realidade e de toda a linguagem. Ele sabe que tudo é metáfora. Ele sabe que o paradoxo da linguagem poética é fazer alusão ao que escapa à linguagem. Esquecemos com freqüência que a linguagem é uma grande muralha da China. O poeta da origem a atravessa abrindo-se ao silêncio vivo. É assim que o poeta escapa da prisão da linguagem. "Não há poesia sem silêncio", dizia Roberto Juarroz. Essa presença infinitamente próxima infinitamente distante do silêncio vivo, pode ser indiferentemente chamada de presença do sagrado ou de consciência da transcendência imanente, no sentido de que a transcendência é imanente à própria consciência. É algo relativo ao segredo que a poesia iniciática tenta, pela impossibilidade, partilhar. É um segredo, por assim dizer, transpoético, pois atravessa a palavra e o silêncio, pois é um acréscimo à palavra e ao silêncio. Nenhum poeta jamais disse nem dirá o que esse terceiro incluído é. Mestre Eckhart faz alusão a ele evocando a essência de uma "terceira palavra", que não é dita nem pensada e que jamais é exprimida. O silêncio poético pode atingir, em sua vivência, um alto grau luminoso de silêncio. Somente esse silêncio pode nos libertar das opacidades e do peso da linguagem. Não se trata de um silêncio vazio, trata-se de um silêncio pleno e mesmo transbordante de sentido silencioso. Pouco importa o nome empregado para designar o abismo ou o buraco oculto na linguagem, em outras palavras, o não-referente que escapa a qualquer linguagem. O poeta da origem utiliza livremente as palavras como flechas atiradas em direção ao Impronunciável, em direção à Fonte inacessível mas inesgotável. Enquanto homem dos limites, só pode aproximar-se dela, sem jamais alcançá-la. Dizer "a Fonte" ainda é uma metáfora, a do enigma do "Quem?" e do enigma do "O que?", que são um único e mesmo enigma. O poeta é livre de fazer alusão a isso evocando o Sem-Nome, o Sem-Forma ou o Sem-Fundo. É paradoxalmente o Sem-Fundo que funda a unidade do conhecimento poético.



Vivemos num mundo em que a tecnociência gera uma tecnocultura que nada mais tem a ver com a agricultura da alma. Aos poderes exorbitantes dessa mundialização selvagem, que contra-poderes os poetas da origem podem opor? De resistência ao entrevamento mediático. De autotransformação em direção ao autoconhecimento. Nossa visão do mundo só pode mudar se mudarmos a partir do interior, se nossos estados de consciência evoluírem, conforme a palavra de Goethe, em direção a mais luz, Mehr Licht! Nesse combate titanesco onde a luz e as trevas se opõem, cada um é, conforme sua natureza, servo da neguentropia ou da entropia, da evolução da consciência ou de sua involução. Cada um é o instrumento consciente ou inconsciente de potências que ultrapassam seu entendimento. Os poetas da origem sabem de que lado combatem. O paradigma da poesia transcultural é, antes de mais nada, a necessidade do despertar do homem para aquilo que o fundamenta, para aquilo que o atravessa e para aquilo que o ultrapassa. O Manifesto da Transdisciplinaridade de Basarab Nicolescu, físico quântico, porém autor de Teoremas Poéticos, abre caminhos de encontro entre os poetas e os cientistas, entre os pesquisadores em ciências humanas e os pesquisadores em ciências exatas. É uma virada radicalmente nova. É o germe de uma nova aliança entre os pesquisadores e os criadores de todas as disciplinas, contra os predadores do poder. Um número crescente de astrofísicos e de físicos quânticos revelam-se poetas metafísicos. A aliança entre os buscadores da verdade, uns interrogando o polo do Sujeito e os outros o polo do Objeto, e suas interações transdisciplinares, podem constituir um inquebrável núcleo de luz contra o entrevamento programado dos predadores. O destino da humanidade não é jogado antecipadamente: cria-se a todo momento. Lançado no navio-terra numa fabulosa aventura cósmica, o fenômeno humano também possui em seu próprio coração a inesgotável potencialidade de despertar-se para a transcendência luminosa de sua própria origem interior. É a vocação dos poetas da origem fazer alusão a ela criando novos pontos de referência e novos sinais de orientação no caminho sem caminho do infinito interior.

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