A mulher olhou para o garçom e pediu mais um uísque. Era o décimo. Também pediu ao músico para interpretar Vinícius de Moraes. Ao som de "Eu sei que vou te amar" deixou a bebida descer sua garganta lentamente.
Uma lágrima voluntária deixou o olho esquerdo, traçando na maquiagem uma linha sinuosa, manchando o rosto de Albertina.
A lágrima lembrou um dia de chuva num chalé de Campos do Jordão. A chuva chegou muito rápido e ela estava acompanhada do namorado.
O frio da serra molhada empurrou os dois para baixo dos lençóis. Fizeram amor durante toda a tarde e depois foram tomar chocolate quente no café colonial.
Do café aos restaurantes, com vinho e massas. Depois outra noite de amor, uma outra chuva fina e a preguiça das férias.
Albertina lembrou das viagens. Não quis lembrar dos motivos que levaram à separação do casal. Mas a música de Vinícius lembrou de outros dias. O dia em que o noivo foi eleito vereador.
O excesso de trabalho. A chuva passou a ser motivo de preocupação. O homem tinha que atender os eleitores. Vieram as brigas, o ciúme.
Um dia choveu demais e o telefone tocou. Inundação no bairro Operário. Ele saiu muito rápido. Demorou muitas horas para voltar.
Trouxe até uma camisa manchada de sangue. Foi socorrer alguém e levou um corte numa tábua mal posicionada. Dizia que era corte de prego. Profundo, próximo da costela.
Sangrou muito. Foi para o hospital, mas infeccionou e morreu.
Depois surgiu a verdade. Foi atender uma eleitora. A mulher convidou para entrar. Um vizinho enciumado com o vereador achou uma tábua com prego. Sentou a madeira no homem.
Depois sobrou apenas a chuva. As lembranças do namorado. Toda chuva estimulava a bebida. No lugar do vinho o uísque. No lugar do chocolate a ressaca. No lugar da música romàntica a queda no bar todas as noites. No lugar do namorado um cachorro lambendo a boca de Albertina todas as manhãs.