[[ uns vícios poucos ]]
"Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças.
Sou o mais feliz dos homens vivos."
Henry Miller em "Trópico de Câncer"
"E até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando beijando o espaço"
Zé Ramalho em "Beira-Mar"
Ele mordeu os lábios. Seus olhos fediam. Bebeu do uísque, tragou do charuto. Espancou mentalmente a mesa, alisou o bigode, as sombrancelhas descabeladas. Fechou o leque de cartas na mão, afroxou a gravata, relaxou os músculos da perna. Disse qualquer coisa que nenhum dos outros pode entender - talvez falesse em uma língua própria de sua alma. Catou a carta entre o indicador e o polegar, jogou-a em direção às outras. Ela cortou o ar lentamente, desajeitada, patética. Caiu sobre a madeira fria, sobressaltada, dois-de-paus.
Primeiro o silêncio. Agudo. Meloso. Depois o murmurinho indiscreto e reticente pairando no ar. Ritmico. Navalha. Depois, ainda, o barulho das fichas sendo recolhidas, os sorrisos pretenciosos, as gargalhadas embriagadas, as pessoas indo embora, os carros desvairados, os roques lentos, uns vícios poucos, transas longas, assassinatos ao acaso, assaltos não premeditados, aviões caindo, bombas atômicas. O salão vazio. A lua. Estrelas, nenhuma. Na mão, trêmula, as outras cartas. Os olhos semicerrados. Catou uma: às-de-copas. Sorriu. Desabotoou a camisa. Catou outra. A língua tocou o céu-da-boca. Descalçou os sapatos. Tirou o óculos: às-de-ouro. Depois, o disparo.
|