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Contos-->Réquiem Para o Fim do Mundo. -- 10/03/2003 - 12:52 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Réquiem Para o Fim do Mundo.

Antes de mais nada, é preciso salientar que o mundo acabou. Irremediavelmente. Ora ou outra isso ia mesmo acontecer. O problema é que ninguém se deu conta. O mundo acabou semana passada e ninguém percebeu. Talvez porque não tenha feito barulho, foi um fim silencioso, pragmático, um fim do mundo inglês, britânico de tão discreto, mas acabou.
Era uma noite quente, dessas de fins de verão, quando o mundo acabou. Tinha chovido muito, mas o céu, entre cinza e tristemente longo... azul, dava sinais de trégua. O calor sufocante da noite. A alma úmida, viscosa. O verão de suores e líquidos, de corpo cansado, de odores vencidos, um sufoco triunfante, vencendo a resistência fria da noite. A televisão fora do ar, o quarto à meia-luz, um romance norte-americano de leitura há anos prometida.

A literatura feita uma dor... uma saída... uma dor... uma saída...

(Tender is the night.)

Nenhum jornal noticiou o fim do mundo. Tantas manchetes perdidas: “Mundo acaba sem glória!”; “Nenhum solenidade para o fim do mundo”; “Último adeus ao Mundo”; e toda essa subliteratura de camarinha. E eu, muito besta, esperando a pirotecnia, aquele show prometido por São João, um manipulador de almas prontas para a salvação. Sequer um fogo de artifício, morteiro de três tiros, cascata de luz, estrelas consumidas no interstício de um segundo. Absolutamente nada.
Um sujeito que mora na praça perto de minha casa acordou bem na hora em que o mundo começou a acabar, não deu muita importância e voltou a dormir. Disse que era só um barulhinho vagabundo, quase não dava para ouvir, de tão leve, e pensou que era uma viatura da polícia ou uma sirene de ambulância rasgando a noite bem longe, e que ele já estava cansado demais para perder tempo com esse tipo de merda. Agora, se o mundo acabou, bem feito para ele. Um troço que já vai tarde e que nunca fez muito sentido mesmo. Eu esperando, noites insone, esperando, e uma criatura mulambenta, estropiada, que não come tem mais de dez dias, deitado no banco da praça, viu o fim do mundo lá em cima e o que fez? Nada! Voltou a dormir.
Esperava a hecatombe. O holocausto terrificante do fim dos dias. E o mundo acaba ao redor, em silêncio, como um desses doentes terminais, carcomidos de dentro para fora, sem esperança, resignados, que suspiram sem voz e morrem passivamente, pálidos, com o corpo em frangalhos, os olhos fundos, braços e pernas esqueléticos, um desses doentes terminais consumidos pela doença, secos e amaldiçoados para sempre. O mundo acabou assim. Sem queixas ou protestos, mas sem ficha de internação ou seguro do INSS, que o mundo nunca deu a mínima para a seguridade social ou a previdência.
Acabou, simplesmente.
Não ruiu, não se despedaçou, não se dividiu, nada.
Acabou e pronto. Suspirou.
De meu quarto senti o fim do Mundo, mas não pude ver. A janela dá para um muro, o que condena cruelmente a minha visão. Panorâmica nenhuma. Queria tirar uma foto, fazer um VHS, registrar o momento, nem que fosse apenas o reflexo no muro, mas não há flash para o fim do mundo e, além do mais, minha máquina estava sem filme e a coisa aconteceu tão depressa que, quando percebi, o mundo havia acabado de acabar, desgraçadamente, sem alento ou aviso.
Só um vagabundo de praça meio que assistiu, meio que dormiu, não se interessou. Disse que já viu coisas piores: hanseníase, por exemplo, a pele descascando, virando farelo, um buraco no lugar do nariz; ou lábio leporino; escarlatina; derrame, boca torta, braço paralisado, perna se arrastando, essas coisas, e ia se interessar pelo fim do mundo?

Bêbado não entende de cenas líricas.
E o fim do mundo é uma cena lírica, silenciosa e grave.

Eu esperando os quatro cavaleiros. As trombetas. Os anjos descendo do céu com suas espadas vingadoras, separando o joio do trigo, levando para junto de si os eleitos, o destinados ao paraíso perdido.

Os anjos não entendem que todos os paraísos são paraísos perdidos. (A primeira parte é minha. A segunda, ou o efeito da expressão, é de Jorge Luis Borges)

São cumpridores da ordem estabelecida. E respeitam a hierarquia. Mas o mundo acabou rápido, num golpe certeiro, sufocado, abafado, sem gritos, admoestações ou lamentos, o que chamo da dignidade da coisa em si.
Semana passada, numa noite quente, diluída em recordações, em lamentos surdos, em expectativas ordinárias, sujas, tão estropiadas quanto a criatura mulambenta que assistiu vazia o espetáculo do fim, em sobressaltos e espera, o mundo acabou. A noite escorrendo lentamente no relógio, que, inconsciente, anunciava o fim próximo. O fim é uma viagem pelos ponteiros, pelos ponteios de uma melodia que se pega em nós...

Suave é a noite.

Acabou só, sem espectadores, numa sessão das dez, em representação solitária, ator único, as cortinas se fechando, vagarosamente, e ele saindo de cena.
Não houve aplausos.
Se não me engano, ventava um pouco...






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