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Contos-->O LADO CÔMICO DA SOLIDARIEDADE -- 10/03/2003 - 18:18 (José Eustáquio Martins) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O trabalho em banco impõe constantes transferências. Com isto, quem já trabalhou por mais de 40 anos conviveu, inevitavelmente, com culturas e costumes os mais diversos.

Em que pese os desconfortos naturais das transferências, ditados pelas mudanças de cidade e até mesmo de estado, não se pode desprezar a importante vantagem do acúmulo de experiências.

Nas cidades menores, onde as agências bancárias têm uma quantidade mais reduzida de funcionários, os laços de amizade entre eles são mais estreitos e marcantes. Em algumas delas, onde estive, a convivência no trabalho produzia uma sensação de família muito nítida. A fraternidade na equipe a tornava mais parecida com um grupo de irmãos.

Não eram raras as oportunidades de trabalho a noite. Muitas vezes durante toda a noite. Nessas ocasiões toda a equipe trabalhava, ou seja, ninguém saía antes que o último “irmão” terminasse o que lhe competia fazer.

Foi assim que, por volta das vinte e três horas de uma noite muito fria do mês de junho do ano de 1.966, concluímos o expediente de uma segunda-feira espremida entre um domingo e um feriado qualquer que recaiu na terça. Como de costume, saímos em bloco da agência. Éramos dez, todos jovens.

A fadiga produzida pela longa jornada de trabalho, o frio intenso típico do lugar e da época do ano, a fome e a perspectiva de feriado no dia seguinte foram a desculpa de que precisávamos para irmos todos ao bar da estação rodoviária. Tomar um conhaque para combater o frio e comer alguma coisa para combater a fome tornou-se um chamamento urgente e irrecusável. O bar da rodoviária era o único aberto aquela hora da noite e distava menos de cinqüenta metros da agência do banco.

O dono do bar, nosso antigo conhecido, que já havia nos servido, em outras ocasiões, centenas de garrafas de cerveja de que sempre precisávamos para combater o calor, nos tinha na conta de bons fregueses. Foi por esta razão que, ao mesmo tempo em que colocava a nossa disposição um litro inteiro de conhaque, colocava também um prato cheio de suculentas almôndegas que acabara de preparar, quentinhas.

Como era de se prever, antes da meia-noite já havíamos tomado todo o litro de conhaque e consumido todo o prato de almôndegas. Já não sentíamos nem frio, nem fome e nem cansaço, apenas estávamos todos um pouco alegres, fato que sugeriu a imperiosa conveniência de se abrir mais um litro de conhaque. Almôndegas já não eram mais tão necessárias.

Numa só rodada o segundo litro foi ao meio e nós, por nossa vez, já estávamos além do meio.

Em dado momento adentrou no recinto um conhecido de todos nós. Era um tipo popular, notívago e beberrão de cujo nome ou apelido não consigo me lembrar. Chegou em lágrimas e, soluçando, deu-nos a triste notícia: O João da Cota acabara de falecer.

O falecido era uma pessoa muito conhecida na pequena cidade. Atendia apenas pelo apelido de João da Cota. Acho que ninguém jamais soube seu nome verdadeiro.

No interior é muito comum as pessoas ganharem apelido ligando seu nome ao de pais ou esposos. Assim eu conheci, por exemplo, o “Zé da Maria do Nelson”, significando que a Maria era filha do Nelson e o Zé (José) era marido da Maria. Como o João nunca se casou, há o pressuposto de que sua mãe (que ninguém sabia dizer quem foi) teria tido o nome de Cota. Por isso: João da Cota.

Em circunstâncias normais, saber da morte do João da Cota, uma pessoa excessivamente humilde, não provocaria mais do que alguns lamentos sutis e convencionais, do tipo: “Faleceu mesmo!? Que pena! Estava doente!? Faz tempo que não o vejo! Era uma boa pessoa!”. Mas, no ambiente de confraternização que já se instalara, embalado por quase dois litros de conhaque, a medida da tragédia se potencializou e todos fomos acometidos de um incontrolável sentimento de solidariedade e pesar. O lamento foi geral e assumiu proporções inusitadas. As exclamações cresceram em número e intensidade. O pesar ficou estampado no rosto de todos de forma franca e etilicamente honesta. Algumas reações foram externadas assim: “Não acredito! Era a pessoa mais pura da cidade! Meu Deus, que tragédia! Já que vivia só, quem estará cuidando dos funerais!? Onde está o corpo? Onde ele mora? Alguns, mais “entusiasmados”, chegaram a enxugar os olhos tentando sufocar o choro teimoso.

A consternação foi tamanha que, de um momento para outro, todos estavam de acordo em que devíamos participar do velório aquela hora da noite. Em poucos minutos, com alguns telefonemas, já sabíamos onde ele morava.

Naquela cidadezinha não havia lugar longe, tanto que fomos a pé, todos juntos, à casa do falecido.

Na verdade, não era uma casa. Era um casebre. Um amontoado de tijolos sobrepostos de forma irregular pretendia ser as paredes cujo pé direito não media mais que dois metros. Estava localizado sob uma grande mangueira cujos galhos folhosos e abundantes roubavam muito da já pouca luz emanada do último poste de iluminação pública. Telhas mal assentadas sobre madeiras rústicas e frágeis compunham o telhado que podia ser tocado com as mãos. Para se comunicar com o exterior o casebre só possuía uma única portinhola, muito estreita, localizada no cômodo que poderia ser entendido como sala e cozinha, além de uma pequena janela, algo pouco maior do que um caixote de maçãs, localizada em uma das paredes do quarto de dormir. Uma minúscula abertura na parede que dividia a sala-cozinha do quarto de dormir, desvestida de porta e de portal, permitia a comunicação entre um cômodo e outro.

Entramos todos na sala-cozinha do casebre. Um arremedo de fogão, que consistia em duas pedras colocadas próximas uma da outra, ainda guardava os vestígios da última utilização, ou seja, entre as pedras um montículo de cinzas que encobria a ponta queimada de um pedaço de madeira. Sobre as pedras havia uma panela de alumínio enegrecida por dentro e por fora.

A mobília se resumia apenas em uma única e velha cadeira, colocada a um canto do cômodo.

O corpo do João da Cota estava exposto sobre um longo banco de madeira, no quarto de dormir.

As pessoas que o acudiram em primeiro lugar retiraram a cama do pequeno quarto substituindo-a pelo banco. Esta providência tornou possível que ele fosse velado por uma quantidade maior de pessoas. O quarto era retangular e o banco que suportava o corpo foi colocado no sentido longitudinal. Desta forma foi possível ser velado por até seis pessoas em pé, três de um lado do corpo e três do outro lado. Todos com os joelhos quase tocando o corpo.

O defunto já estava com a vestimenta definitiva. Uma calça xadrez apertada, provavelmente cedida por algum benfeitor menor do que ele, sem o cinto. Uma camisa branca de mangas compridas, bastante amarrotada e encardida, tinha os punhos desabotoados. Só mais tarde foi que percebi que não havia botões.

Como a maioria dos defuntos pobres, os cabelos estavam desalinhados e a barba crescida. Um pedaço de pano estampado e velho foi cortado em tiras que serviram para manter o corpo na postura tradicional dos defuntos. Uma das tiras, passando por debaixo do queixo tinha as pontas amarradas no alto da cabeça com a finalidade de manter a boca dele fechada. Outra amarrava os pulsos e servia para manter as mãos juntadas sobre o peito. Uma última amarrava os tornozelos, mantendo os pés juntos. Pequenos chumaços de algodão vedavam-lhe os orifícios do nariz e dos ouvidos.

A luz de uma única e pequena vela, caridosamente colocada na ponta do banco que sobrava depois da cabeça, coroava a visão ao mesmo tempo tétrica e ridícula do velório.

O vento frio que soprava por entre as frestas das telhas desnudas, o latido descompassado e triste de alguns cães na vizinhança, o fedor vindo de algum animal morto e em decomposição na redondeza e o ranger da pequena e única porta do casebre completavam o ambiente só possível de ser suportado quando o senso de solidariedade é estimulado por algumas doses de conhaque.

O receio, aqui entendido como sendo o degrau anterior do medo, já estava instalado. Mãos suadas se esfregavam, olhares desconfiados eram trocados ou evitados. O silêncio só não era completo porque havia um leve uivar do vento comprimido nas frestas das telhas e o latido dos cães. O efeito do conhaque ia diminuindo e, na razão inversa, o “receio” ia aumentando.

A solidariedade agora era mais dos visitantes entre si e menos para com o defunto. Todos precisávamos da coragem uns dos outros. Assim, com essa solidariedade mútua, e para amenizar o frio, houve um momento em que todos estávamos dentro do casebre. Alguns no quarto junto ao corpo e os demais na sala-cozinha

A morte do João foi ocasionada por uma doença cujo nome não consegui descobrir. A bem da verdade, acho que nunca procurei me informar melhor sobre ela. Sei apenas que provoca um certo inchaço do corpo depois da morte.

Foi nesse clima que os que não estavam no quarto ouviram e os que estavam ouviram e assistiram o rebentar da tira de pano velho que juntava os pés do João. Forçada pelo inchaço das pernas a tira se rompeu, as pernas ficaram livres e se abriram abruptamente num movimento que parecia de gente viva. Ao ruído da tira se rompendo seguiu-se um grito grotesco: “ELE SE MEXEU!!!”.

A pequena vela se apagou. Algo superior ao pavor dominou a todos num repente. Foi um desespero total. Dois ou três saíram pelo telhado. Um ficou entalado na pequena janela do quarto, aos gritos. Outros, não sei como, conseguiram sair pela portinhola, de tal forma espremidos que ela se quebrou. Um desmaiou e caiu atravessado sobre o defunto e um último quebrou uma das pernas ao enfia-la entre as pedras que pretendiam ser o fogão.

Os que saíram da casa não ficaram parados do lado de fora. Aos murmúrios exclamativos de “Ai meu Deus!!!” ou “Minha Nossa Senhora!!!”, dentre outros inintelegíveis, corriam pelo descampado olhando para trás de vez em quando. Como se estivessem previamente de acordo, todos se procuraram mutuamente e ficaram conjeturando a uma distância prudente do escuro casebre. O que estava com a perna quebrada e o que ficou entalado na janela continuavam pedindo socorro aos berros.

O efeito do conhaque desapareceu por completo. A solidariedade agora era totalmente voltada para os três que não conseguiram sair. O da janela, o desmaiado e o da perna quebrada. Era imperioso socorre-los. Esta imperiosidade fez com que o grupo assustado, bem devagar e muito desconfiado, fosse voltando ao casebre. A preferência do socorro recaiu sobre o que estava entalado na janela. Era o que mais sofria e era o mais fácil de ser socorrido, visto que podia ser ajudado do lado de fora. Alguns tijolos foram arrancados possibilitando que fosse puxado trazendo consigo na altura da cintura a frágil esquadria de madeira.

Alguns vizinhos ouviram os gritos e foram chegando preocupados, imaginando ter ocorrido uma grande briga. Uma lanterna que um deles trazia facilitou a reentrada no casebre e o socorro aos outros dois. Ambos foram cuidadosamente recolhidos e levados ao hospital no carro de um dos vizinhos.

Vela novamente acesa, defunto recomposto, cacos de telhas e de tijolos que caíram foram retirados possibilitando a continuação do velório apenas com o favor dos vizinhos.

Escoriados, sóbrios, sem graça e com a consternação de volta ao nível normal, cada um de nós tomou o seu rumo agradecendo o providencial feriado no dia seguinte.

Por um bom tempo o velório do João da Cota foi lembrado não pelo continha de trágico e sim pelo que produziu de cômico.

Sempre que conto esta história algum engraçadinho pergunta qual era a minha posição. Sempre menti dizendo que fui um dos primeiros a sair pela portinhola. Porém, agora, escrevendo, não tenho coragem de mentir. O entalado na janela era eu!.
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