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cronicas-->Sentinela -- 12/12/2002 - 17:58 (Valéria Tarelho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SENTINELA
Valéria Tarelho

Lembro-me, como se fosse hoje, daquelas duas meninas sentadas em frente de sua casa. A diferença de idade era pouca, deviam ter seis e quatro anos, quase nem se notava. Quem não as conhecia podia jurar que eram gêmeas: roupas sempre combinando, só divergindo na cor. Assemelhavam-se em tudo: do porte físico ao corte dos cabelos. Eram vistas sempre ali, passando as tardes à beira da calçada. Por este fato peculiar e rotineiro, eram conhecidas como "as meninas do portão". A rua era movimentada, mas naquele tempo, anos 67/68, não havia essa onda de violência que vivenciamos hoje. O único temor das meninas era "o homem do saco", uma invencionice de sua mãe (dos pais em geral) para mantê-las no limite entre o portão e a rua. Imagine se elas iriam arredar o pé dali quando havia um monstro daqueles à solta! A simples idéia do tal homem as aprisionando no saco, levando-as dali, para sabe-se Deus onde, era apavorante! Qualquer desconhecido que passava, especialmente catadores de lixo ou entulho, era "pernas, pra que te quero", um verdadeiro atropelo!
Havia personagens estranhos naquela cidade: Guarujá, no litoral sul de São Paulo, sinónimo de beleza e riqueza, em virtude das belas praias e, também, àquela época, por ser estància turística frequentada pela alta sociedade paulistana. Na verdade, a cidade é uma ilha (Ilha de Santo Amaro). Pois bem, aos olhos daquelas meninas, os tipos mais esquisitos habitavam todos ali. Sua pouca dimensão de mundo lhes dava essa certeza. Havia, na redondeza, uma mulher conhecida por "Maria Cearense" e um negro gigantesco chamado "Simplício", que eram seu suplício. Maria Cearense vivia alcoolizada, parecia um guarda-roupas ambulante: vestia toda a indumentária que possuía, umas peças por cima das outras. Só não vestia a roupa de baixo e, como tinha costume de levantar suas saias em plena
rua, imaginem o espetáculo! O show particular de Maria não terminava aí: era dada a escàndalos pitorescos, com direito aos mais "cabeludos" dos palavrões, que as meninas repetiam sem saber o significado. Não deixava de ser engraçada aquela mulher, mas sua história, se havia algum fundo de verdade no que diziam, era triste. Não sei detalhar o fato, mas contam que fora professora e que a morte da filha a deixou desequilibrada, daí a bebedeira e toda a degradação posterior. Simplício era um homem grosseiro em todos os aspectos, particularmente na feição do rosto, na altura (descomunal, na visão das meninas) e nos grandes pés, sempre descalços, cuja sola possuía rachaduras medonhas. Também sempre ébrio, perambulava acompanhado de seus cães. Nada de muito peculiar para narrar, apenas o arrepio na espinha que sentiam as meninas ao vê-lo, como se tivessem visto um ser sobrenatural (e que cheirava muito mal!).
A vida desfilava frente ao portão daquelas meninas e elas ali, espectadoras fiéis, acenando, sorridentes, para o tempo. Conforme cresciam, foram conhecendo alguns transeuntes pelo nome ou apelidos que inventavam. Gostavam de brincar de esconder atrás da mureta da varanda, de onde gritavam chamando a pessoa e, novamente, ocultavam-se. Havia um rapaz magro, com dentes salientes, que apelidaram de "coelho". E gritar "coelho" ao vê-lo passar, era uma festa! Ele também parecia se entreter com a brincadeira das meninas.
A certa altura, já mais crescidas, deduziram que o tal "homem do saco" não existia; era pura fantasia. E começaram a se soltar. A diversão predileta era correr atrás de bicicletas, dar impulso e pular na garupa pegando uma carona até a esquina, onde saltavam e retornavam para aguardar o próximo ciclista. Ninguém se importava, pois todos que faziam aquele percurso, vindos do trabalho, já conheciam as meninas de vista. O máximo de perigo que havia nessa aventura era o desequilíbrio da pobre vítima que conduzia a bicicleta. Tempos bons, de liberdade e ingenuidade!
Uma das meninas, a mais velha, era eu. Desde pequena sou assim: vejo a vida passar por mim, desfilando personagens, tirando outros de cena deste meu estático e imutável palco... Apenas atuo segundo o roteiro (rotineiro). Hoje, não fico mais no portão, nem poderia, em uma cidade onde qualquer descuido é um convite ao assalto. O "homem do saco" deixou de ser uma lenda urbana, cedendo seu lugar no medo popular para assaltantes, sequestradores, molestadores de crianças, traficantes...
Vejo a vida da janela e minha rua não é movimentada como aquela da infància. O quadro que se pinta à minha frente é belo, se levar em conta a natureza que o perfaz: tem tons do verde da fazenda adiante de minha casa e dos campos mais ao longe; o amarelo das flores das árvores, nesta estação se faz presente, pontilhando algum contraste em meio a tanto verde; o azul do trecho de céu que minha vista alçança é mais um matiz nesta minha parca aquarela. A monotonia se quebra no horário em que um ou outro morador circula pela rua. O silêncio é rompido apenas pelo o canto dos pássaros, que são muitos, e por meus soluços (que apenas eu ouço).
Para os moradores de minha pequena rua, devo parecer uma gravura na moldura da janela; pintura que já se integrou à paisagem. Estou inerte como as árvores e plantas destes campos. Entretanto, como elas, pulso vida. Sou feliz aqui, em família, mas além das divisas de meus muros, nesta cidade interiorana tão distante de meu mar, não vislumbro nada. Estou longe de minha ilha; longe de minha irmã, companheira de calçada que ainda mora à beira-mar; longe daquela menina do portão, cujas perspectivas futuras eram infindas.
Sou a mulher debruçada na janela; a sentinela de olhos marejados. A esta altura, bem mais próxima do fim, vou tocando a vida, indiferente ao seu chamado. Vejo-a apenas passar por mim sofregamente na rotina fatigante dos dias.
Voltei a fumar, para ter companhia.
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