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Contos-->9. OUVINDO PERFEITAMENTE -- 23/03/2003 - 07:00 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não se convencera jamais o nosso irmãozinho Edgar de que o fenômeno da tiptologia, a comunicação dos espíritos por meio de ruídos ou pancadas, fosse tão disseminado quanto os historiadores afirmavam ter sido durante os meados do século dezenove.

Independentemente do fato de ser espírita convicto, de freqüentar as atividades do centro religiosamente quatro vezes por semana, de ouvir as confissões dos sofredores arrependidos nas sessões de desobsessão, de escrever mensagens comoventes de saudosas criaturas do etéreo, Edgar, sempre que se via diante do tema, lançava seu desafio:

— Vocês sabem que admito muitas formas intelectuais de ocorrências mediúnicas, porém, as correspondentes aos efeitos físicos ou materiais vão ficar de quarentena para minha crença metafísica.

Queriam saber a que vinha a expressão “crença metafísica”, mas a sua costumeira resposta vinha na ponta da língua, parecendo até que o provocavam de propósito:

— Vocês entenderam. Não queiram complicar. Se eu acreditasse nessas descrições, teria uma crença física. Como não acredito, a minha crença deve ser metafísica.

E manifestava, sorrindo, inteiro agrado pelo interesse dos parceiros.



Certa noite, um palestrante convidado trouxe a novidade das demonstrações mediúnicas. Chegou bem cedo e abriu as dependências todas, na companhia da zeladora, que contaria mais tarde que o homem parara alguns minutos, imóvel, em cada sala, como que rezasse. Disse mais: que levara umas folhas compridas de espadas-de-são-jorge e que ficara batendo com elas sobre cadeiras e mesas.

Quando Edgar chegou, logo foi chamado à sala da diretoria onde se reuniam alguns membros e foi posto a par do estranho procedimento. Os dirigentes estavam meio atônitos, com medo de que a exibição puxasse para o candomblé ou, no mínimo, para a umbanda.

Edgar foi taxativo:

— Deixem comigo. Não sou eu quem tem afirmado que os tais efeitos materiais jamais existiram? Pois, se houver fraude, estarei preparado para contra-atacar. Quero ver se chegou a hora da minha conversão para a crença física...

Não pôde prosseguir porque apareceu o homem, solicitando permissão para ocupar uma das salas: precisava concentrar-se para o desforço mediúnico.

— Os senhores devem ter reparado que reservei a primeira fileira de cadeiras no auditório. Normalmente, seriam ocupadas pelas pessoas que desejam ser as primeiras a tomar os “passes” dos médiuns. Essas vão arranjar-se a partir da segunda fila. O que eu vou pedir é que me coloquem, nos lugares reservados, jovenzinhos de dez, onze, no máximo, de quatorze anos. Para quem leu Kardec, não estou pedindo nada de excepcional, pois é sabido que, nessa idade, há maior cessão de fluidos e energias para a realização dos fenômenos físicos.

De seu lado, Edgar bem que se lembrou de várias leituras em que tal assertiva se fizera. De qualquer modo, quando pôs sentido nos acontecimentos, o homem desaparecera da sala, levado pelo próprio presidente do centro.

Faltava ainda meia hora para se dar início à palestra, de sorte que foi fácil atender ao pedido do palestrante.

Devido ao tema inusitado, o salão estava com os seus cento e poucos lugares ocupados dez minutos antes da abertura dos trabalhos, de modo que foi preciso improvisar assentos para a acomodação de todos, com as cadeiras e bancos das salas de estudo e do pátio.

Precisamente às vinte horas, o palestrante, todo vestido de branco com um cinto prateado a prender-lhe a longa bata, adentrou no salão, causando admiração e surpresa por tão inusitada presença.

Com um gesto, pediu a palavra, enquanto o contra-regra fazia desaparecer os sons da “Primavera” de Vivaldi.

Edgar mexeu-se na cadeira, atrás da longa mesa colocada sobre o palco. De onde estava podia enxergar o homem de corpo inteiro, apesar de vê-lo quase de costas.

À fala inicial, emitida em voz branda, sem o artifício dos alto-falantes, o crítico se deixou embalar pela extraordinária simpatia daquela melodiosa alocução:

— Que Deus nos abençoe, nesta gloriosa noite de reunião, auxiliando-nos com o envio de seus ilustres mensageiros, potentes para dominar os espíritos que irão ceder seus fluidos, com o fito de movimentar fisicamente os objetos ou oferecer outros fenômenos de natureza material. É preciso saber que tais sessões foram muito comuns na época de Allan Kardec e que exigem muita concentração do auditório, para o que eu peço que me acompanhem num pai-nosso apenas sussurrado.

De fato, quem estivesse no corredor da entrada mal poderia ouvir todo o povo recitando a prece, durante a qual o expositor, de cabeça abaixada, erguia a mão direita, como a manter o silêncio que se estabeleceria em seguida.

Edgar começou a sentir um certo mal-estar, como se a atmosfera se impregnasse do suave odor de alfazema.

O da toga ergueu a outra mão e, ainda com voz baixa, prosseguiu:

— Meus irmãos, estou sentindo a força de nossos guias. Pedem-me eles que lhes diga que estão transferindo para cá os perfumes mais doces que se possam produzir na face da Terra. Estão dizendo também que nem todos vão reconhecer o odor, porque para cada um haverá um aroma diferente.

Edgar concentrou a atenção no público e percebeu que a respiração de muitos crescera a ponto de provocar pequena perturbação auditiva. Mas isto durou pouco tempo. Logo estava o orador a explicar:

— Não se assustem mas muitas flores serão depositadas nos colos das senhoras, transportadas para cá mediunicamente.

Quando Edgar esticou o olhar por sobre a platéia, pôde ver que muitas senhoras, moças e até meninas tinham um botão de rosa ou outras flores na mão.

— Agora vou pedir aos dignos confrades que estão junto à mesa que apenas a toquem de leve com as mãos. Vamos ver se é possível elevá-la sem ponto de apoio.

Ato contínuo, todos puderam observar que o pesado móvel se erguia completamente, subindo cerca de meio metro ou mais.

— Vamos ver se os amigos conseguem sustentar a mesa nessa posição, porque pretendo pedir que se movimente conforme as respostas que os irmãos da espiritualidade derem às perguntas que vamos formular. Como sempre, uma batida no chão significa “não” e duas, “sim”. Estão os guias de acordo?

A mesa se inclinou a ponto de ser preciso segurar os copos e as jarras de água. Duas leves batidas no chão responderam.

— Existe nesta sala, caros protetores, alguém que esteja necessitado desta comprovação material?

Duas batidas.

— Está entre o público?

Uma batida.

— Está junto à mesa?

Duas batidas.

— Querem identificar a pessoa?

Uma batida.

— Entre os diretores do centro, alguém quer fazer uma pergunta?

Edgar pensou que era a pessoa e quis comprovar a suspeita:

— Quero saber se os amigos da espiritualidade se referiam a mim. Sim ou não?

A mesa permaneceu imóvel.

Edgar ficou mais do que intrigado e insistiu:

— Será que estou sendo indiscreto ou pretensioso?

Na mesma hora, a mesa se deslocou com violência, caindo com os quatro pés sobre o tablado, assustando a todos com o estrépito.

Fez-se um longo silêncio. Finalmente o convidado se manifestou:

— Não estou sentindo mais a presença dos meus guias. Acho que terminaremos a sessão, orando para que a misericórdia do Senhor alcance o coração de todos nós. Vamos concentrar-nos na figura de Jesus, como se estivesse entre nós, que nos reunimos em seu nome. Imaginem que ele esteja no alto, como um foco radioso de luz e de amor. Requeiro ao sonoplasta que volte a tocar a vitrola.

Precisou que o presidente da instituição repetisse a solicitação, indicando pelo nome quem era a figura que cuidava do som.

Edgar, coitado, se sentia pequenininho, a ponto de perder a concentração, olhando apalermado para o alto, como se estivesse mesmo vendo a figura do Senhor. Não estava. Estava pensando em que explicação dariam as pessoas à sua atitude. E o orador.

Mas o embevecimento da multidão pelos fenômenos espíritas também não é eterno, de sorte que era chegado o momento da despedida:

— Prezados amigos, lamento que tenhamos sido interrompidos em plena participação fluídica e moral. Quero crer que muitos, se não todos, estejam perguntando-se por que a partida dos amigos espirituais foi tão abrupta. Não tenho autorização a falar por eles, porém, acredito que todos nós tivemos nossa atenção chamada pelo companheiro que quis saber se era ele quem estava necessitando presenciar este tipo de manifestação mediúnica. Nesse momento, esquecemos que estávamos permitindo que utilizassem nossas vibrações para o equilíbrio fluídico da mesa e deixamos de contribuir para o ato, perdendo os irmãos da espiritualidade a força que empregavam para a sustentação no ar desta pesada mesa. Fique claro que não estou pondo culpa em ninguém, porque todos nós colaboramos para o efeito. Espero voltar em outra oportunidade para outras demonstrações do poder dos espíritos sobre a matéria. Fiquem com Deus!

Não deu tempo para que lhe agradecessem ou aplaudissem, saindo do mesmo modo que entrara.

Os diretores do centro ainda tiveram a parte dos comunicados oficiais. Quando procuraram pelo convidado, já havia partido. Foi quando receberam de Edgar um grave aviso:

— Como não estou preparado para enfrentar os vivos e os mortos, declaro-me ausente quanto à compreensão de tudo o que se passou esta noite.

Somente bem mais tarde, acordado no meio da madrugada, é que atinou com o fato de haver introduzido na sessão seu elevado e egoístico orgulho.



Quando o palestrante, dois anos depois, voltou ao centro, não encontrou Edgar, que se bandeara de mala e cuia para um terreiro de umbanda do outro lado da cidade. Se lhe perguntassem a razão disso, responderia que era para estudar e praticar os cultos mais próximos da realidade palpável das oferendas e bênçãos particulares. Diria também que estava meditando a respeito das descrições dos fenômenos mediúnicos contidas nas obras de Kardec. Está nisso até hoje. E se alguém se referisse às palavras finais do palestrante, ele simplesmente responderia que as ouvira perfeitamente, como se pronunciadas tivessem sido por seu próprio mentor espiritual.

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