[[ FRAGMENTOs DAQUELa MÚSICa Do ROBERTo]]
O batalhão de baratas cruzou meu corpo como se ali eu não estivesse. Marchavam rítmica e freneticamente entoando alguma forma de mantra sussurrado e levavam pequenas seringas presas a seus corpos translúcidos.
Ergui um pouco o corpo a modo de não assustá-las. Depois de saltarem da cama, meteram-se em uma das frestas da parede – confesso que nesse instante ainda sentia muito sono e dor-de-cabeça, mas, mesmo assim, movido mais por certo instinto de roubo do que pela curiosidade, improvisei asas e antenas com papel-crepom que mantinha guardado para determinadas emergências, e fui-me atrás delas.
Era a primeira vez que eu entrava nas paredes - não que pouco eu conhecesse, pois já tinha estado misturado a armários, torradeiras e circuitos de tv-à-cabo, mas, por acaso, nunca no interior de paredes.
Era frio, lá. Um ambiente escuro e viscoso, onde milhares de insetos desciam e subiam por estreitos corredores. Quando batalhões de diferentes espécies se cruzavam, eles cumprimentavam-se com reverências demasiado formais, e só então percebi que todos eles traziam pequenas suásticas tatuadas nas costas de suas patas.
Todos os caminhos levavam à um mesmo poço, e todos os insetos se dirigiram para lá. Circundaram o espaço negro que parecia não ter um fim e, subitamente, desferiram um silêncio agudo e voraz ao nosso redor, até que o homem surgiu à nossa frente.
Tinha uma barba longa e espessa, ele, tranças compridas e descabeladas. Vestia-se como um desses hippies pós-modernos e mantinha um charuto preso aos lábios – na camiseta negra, o crucifixo de cabeça para baixo e os dizeres [jesus super star]. Depois de instantes em silêncio observando todos que ali estavam, ele virou-se em minha direção e olhou-me incisivamente. Sorriu, ao ponto em que as baratas e todos os outros insetos voltaram à música e à marcha acelerada, saltaram para dentro do poço e flutuaram enquanto o homem mantinha seu sorriso reticente e sussurrava-me qualquer coisa.
[Por favor, jogue-me uma corda. Eu estou dentro do poço, estou aqui desde sempre. Em meio a escuridão e ao silêncio, minha voz se tornou um blues sem fim e meus olhos, câmera e monitor digitais.
Aqui vivem todos os insetos e bruxas e fantasmas, aqui eles traçam suas poesias e cozem suas poções - eu sou partes deles tanto quanto eles são partes de mim.
Por favor, jogue-me uma corda. Uma corda de onde nasçam rosas brancas.]
Saltei atrás do último soldado, sob o olhar desconcertante do homem. Senti medo, é verdade – minhas asas não eram tão bem trabalhadas como a de todas as outras baratas, mas mesmo assim voei perfeitamente por entre os caminhos tortuosos que tivemos que percorrer, até que alcançamos o fim do túnel e acordei no exato momento em que as baratas saltavam pelo buraco do meu ouvido. Não sei bem porque, mas a dor-de-cabeça dissipou-se subitamente.
Elas voaram rápidas, e por isso eu não consegui detê-las. A última delas sorriu-me, ainda, com seu perfil vago de escritor de escritório. Pus-me a persegui-las desferindo lentos golpes com o mata-moscas, mas dentre eles nenhum foi certeiro.
No entanto, antes que pudesse avisar a imprensa sensacionalista e as organizações não governamentais, a mulher fez-me parar beijando-me a boca. Depois afastou-se, tirou os óculos escuros olhando-me incisivamente e sorriu enquanto sussurrava qualquer coisa.
[Você faz parte deles tanto quanto eles fazem parte de você].
Não que não quisesse tê-la, mas antes que eu pudesse esboçar qualquer gesto em direção à seu corpo, as baratas já tinham-me alcançado e, enquanto algumas delas amarravam-me com finas teias de cobre, outras injetavam-me as seringas nas veias do pescoço.
Antes de desmaiar ainda pude divisar a bandeira negra sendo astiada alta entre os arranha-céus e vê-los, todos, reverenciando o hippie que surgia entre a multidão.
Era ele, o cristo pop, sorrindo de forma reticente enquanto todos cantavam aquela música do roberto.
Não sei bem porque, mas cantei também.
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