Manhã de 24 de junho, dia de São João. Feriadão na Bahia. A cidade está quase parada, quase vazia. Muitos viajaram para o interior - lá a festa é mais animada. Muitos ainda dormem - morgados pelos tantos licores, comidas típicas, fogueiras, forrós e rojões. Os que estão acordados usam capotes e reclamam do frio. Frio?... 25 graus centígrados!!! É inverno em Salvador.
Busco a calma do mar: o azul, o barulho das ondas, os bordados das espumas, o silvo do vento. Na orla marítima desfilam alguns turistas e pouca gente da terra. Alcanço uma pedra enorme acomodada no mar em que as ondas vêm bater em ciclos constantes, faço dela o meu altar. Solto a
camiseta, tiro a bermuda, libero as sandálias de couro e fico quase nu em contato com a Natureza, coisa que o meu quotidiano não permite.
Vejo que alguém se aproxima, não me incomodo. Um negro nos seus vinte e tantos anos puxa conversa, comenta do mar, fala do céu, pergunta onde moro. Invento um bairro distante para não deixá-lo sem resposta. Vejo que ele tem uma cara sofrida, um corpo malhado pela vida e uma sunga rasgada mostrando uma parte da bunda. Sinto pena dele. Ele mostra sua alegria e o seu conformismo com a vida. Diz-me que está no quinto ano primário e trabalha numa pizzaria durante a semana. Veio até a beira do mar para aliviar a tensão.
Acredito nele como acredito nas coisas que as pessoas me falam. Relaxo. Nem percebo o movimento ligeiro. Só vejo que ele já está com a
minha bermuda numa mão e uma faca potiaguda na outra e me fala nervoso: Só quero o dinheiro. Eu digo que pode levar tudo, se quiser leve a bermuda e a camiseta e também as sadálias. Peço que só não leve meu documento. Ele me devolve a bermuda com o documento. Eu me afasto triste com o assalto
inglório: apenas R$19.00. Não satisfeito, volto para o meu assaltante e pergunto se havia necessidade da violência, se a faca foi de alguma valia? Ele fica perturbado e pede para eu me sentar junto dele. Eu digo que não e pergunto como vou voltar para casa se não tenho dinheiro. Ele me pergunta quanto custa o ónibus. R$2.20, respondo. Ele me devolve R$2.00. Eu digo que faltam R$0.20. Ele não hesita e me devolve mais R$1.00. Faço as contas ligeiro: 19 menos 3 = 16: US$10.00 no càmbio do dia. Fico satisfeito.
Atravesso a rua e entro no hotel em que estou hospedado pensando que a Bahia em mais de 30 anos não mudou muito: continua bela, perigosa e
inocente demais.