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Contos-->O vizinho -- 14/04/2003 - 13:41 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O VIZINHO










I

Não sei porque Eunice resolveu contar a estória de Abelardo para mim. Nunca fui amigo desse senhor da casa quatro, embora nossas casas estejam de frente uma para outra. Nós nunca trocamos uma só palavra. Eu sempre o vejo de longe. Quando vou ao trabalho, geralmente o vejo molhando as plantas que a qualquer momento encobrirá toda a casa dele, pois está se transformando em uma mata, correndo o risco do terreno ser tombado pelo governo. Já até reclamei à polícia alegando que a selva está atraindo cobras e toda espécie de bichos para a vizinhança. Não pode ser que uma pessoa assim tenha tomado o meu pensamento quase que cem por cento de duas semanas para cá. Vou ao trabalho, penso no velho, vou ao colégio, penso no velho, vou dormir, penso no velho. Não veja nisto um sintoma de paixão de um homem por outro homem, pois não é do meu feitio. Por que então o velho a toda hora me assombra?
Levei a preocupação a Eunice que me chamou de tapado e de sonso. Disse que o velho me atemoriza porque gente sonsa e tapada, como eu, tem medo de encarar os fatos. Ouve as coisas mas não entende. É preciso ouvir pela segunda, terceira, quantas vezes for necessário, para entender a realidade.
— Pois lembre, seu cara de sonso – disse-me ela com um semblante de mistério – que esse homem tinha resolvido se matar. Lembra que te falei isso?
Respondi que sim com a cabeça.
— Eu peço unicamente uma coisa: Não me interrompa porque só em repetir tudo me deixa nervosa.
Outra vez disse que sim com a cabeça.
— Veja bem o atrevimento do seu Abelardo – continuou ela – já que dificilmente alguém faria a mesma coisa. Ele chamou a mulher e os filhos, explicou para cada um que a vida tinha se tornado tediosa para ele. Sabe o que ele disse para a esposa e os dois filhos?
— Eu acho que estou lembrando, mas pode continuar.
— Ele alegou que queria conhecer o outro mundo. Ninguém nunca voltou do seol para contar. Está vendo a bela casa verde?
— Casa não, mata.
— Justamente. Ele herdou dos pais. Além do quê deixou a renda do serviço público e a poupança de quinze anos, todas explicadas nos mínimos detalhes, para cada um. Todo mundo poderia tocar a mão nos bens depois de algum tempo da morte do pobre coitado. O nosso vizinho assinou papéis destinando a cada um a parte que lhes cabia. Quando desse na cabeça, e achasse que a hora certa da partida tivesse chegado, partiria para o outro lado da vida. Todo mundo ficaria feliz porque a tragédia não seria feita com fatalidade.
— Essa é toda a estória?
— Calma seu bobo, não terminei. Foi só o começo. A esposa dele, que é muito conhecida na vizinhança, como você mesmo gosta de dizer, uma senhora morena de quarenta anos que todo mundo confunde como filha mais velha, chegou para ele e pediu para que o marido não tirasse a vida. Rejeitar a vida não fica bem para os homens de mal, imagine para os homens de bem. Veja a reação dos filhos. O mais velho falou que o pai estava cansado e precisava tirar férias, já que a família não descansava há anos. O caçula procurou o velho mais tarde, quando, de costume, o pai ia à varanda, na meditação que fazia antes de dormir. Ali o barbudo contemplava as estrelas e conjeturava sobre as origens do universo enigmático. Ele ouviu muita coisa do filho mais novo. A criança pediu para o pai não tirar a vida porque a professora falou que é Deus que tira a vida da gente. Assim seria melhor para o melancólico velho, bem como para a família. Embora a doçura das palavras do filho mais novo, a criança não conseguiu mais que comovê-lo com lágrimas. O velho disse que, se acontecesse alguma coisa com o papai, a culpa seria dos rios sem água que existem por trás das coisas e das pessoas. Invocou o livre-arbítrio para justificar o plano. Se o homem tem livre-arbítrio, por que não pode se matar? Quer dizer que tem livre-arbítrio para casar, ter relações sexuais, possuir filhos, mas não tem para se matar? Que questionamentos chocantes, não é Gustavo?
— É verdade. Mas a estória não terminou assim por que de vez em quando eu vejo o vizinho molhando as plantas.
— Você realmente está apressado, mas pelo que estou observando não está entendendo nada. Deixe eu terminar para você não me telefonar depois pedindo para contar novamente. Prosseguindo, mãe e filhos entenderam bem as loucuras do velho que, de teimoso, tinha muito. Viram que o clamor dos três fora inútil. A primeira vez que a maioria não vence em casa. Então pensaram em chamar a polícia. Desistiram por que lhes era sujeito e imaginaram que a temperatura quente dos últimos dias podiam ter alterado a cabeça do homem. Há muito que o aposentado de barbas compridas pensava na morte. De tudo isso, Gustavo, uma coisa: Porque temos que escolher o destino a cada dia? Essa foi a pergunta que o seu Abelardo disse para ele mesmo. Não fique abismado com o que eu tenho te falado. Nem se espante com o que ainda vai ouvir.
Melena estava suada. Eu propôs que ela parasse um pouco porque, às vezes, faltava-lhe fôlego. Ela me atendeu, foi à sacada e retornou com o relato.
— O velho, Gustavo, admirava o contraditório de Jó com o outro lado. O homem pode contender com o outro lado? Esta era a pergunta que o vizinho soltava em voz alta pela casa. De qualquer forma, o velho tinha dado o primeiro passo para deixar a família. Contou para cada um dos seus planos. O próximo passo consistiria em abandonar os atos coletivos adquiridos de longos anos. A refeição em família, por exemplo. Em vez da mesa, preferia a comida no quarto. Os amigos, que ligavam, ou iam em sua casa desejando atualizar a conversa, recebiam resposta dos familiares de que ele já estava dormindo, ou fazendo qualquer outra coisa. Assim, o homem tornava-se introspectivo. Estava morrendo para os seus e os amigos. Desse modo, a seu ver, a família ia se acostumando com a sua falta.

II

— Ufa, finalmente você terminou.
— Diga que não pois eu termino agora mesmo. Pego os Crimes da Rua Morgue e vou ler.
— Desculpe, mas é que eu não entendi o pretexto ainda.
— Talvez você vai entender agora. Preste atenção, seu sonso.
— Tudo bem, prossiga.
— A esposa do velho já estava prevendo o pior para aquele dia, pois o esposo tinha resolvido se refugiar no quarto, abandonando as caminhadas dentro de casa. Resolveu falar com o marido. Desta vez ela não levou-lhe refeição. Ao primeiro olhar, o semblante dela lhe pareceu estranho. Nunca o semblante da esposa lhe pareceu estranho. Logo a esposa que fora sempre sorridente com ele em quase todas as circunstâncias, embora soubesse que o sorriso fosse para agradá-lo. Mas sabia que aquele sorriso era estritamente facial, como descobriu, em um dia bem atrás, quando regressava do trabalho mais cedo. Escondeu-se atrás da porta e ouviu a conversa entre ela e uma amiga, que ele não conhecia. A esposa disse à amiga que se deve rir para os tolos durante todo o tempo. Os tolos gostam, como o esposo dela, que era um tolo.
— O velho ouviu isso mesmo? Interrompi.
— Ouviu sim. A esposa no quarto finalmente era a esposa que falava com a amiga, tempos atrás. Sentiu a verdadeira alma da mulher. Pela primeira vez pescou bichos ao contrário dos costumeiros peixes vindos da esposa. A mulher que lhe fazia dengo já não estava ali. Talvez tivesse em um algum lugar bem longe. Talvez a fraca alma, cansada de usar as máscaras, tenha sido vencida pela mais oculta, porém bem mais poderosa. Ele achou que a alma da esposa venceu a alma da rotina. Até o movimento que a esposa fazia ao redor da cama, era-lhe inédito. A costumeira elegância adquirida ao longo dos anos desaparecera. Deu lugar a um outro comportamento enigmático. A mulher a sua frente era uma desconhecida com olhares estranhos. Vendo que o tempo passava e visto o silêncio da esposa, ele resolveu tomar a iniciativa. Falar qualquer coisa que puxasse algum diálogo. Mas a mulher percebeu o lento movimento dos lábios do esposo para falar. Ela foi mais rápida, implorando para que o velho não fizesse loucura. Implorou para que os maus pensamentos não lhe roubasse a felicidade. Disse que, se o velho encarasse os problemas de frente, as coisas provavelmente melhorariam. Você não imagina como essas palavras saíram tremidas da boca da esposa. Totalmente tremidas. Ela não prosseguiu, pois, assim como começou, parou, seguindo longa pausa. Vendo que o esposo ainda se abstinha de diálogo, decidiu sair e, antes que abrisse a porta, ouviu a voz do tranqüilo velho, meio rouca. Ele disse que ela não entendia das coisas dos outros. A princípio a mulher não entendeu. Mas o velho foi enfático. Disse que a esposa só entendia dela mesma pois, de cinco anos para cá, ela esquecia de lhe perguntar se ele era feliz. Se estava passando por algum problema. Ao contrário, a felicidade da esposa era comer pipoca defronte a televisão e confidenciar-se com as amigas. Parecia que o velho tinha entrado no mundo dela por estratégia. Ele inclusive elogiou a dissimulada esposa. Disse que ela era excelente estrategista. Ela só queria filhos, e ele os deu. Cumprido os planos, o resto é resto. O casamento se deu porque ela já não prestava para os ratos. Como não queria viver só, precisava de um idiota. Mas esqueceu que os idiotas vêem. Ele disse que sabia de tudo. Que teve que se debruçar loucamente dos cinco anos para cá, comprando livros e fazendo cursos esporádicos sobre o comportamento do ser humano.
Melena parou novamente, tomou suco de maracujá e continuou.
-— A esposa quis desmenti-lo. Mas foi se convencendo aos poucos. Ela teve que ouvir muito mais coisa. A vontade do velho se matar, isto ele deixou muito claro, se deveu unicamente à esposa. Fazendo isso, ela ficaria livre para as aventuras de luxúria.
— Que mulher danada, não é Melena?
— Realmente, seu bobinho. Mas o velho falou mais coisas. Ele lembrou que, no dia dos namorados, dava beijos, como um cachorrinho faz no dono, para lembrar que estava vivo. Como troco, recebia um pobre beijo na testa, como gratidão. Disse ainda que a beleza dela foi escudo contra ele. Até mesmo a altura dela de quinze centímetros a mais, a má aventurada usava contra ele visto que evitava de sair juntos em público. Ela sempre dizia que a altura não era impedimento para uni-los. Mas na prática era. Ela preferia chamar a vizinha para companhia ao shopping e à feira. Ele chegou aos quarenta e cinco anos velho, ao contrário dela, que não aparenta trinta; talvez vinte e cinco anos. Ela sempre lhe quis ser sujeita para nunca se rebelar. A verdade é que ela nunca o amou.
— Pelo que entendi, Melena, ele desistiu de se matar. Não jogou a esposa aos abutres, porque eu de vez em quando vejo a descarada saindo de casa levando os meninos à escola.

III

Não entendi o repentino levantar do sofá de Melena. Abriu as persianas, permitindo a entrada repentina dos raios de sol, que bateram em meu rosto. Olhou para a casa do velho. Ela disse que alguém conversava com o vizinho que ria muito. Voltou os olhos para mim. Melena ocultava alguma coisa.
— Desculpe eu falar assim tão abertamente, Gustavo, descarado aqui é você. Você é que é sem-vergonha. Reli a estória mas até agora finge não saber o que se passa. Não toma uma atitude decente com a mulher do velho, cuja influência ignora. Toda vizinhança te conhece como integrante do harém. Aliás, você foi o primeiro a compor o canil. Alguém pegou vocês no maior amasso dentro do seu carro naquele temporal em que ninguém sabia onde estava todo mundo, há mais de três anos. Você se lembra? Vocês acharam que por estar chovendo ninguém descobriria. Por isso que você havia resolvido colocar a película escura no carro. Para esconder vocês lá dentro. Mas não escondeu vocês dos ... meus olhos. Meus olhos viram a mulher de preto entrando no carro. O velho vai continuar te assombrando ainda por muito tempo. Mas quem já está assombrada mesmo é a esposa, que recebeu o perdão mas sob condições do velho. Ela ficaria em casa contanto que destruísse o canil. Será que ela aceitou, depois de semanas das ocorrências? Dizem, entretanto, que as coisas se inverteram. É a mulher quem quer morrer. Está vendo fantasmas para todos os lados que anda. É o fantasma do marido que não morreu. É o fantasma de coisas ocultas que a cada dia vêm a público. Ela não quer de maneira alguma viver mais.
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Comentários: flaviosf@tcu.gov.br

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