À noite a cidade pulsava em suas sombras. E de suas sombras nasciam imaginações fantásticas.
O silêncio não era repouso, mas gestação de atos. A cidade era uma usina humana. A cidade era uma usina de emoções e desejos.
E, no seio da noite nasciam homens, bestas, sexo, riso e choro.
De repente, das entranhas das sombras, um ladrão, depois do assalto, corria do seu próprio medo.
Também das sombras surgiam mulheres incríveis, recheadas de desejos e volúpias. Mas, só os poetas e os loucos as viam.
Nas sombras da noite as recatadas, as reprimidas e as eternas ocupadas podiam, enfim, deixar fluírem seus desejos. Elas se transformavam em lúdicas insaciáveis.
Elas eram despertadas dentro das garrafas de cerveja, vinho, aguardente. Os ébrios temiam cair em suas garras e ficarem prisioneiros da bebida, da abstinência, do amor, do ódio, da fidelidade e da traição.
Nos bares os ébrios bebiam seus medos. Embriagavam-se com suas fantasias. Nos bares eles não se encontravam, se perdiam e não conseguiam mais se libertar das garras encantadoras da noite. Tinham se tornado mariposas.
Durante o dia os habitantes das sombras permaneciam ocultos, transparentes. De fato, a claridade não revelava nada. A cidade sabia se maquiar. Só à noite ela mostrava sua face acolhedora, enfeitando-se de luzes. A cidade só existia, essencialmente, nas sombras.
A claridade não a desmascarava e, sim, a mascarava. Iluminada, aberta, acolhedora, quente, risonha. Assim, durante o dia ela se preparava, disfarçadamente, para estimular nossos desejos, nossos sonhos para o anoitecer.
Assim que caía a noite havia uma agitação, um frenesi, um medo latente, um desejo insatisfeito. À noite havia um despertar. Era à noite que mostrávamos o nosso humor, cansaço, disposição, tesão, impotência, coragem, covardia, alegria, tristeza, desesperança, esperança.
Os sonos a invadiam e a agitavam, igualmente como os despertares. Eles criavam tensões entre os vivos e os mortos da noite. Corriam ruas, becos, avenidas.
A cidade era a tensão do gatilho prestes a disparar desejos. Na luz tudo dormia oculto para ser despertado pelas sombras.
Apenas os olhos de uma coruja cravavam a noite como espadas reais, desnudando-nos a sua verdadeira face.
À noite a cidade era um espelho, pura alma, a revelar-nos.
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