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Contos-->Driguinho, o médico de insetos. -- 19/04/2003 - 14:34 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Driguinho era um capetinha. Nos dias atuais crianças como ele são chamadas de hiperativas. Prefiro o termo antigo. Prefiro porque o garoto realmente era encapetado. O menino era tão infernal que seus pais não quiseram ter outra criança temendo que outro desastre pudesse acontecer. O capetinha era, mau, chato, inconseqüente, grosso, indolente, metido, chantagista, queria e geralmente conseguia tirar vantagem de tudo o que queria, manipulava pessoas, não tinha respeito por ninguém, qualidades ruins não lhe faltavam. Ele era um representante típico do ser humano desprezível apesar de ter apenas seus seis ou sete anos. Por outro lado era irritante ver também nele características e qualidades de dar inveja a qualquer um. Driguinho era inteligentíssimo, de raciocínio rápido, esperto, tinha sempre uma resposta pronta da língua e nunca saía no prejuízo numa discussão. Os adultos penavam com ele, o moleque era realmente intragável. Pesava ainda sobre ele o fato de ser insensível, incapaz de demonstrar qualquer afetividade espontânea por qualquer ser vivo que fosse. O guri era quase uma máquina.
Ele gostava de bichos, quer dizer, de maltratá-los. Certa vez seus pais lhe deram um cachorrinho. No mesmo dia, durante uma brincadeira, Driguinho chutou a coluna do pobrezinho e a deslocou. O cachorrinho teve de ser sacrificado no veterinário. Maldades contra passarinhos, galinhas, gatos, lagartixas, e toda sorte de ser vivo eram para ele uma diversão. O garoto tinha um poder persuasivo incrível e por conta disso tinha vários amigos, ele gostava de estar sempre envolto por súditos que lhe serviam de cobaias para suas experiências sociais. Certa vez atazanou tanto um de seus amiguinhos que o garoto acabou cedendo a seus caprichos e foi pego tentando roubar chocolates no armazém. Esse garoto era eu, primo um ano mais novo que Driguinho. Apanhei muito de minha mãe, nem tanto pelo fato do roubo mas por ter cedido aos apelos de meu primo para que eu fosse ao armazém pegar duas barras de chocolates para distribuir entre os integrantes de nossa turminha. Isto seria uma forma de vingança, segundo Driguinho, pois no dia anterior eu havia recebido um troco errado do dono do armazém e meus pais haviam brigado muito comigo pela falta de atenção. Não resisti a seus argumentos e cedi à pressão, mesmo sabendo que era errado roubar.
Passado esse fato me afastei de Driguinho, morávamos perto e tínhamos os mesmos amigos. Minha mãe reuniu-se com as mães dos colegas menores de Driguinho e sugeriu que proibissem seus filhos de ter amizade com ele porque seria perigoso para qualquer um deles se relacionar com alguém tão persuasivo e mal feito Driguinho. Como eu era o mais quieto da turma, todos ficaram surpresos com a tentativa de roubo praticada por mim e com isso acataram a sugestão de minha mãe.
Driguinho, apesar de todo o seu esforço para que o contrário acontecesse, ficou sem turma. Perdeu todos os seus amigos, inclusive eu. Seus pais entenderam o "gelo" e nada fizeram para desfazer o castigo que a comunidade lhe impôs. A coerção surtiu efeito, na escola Driguinho que era muito atentado passou a dedicar-se mais à dura tarefa de permanecer sentado na carteira durantes as aulas e com a boca fechada. Com pouco tempo Driguinho acostumou-se com sua nova realidade e trocou velhos hábitos por outros. Assim ele passou a ficar mais tempo em casa, começou a ler, ouvir música no rádio e o mais edificante, ele passou falar menos e a pensar mais. Porém isto não significava que a criança estava adquirindo sensibilidade, ele só contornava a situação de ser descartado do grupo se auto-excluindo, era uma defesa.
Nessa mesma época Driguinho começou a desaparecer sem mais nem menos por grandes períodos do dia. Não havia quem o fizesse contar onde esteve e fazendo o que. Chegou a apanhar, mas nada adiantou, Driguinho simplesmente sumia e horas depois reaparecia como se nada tivesse acontecido. Chegava em casa como se tivesse acabado de chegar da padaria com o pão pro café da manhã, no máximo com as mãos e roupas um pouco sujas de terra. Era um mistério.
Os sumiços do garoto tomaram grandes proporções, a ponto de a família se reunir para tentar procurar um tratamento para o menino mas a idéia não vingou porque Driguinho era outro depois do acontecido no armazém. Ele não era mais a mesma criança endiabrada, ele estava mais calmo, um pouco mais humano. Porém, gradualmente foram todos esquecendo seus desaparecimentos inexplicáveis. Era uma fase que ele estava passando, um parente sugeriu e todos concordaram em bloco. Decidi então eu mesmo investigar por conta própria para saber para onde Driguinho ia e fazia o que nos seus sumiços. Curiosidade de criança.
Não voltei a me relacionar com Driguinho, até porque descobri que era muito bom ficar afastado dele e mais ligado ao resto da turma, que também descobriu o mesmo. Morávamos todos no mesmo bairro, próximos uns dos outros, e sendo assim comecei a passar várias vezes de bicicleta em frente a sua casa, investigando. Tentando ver se meu primo fazia algo diferente, saia com alguém ou ia para algum lugar. Fiz isso por vários dias, de modo bem discreto, eu não queria que ele descobrisse que eu o estava observando. Até que um dia, enquanto passava em frente à sua casa, fiz de conta que estava recolocando a corrente na bicicleta e investiguei demoradamente pelas frestas de uma cerca de madeira que ligava a casa ao muro. Por estas frestas, bem ao longe percebi um vulto azul que se esfregava e ultrapassava o muro que dava para um enorme terreno baldio totalmente fechado. Era Driguinho, eu não tive dúvida, me lembrei que naquela região meu tio estacionava um velho carrinho de mão encostando a parte da frente do pneu no chão e os braços no muro. Formando assim uma eficiente concha, capaz de esconder um buraco feito no muro, do tamanho que fosse possível passar uma criança, Driguinho. Este terreno era de um rico comerciante da cidade que deixava a área intacta e bem protegida por muros altíssimos esperando por valorização imobiliária. Não havia como entrar lá, eu e turma sabíamos disso, e além do mais fazer o que lá dentro? Lá só havia mato, nem passarinhos ousavam pousar lá. Principalmente naquela época do ano, mês de março, período em que as moitas de capim estavam vigorosíssimas. O que o doidinho do meu primo fazia lá dentro? Num lugar que poderia estar infestado por cobras, taturanas e escorpiões. Não fazia sentido, todas as crianças simplesmente ignoravam aquele terreno, tínhamos os quintais de nossas casas e as ruas para brincar. Domei minha curiosidade por dois dias, no terceiro bolei um plano para entrar no terreno e curiar Driguinho, no quarto dia entrei no terreno.
Deus sabe como consegui pular da mangueira no muro do quintal de casa, caminhar sem ser visto sobre ele por três lotes e finalmente alcançar o tão temido terreno baldio. Minha excitação era tanta que pulei do muro no desconhecido, na queda nada me machucou mas também nada me amorteceu. Dentro, inquiri a região. Meu medo era voraz, meu queixo tremia e os sons do ambiente eram amplificados dezenas de vezes em minha cabeça. Só então percebi o tamanho da minha idiotice, como eu faria para sair dali? Eu teria que procurar uma maneira de escapar daquele lugar. Percebi que minha situação era crítica e não me adiantaria entrar em pânico. Matutei um pouco e encontrei uma solução. Eu acompanharia o muro até o buraco feito por Driguinho no muro da casa dele e daria um jeito de sair por lá. Acalmei-me um pouco mais e segui acompanhando, ralando o braço direito e raspando camiseta e calção de vez enquanto no muro chapiscado. No caminho percebi que a região não era tão amedrontadora como eu a imaginava. Haviam alguns bichinhos, moitas enormes de capim Jaraguá, um pouco de lixo antigo que já não fazia mal e alguns materiais de construção igualmente obsoletos. Quando cheguei no buraco tive um estalo. Eu já estava ali dentro mesmo, me custaria pouco investigar o que meu primo fazia ali dentro e afinal de contas era para isso que eu estava ali.
Do buraco no muro seguia perpendicularmente um trieiro que sumia dentro da vegetação pobre em diversidade do local. Segui agachado por esse caminho que à frente descrevia um imenso labirinto que ora acompanhava a topografia do terreno e ora fazia voltas aparentemente sem sentido. O caminho estava bem batido o que sugeria que Driguinho andava por ali a muito tempo. Me lembrei de meu primo, e se eu o encontrasse ali? como seria? Acalmei a marcha e de vez enquando eu parava para ouvir o mundo. Depois de uma longa caminhada, percebi que minha jornada estava chegando ao fim ao ver de longe uma lona escorada por traves de madeira que sugeriam uma cabana. Não entrei na cabana, achei melhor observar de longe por medo de meu primo aparecer de repente e me pegar no flagra. Me posicionei, de longe para conseguir ver o que tinha dentro da cabana mas eu estava longe demais. Quando eu comecei a me movimentar para me aproximar ouvi o ruído de alguém se aproximando. Escondi-me mais ainda com a vegetação e esperei, logo apareceu Driguinho se dirigindo a cabana. Assoviando e fazendo algazarra ele veio. De onde eu estava mal conseguia ouvir o que ele dizia enquanto tirava uns potes de vidro de azeitonas e saquinhos de plástico contendo coisas que se mexiam de dentro de uma sacola maior de supermercado. De início o que ele falava eram coisas sem sentido "Eu vou curar vocês pobrezinhos, tão doentinhos". Logo eu percebi que as coisinhas que se mexiam nos recipientes eram pequenos insetos e animais. Ele não parava de falar. "Dr. Driguinho vai tratar muito bem de vocês, não vou deixar vocês morrerem. Driguinho vai operar vocês". Dizia isso enquanto preocupava-se com o que parecia ser, e era, uma preparação para realização de cirurgias nos bichinhos. Entre risadas, Driguinho colocou uma espécie de capacete na qual estava preso uma mini-lanterna. Uma máscara e um avental completavam o traje do médico. Tudo isso mesclado com frases e risadas sinistras. Nesse momento eu, hipnotizado pelo que eu via, já estava bem próximo da cabana, quase esquecendo do perigo que corria. Só por isso pude ver Driguinho prendendo com alfinetes um pobre grilo a uma mesinha improvisada, que servia de mesa cirúrgica. Em seguida Driguinho pegou alguns instrumentos, gilete de fazer barba e agulhas. E abriu o abdome do pobre bichinho ainda vivo. Driguinho se deliciava com a impaciência expressadas nos movimentos descontrolados das perninhas do grilo. "Pip, pip, não vou te deixar morrer, pip, pip, tenho pouco tempo, mas Dr. Driguinho vai te curar!", dizia enquanto rasgava cuidadosamente o animal. Ficou assim por muito tempo, até cessarem-se todos os movimentos do pobre inseto. Driguinho a essa altura estava suado, exausto de tanto falar frases que supostamente seriam faladas em cirurgias, enquanto operava sua vítima. Cessando totalmente os movimentos, Driguinho parou. Observou as víceras espalhadas por quase toda a mesa cirúrgica, esfregou-as entre o indicador e o polegar, cheirou e em seguida experimentou aquilo, colocou na boca e apreciou com a língua. Tive nojo, quase vomitei, fiquei impaciente, quis sair logo dali. Driguinho por outro lado apreciou o que colocara na boca, apreciou demoradamente as víceras do grilo em seguida disse em tom apreciativo: "Bom, mas preferi a aranha de ontem. Mas nada que se compare com os ovinhos do calango da semana passada".
Boa parte do dia já se passara desde que eu entrara na área baldia onde se encontrava o "Hospital de insetos", como Driguinho mesmo chamara sua macabra clínica, delimitada por um pedaço de lona velha estirada por pedaços de pau. Logo Driguinho se foi, eu ainda fiquei algum tempo imóvel, sem acreditar direito no que acabara de ver. Mas eu tinha de investigar direito a tal cabana antes de sair daquele lugar. Entrei na cabana e vi numa pequena prateleira montada com tábuas sobre tijolos os instrumentos utilizados pelo meu primo em suas experiências macabras. Seringas com agulhas de várias espessuras, giletes que serviam de bisturi, agulhas, alfinetes, pilhas que supus serem utilizadas para das choque em suas vítimas, um alicate de unhas que ao que tudo indicava era usado na amputação de membros dos bichinhos, líquidos e pós acondicionados em vidrinhos. Alcois, ácidos, vinagres, óleos, gasolina, sal de cozinha, soda cáustica, acetona e outras substâncias eu consegui identificar nos recipientes. Numa outra prateleira haviam animais maiores ou membros desses em vidros. Um rato, uma rã, uma pequena cobra, duas lagartixas, uma pata de cachorro, uma cabeça de galinha, tudo separado dentro de seu próprio vidro imerso em álcool (tive de abrir um desses vidros e cheirar para ter a certeza). Além disso, outros insetos ainda vivos ou não esperavam a vez de serem operados pelo eficiente Dr. Driguinho.
Tudo naquele lugar fedia muito, formigas e moscas faziam festa. Vasculhando descobri um outro trieiro que saía da cabana para um lugar mais afastado e o segui, o caminho levava a um mórbido cemitério. Ali o cheiro era ainda pior, as moscas e as formigas eram ainda mais intensas. No chão, haviam algumas cruzes e embaixo delas o que pareciam ser pequenas tumbas. Os animais e restos eram enterrados naquele local, porém superficialmente, de modo que as formigas, besouros e as moscas conseguiam fuçar a terra e retirar os pequenos corpos apodrecidos das vítimas de meu primo. Os odores putrefatos dos restos mal enterrados das criaturas me tiraram o ar, tive uma ânsia insustentável de vômito e saí correndo dali. Corri, enquanto moscas azuis batiam em meu rosto e seus zumbidos me amedrontavam de sobremaneira. Não me lembro direito como consegui transpor o labirinto, mas o fato é que já perto do buraco do muro na casa de meu primo fui capaz de retomar o fôlego e bolar uma desculpa para aparecer no quintal de sua casa. Assim foi feito, entretanto, dentro do quintal de sua casa não vi ninguém. Rapidamente pulei a cerca de madeira que dava pra rua e corri para casa, ninguém me viu. Em casa tomei um delicioso banho e me deitei. As imagens do que eu tinha visto no hospital de meu primo me deixaram mal por muitos e muitos dias. Não consegui falar o que vi naquele lugar a ninguém, fiquei tão chocado com o que vi naquele dia que tive medo.
Passado o episódio acima narrado, logo veio a época do frio, o capim secou, e Driguinho certamente mudou seu hospital de lugar. Meu primo foi ficando cada vez mais distante de todos, estranho, taciturno e frio. Tempos depois minha família mudou-se de bairro e a cada reunião familiar em que eu via Driguinho ele me era mais familiar a figura de um monstro. Engordou, ficou careca cedo, o nariz cresceu começou a usar barba ainda na adolescência.
O tempo passou rápido e hoje Driguinho é conhecido como Dr. Rodrigo Castro de Almeida Júnior, cirurgião geral e atende num importante hospital da cidade.
Para mim, Dr. Rodrigo nunca deixou de ser Driguinho, o médico de insetos.
Talvez por isso eu nunca o indique a ninguém.
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