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Discursos-->Regressão -- 05/04/2002 - 23:11 (Alberto D. P. do Carmo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estava na fila observando a menina preencher a bandeja da senhora à sua frente: 3 BigMacs, 3 fritas, 3 cocas médias, vários sorvetes, almofadinhas de catchup e mostarda, e duas crianças mal educadas perturbando a balbúrdia generalizada.

Depois caminhou até a praça de alimentação e viu aquela turba esfomeada engolindo carboidratos como se fossem cerejas silvestres. Sentou-se com as costas apoiadas num pilar, colocou o copo no chão, o sanduíche no bolso da camisa, perguntou-se o que fazia ali, e viajou.

Ouviam do quintal a mãe chamando na varanda da casa. Chegavam esbaforidos, joelhos riscados, calções rasgados, e tomavam o suco de maça, mamão, banana e leite. Depois voltavam correndo ao quintal; a partida estava em pleno andamento, já estava na "matança". Jogavam com bolinhas olho-de-gato, as preferidas.

A fieira do pião tinha uma tampinha de refrigerante amassada na ponta, para prender entre os dedos. Adorava o "roncador" - um pião gordo como o Gansolino, temido pelos vizinhos. Um dia rachou, e nunca mais encontrou outro igual.

A casinha ficava no fundo do quintal, coberta pelo chuchuzeiro. Eram dois casais, ele e a vizinha mais velha, o irmão mais novo e a irmã da vizinha. Era o pai, caçava ursos atrás da paineira - sempre era ferido e voltava aos braços da mãe que o enchia de cuidados. Deitava no colo dela e ficava a olhar aqueles olhos ariscos, completamente apaixonado. Só de encostar nela sentia o coração disparar, e outras coisas de que ainda não tinha pleno conhecimento - Xuxa ainda não era nascida, para felicidade geral da nação. De noite, iam à casa das meninas ver TV, só elas tinham - Repórter Esso, etc.

Os dias corriam fáceis e ingênuos. Quando o pai chegava em casa e pegava no cavaquinho, cantavam "Baile da Saudade". Aos sábados era dia de ligar a vitrola: Amargo que nem giló, Marcha do Quarto Centenário, Maringá, valsas cantadas por Francisco Alves. Adorava as agulhas de metal, que eram trocadas a cada disco de 78 rpm.

No carnaval, iam ao Ibirapuera de noite. Havia auto-falantes espalhados, tocando as marchinhas do ano. Havia um ar impregnado suavemente de lança-perfumes, daquelas douradas, que tornavam o lugar um tanto encantado.

As visitas aos primos de Utinga eram inesquecíveis. Havia a lagoa, os morros, a festa de São Pedro. Queria um mocassim igual ao do primo Toninho; mas só podia ter sapatos com cordões de amarrar - mocassim solta do pé, a desculpa de sempre. Um dia ganhou aquele sapato, já usado, quase furado. Usou como novo.

A saia curta usada pela vizinha causava uma sensação inexplicável ainda, mas boa de sentir. Tinha vontade de deixar flores na porta dela, mas tinha vergonha, medo que não gostasse. Então sonhava com casinhas, com caçadas de ursos, com carinhosos curativos ao colo dela. Era um herói, sempre um herói que voltava. Ela sempre linda, delicada, meiga, com mãos de carinho.

O carrinho de rolimã não tinha freio, era na sola do sapato mesmo. Encontravam rolimãs no lixo da garagem", uma mecânica da Simca Chambord. Lá conseguiam filtros de óleo que, amarrados a um barbante forte, viravam bólidos de corrida.

O campinho ficava em frente da casa - era só atravessar a rua. Quando tinha "jogo contra" era festa - e boas brigas também.

Detestava a procissão, mas não sossegou enquanto não foi coroinha da Achiropita da Treze de Maio - o salão tinha pebolim e bilhar. Nunca conseguiu decorar o latim da missa. Morreu de vergonha quando saiu numa procissão - a batina ficou curta e as calças apareciam embaixo. Abandonou a profissão de fé quando o padre ameaçou cortar-lhe as mãos porque havia pecado contra a castidade. O coração quase lhe parou no dia em que resolveu comungar sem confessar. Mas a hóstia parecia um biscoito de polvilho, era bom demais.

Os quintais das casas eram adjacentes, separados por cercas de madeira. Acabava de almoçar e corria a chamar os amigos: - Vamos jogar botão, bolinha de gude, ping-pong, brincar de casinha, e...

Acabara de derrubar o copo de refrigerante no chão. A ala oeste da praça de alimentação olhou. Uns riam, outros falavam com a boca cheia.

Lembrou de Paulo de Tarso olhando o comércio no Sinédrio, nos templos e sinagogas. Lembrou da dor que sentiu no peito e do olhar compadecido sobre as ovelhas desgarradas. Estava ali, desgarrado num lugar hostil, cercado de modernidade.

Limpou as calças com o lenço e fugiu dali com o rosto vermelho de vergonha, e raiva também. Chegou em casa e chorou por ainda não saber domar o coração, e aceitar os que não entendia.

Abriu "Paulo e Estevão" pela milésima vez e varou a madrugada tentando aprender. Releu o diálogo de onde buscava a fonte límpida que lhe saciasse a ignorância teimosa...

..................

- Saulo, para certeza da vitória no escabroso caminho, lembra-te de que é preciso dar: Jesus deu ao mundo quanto possuía e, acima de tudo, deu-nos a compreensão intuitiva das nossas fraquezas, para tolerarmos as misérias humanas...
O moço tarsense notou que Estêvão, nesse ínterim, se despedia, endereçando-lhe um olhar fraterno.

Abgail, por sua vez, apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino desejaria prolongar a deliciosa visão para o resto da vida, manter-se junto dela para sempre; contudo, a entidade querida esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se, então, por catalogar apressadamente suas necessidades espirituais, desejoso de ouvi-la relativamente aos problemas que o defrontaram. Ansioso de aproveitar as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo alinhava mentalmente grande número de perguntas.
- Que fazer para adquirir compreensão perfeita dos desígnios de Cristo?
- Ama! - respondeu Abgail espontaneamente.

Mas, como proceder de modo a enriquecermos na virtude divina? Jesus aconselha o amor aos próprios inimigos. Entretanto, considerava quão difícil devia ser semelhante realização. Penoso testemunhar dedicação, sem o real entendimento dos outros.
- Como fazer para que a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com Jesus?
- Trabalha! - esclareceu a noiva amada, sorrindo bondosamente.

Abgail tinha razão. Era necessário realizar a obra de aperfeiçoamento interior. Desejava ardentemente fazê-lo. Para isso insulara-se no deserto, por mais de mil dias consecutivos. Todavia, voltando ao ambiente do esforço coletivo, em cooperação com antigos companheiros, acalentava sadias esperanças que se converteram em dolorosas perplexidades.
- Que providências adotar contra o desânimo destruidor?
- Espera! - disse ela ainda, num gesto de terna solicitude.

Não desdenharia as oportunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em toda parte medrava a confusão nos espíritos, as criaturas pareciam igualmente desinteressadas da verdade e da luz:
- Onde a liberdade de Cristo? Onde as vastas esperanças que seu amor trouxera à humanidade inteira, sem exclusão dos filhos de outras raças? Concordavam em que se fazia indispensável amar, trabalhar, esperar; entretanto, como agir no âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas lições do Evangelho com a indiferença dos homens?
Abgail apertou-lhe as mãos com mais ternura, a indicar as despedidas, e acentuou docemente:
- Perdoa!...










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