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Contos-->Alice -- 23/04/2003 - 14:04 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ALICE







I

O que leva uma mulher a incitar um homem a cometer os piores comportamentos? Se não entendeu ao que eu quis dizer, se ainda não passou por isso, eu vou falar abertamente do infortúnio que me abateu. Pois meu alimento dia e noite tem sido entender como pude ser levado a esta prisão com mosca zoando em meus ouvidos o tempo todo e, às vezes, até camundongo andando para todos os lados da cela com colchão rasgado, cheirando à merda, e que parece uma tábua de tão dura que é, justamente porque eu deixei meus olhos me guiar. Não devíamos ter olhos porque, embora quase do tamanho de uma bolinha de gude, são martírios para quem os tem, e são por eles que as cadeias estão cheias e os hospitais cheios de doentes de todos os tipos.
Eu não merecia estar aqui neste pequeno inferno esquecido pela rudimentar limpeza sanitária. Não merecia estar aqui à mercê de inescrupulosos interrogatórios sem fim. Eu lhes peço uma coisa: não me tenha pavor porque tomei uma atitude radical por causa de uma mulher deficiente, nem lastime por minha vida porque a sociedade perde mais um respeitado cidadão, como apregoa os jornais.
Nada melhor e mais legítimo do que ouvir a versão dos fatos por uma das partes. Verá que o demônio de carne e osso utiliza métodos e circunstâncias em que nada lhe é desfavorável. Ele usa quem e o quê lhe parecer bem às suas ciladas. Todos os momentos são oportunidades únicas para ele agir. Verá também que o empresário pão-duro, como me chamou esta manhã um precipitado jornal local, é somente um ser humano que tentou se entender.
Mas que não soube ao menos se defender de Alice – este era o seu simples nome – em uma manhã de um dia qualquer de maio, quando ela apareceu batendo em minha porta a procura de emprego, pois trazia os classificados de um jornal em mãos. Quando a vi, o meu conceito de beleza mudou completamente. Aquela mulher em minha frente, alta, corpo de modelo, pois estava vestida em um jeans apertado realçando as longas pernas, blusa cotton branca, salto quinze, rosto anatômico condizente com o corpo que tinha, grandes olhos de tigresa (ah, que olhos lindos que não esqueço!), cabelos loiros acastanhados e cacheados até o quadril. Ela não podia estar procurando emprego! Não podia ser que a perfeição em beleza estivesse ali em minha frente me pedindo algo que eu podia dar e de sobra.
Ainda tentei desviar o olhar pois o seu olhar tinha um quê de feitiço daqueles dos contos de fada que normalmente não vemos nas pessoas. Eu nunca tinha visto um olhar de animal e incomparável beleza em uma só pessoa, que tinha tudo em abundância – abundância de pernas, abundância de seios e abundância de cabelos. Quanto mais a olhava, mais obcecado ficava, e mais longe iam os meus pensamentos. A exuberante paisagem instantaneamente me trouxe – isto eu não minto – tranqüilidade ao coração. Coisa que eu não sentia há tempos, pois a minha pequena empresa de fiação e tecelagem enfrentava na justiça ação da concorrente alegando prejuízo por dumping. Não me lembro por quanto tempo demorou o entreolhar, mas finalmente eu lhe pedi para entrar.
Ela sentou-se no sofá, mas a intranqüilidade estranha por estar ao lado de uma mulher de beleza inigualável me fazia levantar e sentar. Não sabia se olhava para o chão, para o seu corpo ou para os seus olhos. Preferi olhar para um pequeno quadro em tela de autor desconhecido, que o vento balançava, à sua esquerda, já que eu não conseguia fixar o olhar naqueles olhos de animal feroz. Fiz-lhe, então, a primeira pergunta.
— Você quer trabalhar como doméstica, então?
Não obtive resposta. Tornei a repetir a pergunta, mas novamente sem retorno. Fiquei realmente intrigado. Enquanto isso, a mulher abria a bolsa. Ela pegou um pequeno caderno e uma caneta. Escreveu alguma coisa, que me fez arregalar as sobrancelhas. Arrancou a folha e me mostrou.
A folha dizia: quero, mas eu sou muda.
Recuei-me por instantes. Quer dizer que aquela mulher, digna da capa de qualquer revista de moda, com certeza a mulher mais linda que já tinha visto, era realmente muda? A sala tomou um incrível silêncio. Não tinha notado que ela já se preparava para ir embora por causa do silêncio que me tomou, pois entendeu que fosse um não dado sutilmente. Então lembrei que tinha feito curso sobre linguagem de sinais para deficiente. Como dono de empresa, tive que aprender linguagem de sinais pois a legislação municipal nos obriga a contratar funcionário deficiente. Agora não sabia como recomeçar o diálogo pois eu estava desconcertado com a revelação. Custava-me a acreditar que a mais gata das mulheres fosse muda. Um crime contra a perfeição do criador, pensei.
A incerteza me apertara a garganta. Pois realmente eu precisava de alguém, mas uma empregada muda não estava em meus planos. Ter uma empregada de olhos tigresa que apareceu assim do nada, e olha que eu não acredito em mágica nem em duende – também não estava em meus planos.
Lembrei que a empregada que eu despedira era o oposto. A doidinha da Seixas com freqüência me fazia perguntas sem sentido. Intrometia em coisas que não lhe dizia respeito e tratava mal as paqueras que eu levava para casa. Ciúmes de empregada? Não sei. Então eu precisava de alguém que não se opusesse ao meu estilo de vida liberal. Quem sabe estava aí a oportunidade única de que eu tanto precisava. Alguém mudo jamais vai falar coisa de mais nem de menos. Se tivesse algo contra, teria dificuldade em se expressar. Nem todo mundo sabe linguagem de sinal.

II

Contratei-a. Disse-lhe que, pela linguagem de sinais, se quisesse se acomodar por aqui, a casa tinha dependência completa de empregada. Embora fosse empresário, sempre cultivei uma vida simples. Não tinha segurança pessoal e vivia em uma modesta casa nas proximidades do centro que não correspondia ao meu padrão superior de renda.
Mas me veio algo. Alice me havia trazido perplexidade. Geralmente empregada não é muito bonita. Pode ser lá que tenha uns atributos que ofusquem o rosto comum. Os atributos de Seixas eram o bumbum sensual que ela fazia questão de mostrá-lo em minissaia pela casa. Eu fazia de conta que não via nada, por puro respeito, já que era casada. Quanto a Alice, como já disse, ela tinha atributos até exageradamente demais para uma mulher em atividade errada, e que buscava a profissão errada.
Já com pouco tempo trabalhando em casa, não obstante, fiquei admirado com os seus serviços. A casa sempre estava limpa e a comida muita boa, embora sempre achasse que mulher bonita não fosse boa cozinheira. Tal a surpresa. Por isso que não via a hora de chegar em casa e desfrutar da sua presença silenciosa que me atraía feito o toque de recolher que somente eu ouvia. Apesar de gostar de vida agitada, eu era tarado pelo silêncio. Mas por mulher silenciosa – que não falava uma gota de palavra – só agora eu estava descobrindo. O seu silêncio me transmitia a vida que parece não existir na fala e, principalmente, uma sensualidade velada.
Assim, a nova empregada mudou radicalmente o meu comportamento. Eu sempre levava os amigos em casa para tomar uma bebida depois do expediente de trabalho; às vezes, mais de uma vez na semana. Depois que Alice chegou, abandonei o costume. Tentava de todas as formas afastar de casa os colegas, que eram funcionários da empresa. Arrumava desculpa dizendo que precisaria de tempo para analisar os últimos balancetes. Eles provavelmente não entenderiam porque eu tinha contratado uma deusa que resolveu virar gente.

III

Tudo isso foi ingrediente para eu ocultar um verdadeiro sentimento: a paixão crescente pela tigresa, de quem não sabia um til. De onde tinha vindo Alice? A pergunta que ela não soube me responder, porque, segundo o que entendi por seus gestos, fora deixada em um orfanato ainda criança, onde sempre viveu, e dali nunca saiu. Se alguém lhe perguntasse onde era o orfanato, não se lembrava. Nunca conheceu a cidade, porque a cidade era para quem tem vida, e a vida para ela lhe foi negada. Alice virou admiração e mistério para mim.
Toda vez que a olhava arrumando a casa ou fazendo alguma outra tarefa, eu recusava a crer que a mais bela das mulheres fosse muda; e, além de muda, amnésica. Isto mesmo, ela sofria de amnésia. É bem verdade que, agora, eu tinha elementos de sobra para despedi-la. Como ficaria com alguém que não soubesse do seu passado? Que não tinha carta de recomendação que, aliás, eu sempre exigia, como exigi e obtive da Seixas? Porém o meu senso cristão falou mais alto. O excesso de zelo pode matar as boas intenções. Eu devia preservar-lhe o emprego. Pronto.
Não imaginava que a convivência muda com Alice me levasse à obsessão por sua presença. Quanto mais eu ficava perto e a olhava, mais queria tê-la em meus braços, casar-me, pois o matrimônio sempre me fazia fugir das bem intencionadas, e ter filhos; a cumprir, assim, os desejos dos meus pais, ditas, curiosamente, antes de acidente de automóvel que resultou na morte de ambos. Queriam herdeiros para povoar o mundo. Compreendo os seus desejos, pois só tiveram a mim.
Mas vejam bem como os desejos dos meus pais estavam se cumprindo. Alice me dominava sob todos os aspectos; ditava o meu comportamento sem dizer uma só palavra. Eu cumpria a sua vontade sem argumentar, contrariando a minha natureza questionadora.
Não mais que dias o desejo de namorá-la foi se cumprindo. Fomos nos tornando íntimos pela freqüente conversa sobre todos os assuntos. Parecíamos um casal que se conhecia há tempos. O formalismo, que geralmente há entre dois jovens para começar o namoro, no nosso caso não houve. Nos tornamos uma só carne, como diz as Escrituras Sagradas, porém sem as bênçãos da igreja.
O intenso sexo que rolou entre nós durou a noite toda. Nunca tinha sentido prazer semelhante com outra mulher. Para recuperar as forças, após o intenso prazer, normalmente a pessoa dorme para relaxar ou dirige-se à cozinha para matar a fome. O estranho que isto não me veio. O que me veio tenho vergonha de contar. Reconheço que não me resta outra alternativa. Fluiu, bem, fluiu em mim o desejo de beber sangue de animal. O estranho desejo tomou as minhas entranhas voluptuosamente. Logo eu que tinha repugnância em ver sangue, principalmente quando ia ao açougue comprar carne.
Porém ali na cozinha ignorei a repugnância. Descongelei toda a carne do freezer e suguei-lhe o líquido até se fartar. Saciava-me, quando Alice juntou-se a mim, me tomando a carne que ainda restava; mas também empurrou-me para o lado, como se disputasse a única comida. Como troco, empurrei-lhe também, caindo a uma certa distância além de mesa. Estranho que não reprovei a sua atitude nem ela a minha. Éramos lobos devorando a presa. Os bons costumes foram esquecidos. Ela bebeu como se fosse o único alimento. Fizemos uma coreografia de repugnância que me dá nojo lembrar.
Após um dia cansativo no trabalho, retornei para casa ávido por sua companhia. Eu a desejava fixamente. Pois o dia inteiro no trabalho só me fez mal. Tropeçava em coisas pequenas, trocava os nomes dos funcionários.
Achando que eu estivesse doente, chamaram um médico, que me recomendou repouso absoluto. Porém meu repouso era Alice. Assim que me viu, ela se atirou em meus braços, como uma fêmea sedenta pelo macho ausente que saiu a caçar.
Fizemos as mesmas armações, tão ardorosas quanto antes. A prescrição médica pouco me importava. Havia melhor remédio do que os braços de Alice? Eu percebia que toda vez que transávamos, eu me sentia melhor, e mais a desejava.
Quanto mais rolava sexo, mais a obsessão por ela aumentava, e mais a vontade de consumir sangue tomava as minhas entranhas. Um açougueiro amigo trouxe-me dez litros de sangue e cinqüenta quilos de carne vermelha. Todos os dias eu ligava pedindo-lhe a mesma quantidade. Ele achava estranho pois não via movimento de festa alguma, nem pessoa alguma em casa. Não podia recusar compra de um cliente endinheirado. Sentia-me viciado por Alice.

IV

Vários dias com Alice em casa. E também dias sem ir ao espelho. Lembrei-me do espelho ao constatar que todos eles estavam cobertos. Não tinha me atinado a isso. Só me fez lembrar de um fato, há dias atrás. Levado por curiosidade, aproveitando a ausência pela manhã de Alice, fui ao seu quarto. Não encontrei nada de suspeito, contudo, vi que o seu espelho estava coberto com panos.
O costume, se restringisse ao seu quarto, talvez fosse normal. Mas envolveu todos os espelhos da casa, inclusive da porta principal de acesso, que era toda de vidro. Estranhíssima à atitude de Alice.
Quando descobri um deles, tomei um susto que me apavorou, fazendo eu soltar palavras de maldição. Meu rosto, meus braços, meu tórax – todo o meu corpo, enfim, estavam com uma palidez comum a defuntos. Me desesperei.
O desespero se agravou quando senti minha pele perdendo a elasticidade de uma pessoa jovem, ganhando aquele aspecto rugoso de pessoa idosa. A juventude foi embora sem deixar rastros.
Liguei para o médico imediatamente. Contei-lhe as loucuras que tinha feito. Ele disse para eu ficar tranqüilo, porque o sangue é um líquido rico em muitas substâncias como o carboidrato e proteína. É claro que o seu consumo pode provocar diarréia e náusea. E a palidez de pessoa morta em meu corpo? E a minha pele branca que não parava de murchar, me deixando com aspecto de velho? O médico queria ir em casa, mas menti dizendo que iria ao hospital.
Chutei o telefone.
Já não queria Alice. Afastei-a dos meus lençóis. Não a queria de jeito nenhum. Perguntei-lhe porque ela tinha roubado a minha juventude, retribuindo o meu afeto com praga. Não me respondeu. A serenidade que havia em seu rosto tinha desaparecido. Movido por uma fúria, dei uns tapas nela. A fraqueza que me envolvia não permitiu que eu continuasse.
Após muito tempo calada, ela finalmente disse que eu estava muito bonito – mais bonito que antes. Dei-lhe mais um tapa. Pedi-lhe para que fosse embora imediatamente, porque ela tinha enfeitiçado meu corpo de academia. Não me obedeceu.
Embora eu sentisse estranhamente a morte chegando, pois a crescente tontura não devia ser outra coisa, Alice me procurava querendo sexo, como se fosse o alimento de sua vida, e querendo também beber sangue. Para ela tudo era sexo e sangue. Para se proteger, tranquei-me no quarto, pois não tinha forças nem para ir ao banheiro. Eu sentia forte diarréia e náusea. Eram a diarréia e a náusea me atacando por dentro, e Alice batendo cada vez mais forte na porta, como se me chamando de todos os nomes impublicáveis, se ela pudesse falar.
IV
No dia seguinte, sob escuridão no quarto, resolvi encarar a realidade que me sobreveio. Entreguei-me a Deus. Abriria a porta. Se fosse para perder a vida, que fosse com luta.
Peguei uma arma, que eu guardava debaixo da cabeceira. Quando abri a porta, nada de Alice. Procurei-a em todos os cantos da casa, mas não a encontrava. Lembrei que faltava o sótão, onde não ia há muito tempo. O sótão exalava cheiro de álcool. Não acreditei quando a vi dura que nem um tijolo sobre uma cama tomada por teia de aranha e pó de talco cujo cheiro era quase imperceptível. Vendo meu amor naquele estado, chorei feito uma criança que acabara de perder o valioso caramelo. Quando a toquei, impossível de acreditar no que senti. O corpo de Alice estava oco por dentro, pois era só bater que se ouvia o tilintar de um sino que o nosso corpo não possui. Ela se transformara em uma imensa boneca de plástico. Ela voltou a ser àquela manequim da vitrine da loja que roubei, já que os vendedores não podiam vendê-la. Perdi a mulher por quem me entorpeci de um devaneio.
Se o motivo de estar preso é esse, podem dizer que um empresário foi preso por causa de uma mulher que ele amou, pois, com toda certeza, o homem não é feito somente de tecidos de pele, mas também de fantasmas de todos os jeitos. Alice foi o espelho que meus impulsos criaram. Enquanto que a Alice de carne e osso me atraía, a Alice sem carne e sem osso eu repugnava. Alguém sem carne e sem osso não pode ser digerido. Ninguém digere a fantasia.
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