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Contos-->O empate. -- 26/04/2003 - 18:05 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O menino vivia solto no mundo. Brincava o dia todo. Nada o prendia e nem havia motivos para isso. Nessa época a violência urbana ainda não aprisionava as pessoas em suas casas. Diferente dos dias de hoje em que os passarinhos estão soltos e as pessoas presas em suas gaiolas, digo casas, nem sei mais a diferença (com tantas grades nas janelas).

O garoto corria, empinava pipa, jogava bola, rodava pião, jogava finca, fazia arapuca, criava animais no quintal, comia frutas colhidas no pé, tomava banho de córrego. Tinha dezenas de amigos, brincava de casinha com as meninas, de médico, de biloca. Ia mal no colégio, porém muito bem na escola da vida. O garoto fazia isso e muito mais coisas pra se divertir, tantas que o leitor de pouca idade, que não viveu nessa época, não pode fazer idéia de como ela era boa.

Num belo dia, comendo uma goiaba, uma pequena semente alojou-se numa cárie entre duas panelas na boca do garoto. O menino deu pouca importância para aquilo, tirou uma lasquinha de um galho fino da goiabeira e tentou retirar a intrusa. Sem sucesso. Um amigo lhe convidou para jogar bola. O menino aceitou rapidamente o convite, ele adorava futebol e todas as outras brincadeiras. Brincaram ainda de várias coisas e o dia morreu.

No outro dia cedo, durante a escovação de dentes obrigatória e fiscalizada pela mãe, o guri descobriu que a semente da goiaba ainda estava entre seus dentes. Escovou bastante o local, mas ela não saiu. Atrasado, como sempre, saiu correndo da casa para a escola e não conseguiu dar mais atenção à pequena intrusa incrustada entre os dentes.

Durante a aula, a língua do garoto não saía da região da semente. Pontas de lápis (nessa época lapiseiras eram um luxo só), papéis dobradinhos, lascas de madeira da carteira e outros recursos só foram suficientes para fixar ainda mais a famigerada semente.

Depois de dois dias de incômodo (na verdade a semente não incomodava a mordedura em nada, mas a simples existência da intrusa em sua boca lhe consumia a paciência) o garoto decidiu encarar o corpo estranho pelo espelho. Para tal, teve que arreganhar a bochecha e revirar os olhos para que através do reflexo no espelho pudesse ver a semente. Mesmo assim ele quase não conseguiu visualizá-la. Demorou um bom tempo, foi uma luta. Com uma mão segurava o espelho, com um dedo da outra mão puxava a bochecha. Mas lá continuava ela, com a língua sentia a superfície lisa e abaulada da semente, porém era muito difícil vê-la. O exercício com o espelho só ajudou a ferir a língua mais ainda. O menino enfiava palito de dente, de fósforo, tentava passar todo tipo de linha entre os dentes e nada da semente sair.

Ao fim do terceiro dia, a língua do menino já estava bem doente por conta das aftas e feridas que brotaram na região. Ela insistia, involuntariamente, em entrar em contato com os dentes próximos da semente que tinham cantos vivos numa região de difícil acesso, com dentes quebrados e cáries. Depois do quarto dia o menino já sofria de dor de ouvido e de cabeça por causa da maldita semente. Pensou até em fazer promessa de nunca mais comer goiaba, mas pensou melhor e voltou atrás, caso a semente saísse logo. Só prometeu que quando acontecesse de a semente sair ele a esmagaria bem devagar com um martelo para ela ver que o mais forte era ele. Nessa mesma época, um caldinho azedo de dente podre saia da região de onde a semente estava alojada.

O menino nunca tinha sofrido tanto com algo que lhe fora plantado no corpo. Nem berne ou frieira incomodava tanto. Era uma questão de honra arrancar o maldito carocinho de entre os dentes.

Chegou a pensar em falar com a mãe sobre o estava acontecendo, mas refletiu melhor. Pedir para ir ao dentista? Ir a um lugar onde se tem injeção e motorzinho numa mesma sala, voluntariamente? Sem estar correndo risco de vida? Nem pensar!

O garoto que era magro - daqueles que se destacam na multidão pelos enormes cambitos, nós dos joelhos, cotovelos, cabeça e olhos (parecia uma formiga) - agora carregava um ar de formiga anêmica, causado em parte pelas olheiras geradas pela semente de goiaba cravada entre os dentes. Não comia nem dormia direito. Não tinha sossego pra brincar, era um horror. Leitor, calcule, a semente atrapalhava nosso herói brincar e brincar era a razão de viver do nosso menino.

A idéia do dentista estava absolutamente descartada. No que mais pensaria? A solução tinha que ser rápida, ele tinha um espinho na carne. Pensou muito até que num estalo o menino teve a idéia de esguichar água de mangueira com bastante pressão entre os dentes, no local da semente até ela sair.

Tudo preparado - no quintal atrás de uma pilha velha de tijolos, a torneira toda aberta, a mangueira jorrando - o menino criou coragem, tapou a saída da água da mangueira o quanto pode fazendo a água sair num jato fino com bastante pressão e direcionou-o ao local onde a semente encontrava-se presa. A mistura de água fria com dente cariado produziu muita dor no garoto. A dor foi tamanha que lhe fez contrair o abdome, um ruído singular brotou de sua região nadegal. Leitor, nosso herói peidou. De dor (acontece).

Porém, um exame com a língua mostrou que aquele era o caminho. A semente cedera um pouco após a primeira sessão de água sob pressão. O sofrimento está no fim, pensou o garoto recolocando a mangueira na boca. Dessa vez ele demorou-se mais. Quando terminou, a semente não estava mais lá. Aliviado, todo ensopado de água, o garoto procurou desesperadamente pela semente. Procurou muito, mas não obteve sucesso. Empenhou-se mais, ele tinha certeza que a acharia. Procurou no chão sujo do quintal, seria impossível encontrá-la. Mas a essa conclusão o menino só chegou após quase uma hora de busca. Decepcionado, o garoto nem desfrutou a liberdade adquirida com a saída da semente intrusa de sua boca. Ele queria cumprir a promessa de esmagá-la. Mas não pode, empatou em um a um com a semente.

Minutos depois nosso herói pôde ser avistado pendurado na mesma goiabeira que indiretamente lhe causara tanto mal. Empanturando-se de goiaba. Pra comemorar. Coisa de criança sadia.
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