EULÁLIA – CAPÍTULO V – FINAL
(Depois de longo e tenebroso inverno... Fogos, rojões e bandeirolas! Acabou, para alegria dos meus milhares assíduos leitores. Vamos lá.)
CAPÍTULO V.
Ela voltava para dar-lhe remédio, esvaziar o urinol, trazer-lhe água. Entrava e saía sem falar, mas não deixava de sorrir.
- Abestada ela não é – pensava – faz tudo direito, bem limpinho, mas não fala nada... e fica rindo à toa! Sei não...
O tempo que tudo cura, passou, e Zé Maria recuperou as forças, já caminhava de mansinho, sentava-se ao sol. A casa cuidada e a ordem em suas coisas o satisfaziam, mas, o silêncio entre os dois era insuportável.
Eulália passou a armar sua rede no canto da sala; enrolava-a já bem cedinho e punha-se a trabalhar com gosto. A presença do homem era-lhe agradável e o seu cheiro ficava-lhe entranhado nas narinas, quando ele passou a sair para fazer pequenos serviços ao redor da casa. Na hora certa, ela levava-lhe um alimento ou remédio e voltava a lidar na trabalheira do sitio, como se sempre ali tivesse morado.
A roupa estendida a quarar, o ferro a espocar fagulhas,
a cozinha a recender, foram dando notícias de sua presença e incorporando-a à casa. Um café na hora certa, ou mesmo inesperado... Mas quando um dia, dia radioso, em que Zé Maria se refestelava na rede, de baixo de um cajueiro e ela surgiu de cuia d’água, sabão, uma toalha branca, mais a navalha nas mãos... ele se entregou. Deixou que as mãos morenas espumassem sua barba de muitos dias por fazer, que os dedos gentis lhe esticassem a pele, que lhe raspassem a cara e a escanhoassem. Sorrindo, apenas sorrindo, ela se aproximou e o barbeou com a maior naturalidade do mundo e não se pejou que seus olhos amarelos percorressem o seu rosto e descessem pelo pescoço e mergulhassem, encantados, nas profundezas do seu decote. Sorrindo, sempre sorrindo, ela partiu e deixou-o abismado com o que ela havia feito, sen titubear, sem pedir licença.
Acostumado com a solidão, Zé Maria começou a sofrer. A presença dela punha-o nervoso, alerta; via-se tratado e cuidado, como os muitos animais do sitio; com segurança, eficiência e rapidez. Depois tornava a ficar sozinho, a senti-la pela casa, a buscá-la com os olhos pelos cantos. Passou, então, a se afastar, para cuidar da horta, da roça e, mesmo assim, ela vinha trazer-lhe um angu bem feito, um copo de leite de cabra e partia, deixando o seu cheiro empastado nos seus sentidos,agora já bem alertas.
As noites tornaram-se longas. Enquanto ela se entregava a um sono reparador, ele se retorcia na rede, a imaginá-la e senti-la na sala...
- Ela é minha mulher... – pensava – mas se eu toco nela o padre não vai poder levá de volta... ela já andou por aí... mas eu não posso abusar de quem me cuida! Home devia ser como bicho: sujeita a fêmea e, pronto!
Um dia, ele acordou bem cedo e partiu para roça, sem se alimentar. Dormira muito mal. Queria espairecer a noite de insônia.
Logo depois, Eulália veio ao seu encontro e trazia, como sempre, o seu alimento. Vinha séria e, enquanto ele comia, sentado na grama úmida de orvalho, ela sentou-se ao se lado e falou:
- Seu Zé, eu vô embora hoje, com o padre. O senhor já tá bom, já pode se cuidar sozinho. Num é home que precise de mulher, não; eu tô atrapalhando a sua vida.
Parou um pouco de falar e, olhando com muita tristeza, completou:
- Vô voltá pra zona...
Zé Maria fitou-a estarrecido. Seus olhos percorreram aquele corpo bonito, desceram pelas suas pernas, contemplaram os pés pequenos e, num rompante, deixou cair o prato e se atirou sobre ela. Derrubou-a sobre o mato ralo e procurou-a com as mãos frementes. Eulália envolveu-o com carinho e se entregou com doçura.
As folhas da relva estalavam, se amassavam. O cheiro do mato esmagado misturava-se com o cheiro de seus corpos; havia fúria, fome, ânsia no seu encontro. Beijos estalados fendiam o ar, resfôlegos e gemidos os acompanhavam... Depois a lassidão, o repouso, aquela moleza, aquele cansaço gostoso...
Tendo ainda o corpo de Eulália junto ao seu, aquela beleza de corpo recendendo a sabonete, Zé Maria fitava as nuvens: quanta paz! Quanto prazer! Mulher é bicho bom demais!
Os olhos amarelos de Zé Maria voltaram-se para os negros e profundos olhos de Eulália:
- Tu ainda pensa em voltá? – perguntou, suplicante.
- Pra zona?
- Sim.
Lentamente, manhosamente e sorrindo, como era o seu natural, ela foi se levantando. Arrumou os cabelos, ajeitou a saia, juntou o prato e a colher e, cheia de felicidade respondeu:
- Num carece mais...
E partiu com a mesma naturalidade com que havia chegado.
THE END
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