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Contos-->Tinenti -- 13/05/2003 - 13:13 (Gildo Henrique) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A buzina do ônibus de Laerte fez um barulho danado enquanto a criançada, na estrada, seguia lá pros lados da Sussunga, pés descalços no asfalto novo feito chiclete; o sol a pino, só doido.

O ônibus que vinha lotado parou, desembarcou o pessoal e foi para Ponta Grossa como sempre, deixando para trás gente do Canto do Rio, da Vala do Mato, de toda a redondeza, que mais parecia procissão de Nossa Senhora da Penha, tanta gente que era. Gente e bugiganga, muita coisa mesmo: sacas de compras da cidade, malas e até bacia de alumínio, onde já se viu isso? O mundo todo cabia no Viação Siqueira, Deus me livre!

Era um Sábado e todo o povo de Tócos se preparava para o logo-mais-à-noite, as moças de braços dados a correr coxia, rondando a praça; o cinema de Jair, o pique-bandeira. Depois era o Domingo com missa, a segunda-feira com preguiça e um deus-nos-acuda para se calçar o alpercata e ir pra Dona Bezinha fazer ditado e aquelas contas de dividir que não tinham nenhum cabimento. Ninguém ia querer sair fazendo conta quando fosse grande e nem provar pra ninguém que o sabia o ivo-viu-a-uva do primeiro livro de leituras.

Fazia um calor desgraçado e a poeira da rua grudava no corpo todo. Falavam que iriam asfaltar tudo até a Praia do Furado, que nada. Entra ano, sai ano, só vai até a praça e olhe lá. Enquanto isso, tome poeira na cara; poeira e fuligem da Usina Paraíso caindo do céu feito neve preta, as mulheres a xingar preocupadas com a roupa no quarador.

Atravessando a cerca de gaiolinha – o povo de Ponta Grossa diz bardo de dedinho – que margeia a estrada do lado direito de quem vai pra Goytacazes, dá pra ver o charco que as crianças chamam de lagoa e costumam tomar banho em pequenas valas que, dependendo do lugar, cobrem até um homem. Foi pra lá que Chiquinho, Amô, Amarinho Tupã e o resto do bando teimaram de ir. Duvido se as mães deixaram, o pregador na boca contorcida, a roupa no varal, a cabeça virada pro lado, olhar de boitatá:

- Te corto no cinteiro!

Os meninos não prestavam. Eram a corda e a caçamba: onde estava um todos estavam em corriola. Era atrás dos foguetes da festa, era na bola de gude, em tudo. Tinha dia que sumiam, só voltavam lá pelas tantas, já depois da Voz do Brasil.

Depois da cerca, a lagoa. O último a chegar é mulher do sapo. E, na correria, ficavam pra trás os meninos de Preta, uns tiquinhos de gente metidos a bestas. Cai fora!

Nada foi diferente naquele dia. Tudo bonitinho como manda o figurino, cada um querendo exibir novos saltos mortais na água. O circo ia embora, as acrobacias ficavam na alma dos artistas de araque, uns até com queda pro negócio, diziam.

Chiquinho saiu da água uma arara, querendo matar Deus e o mundo. Não é que esconderam a sua pipa novinha em folha, feita por ele mesmo com papel de seda comprado na venda de Seu Domingos? Que inferno! A gente coloca a merda num lugar e vem uma peste e tira. Assim não dá! Reuniu todos no capim molhado e passou um sabão:

- Vamos parar de brincadeira! Dou porrada em todo mundo! Cadê a cafifa?

Deus do céu, que menino impertinente esse Chiquinho! E aqui carece uma explicação: o certo é Francisquinho como a mãe reclamava; o pai é que é Chiquinho. Mas isso não vem ao caso. Era Tinenti e está acabado. Se bem que esse apelido veio depois, quase saindo do Grupo Escolar. Tinenti...

- Qual cafifa? Essa?

Amarinho Tupã franziu o cenho, tirou de trás de uma moita de tabúa uma pipa verde-amarela. A confusão estava formada em plena Copa do Mundo.

Num relance, ouviu-se o quebrar da armação, os rasgar da rabiola, o chuá da gurizada emudecida saindo da água, engolindo em seco, diante de tamanha coragem. Quem se atrevia a provocar Chiquinho na sua zanga?

Pois, foi que de repente o dito cujo ficou vermelho feito rebenta-cavalo enquanto cerrava os punhos e trincava os dentes. Dodô e Tuinho, que estavam bem no caminho dos dois, pularam fora e se agacharam, ocupando seus lugares na roda que se formou. Tudo pronto para o duelo. Giuliano Gemma e Lee Van Cleef. Olhinhos atentos na tela do cinema de Jair; cada frase, decorada como no livro de leituras, mas não dá tempo pra gente ler direito. Droga!

Os dois se agarraram e rolaram barranco acima barranco abaixo. Um, seco e tisguento; o outro, preto de sol e desdentado. Primos entre si. A tal da Matemática tem umas coisas engraçadas...É pontapé, é bordoada, é pescoção. Dentro dágua a coisa ficou feia porque não dava pé e eles se batiam, chovendo na platéia.

Já não podiam mais continuar com a briga. Era tratar de sair da vala. Em Bangazal, um tal de Pedro morreu assim, diziam, não fazia muito tempo. Ou foi na cacimba? Era sair logo que a coisa estava preta. Chegar pra beirada, se agarrar na moita de capim e pronto: ganhar o caminho de casa e fingir que não houve nada. Um banho quentinho e correr até a praça, os homens no quiosque falando de Vavá e de Garrincha. Como canta bonito essa tal de Adelma Rodrigues que o vereador trouxe pra cantar no show do coreto!...

Cansados e ofegantes, afastaram-se cada vez mais pro meio. Ninguém dizia que era tão fundo. E agora?

Caum, já no comando da tropa terrestre, tratou de tomar a dianteira. Um zum-zum-zum tremendo, uma gritaria, um corre-corre medonho. Os espectadores, ainda há pouco em estado de graça na euforia do combate, estavam mais para a iniciativa, para o medo; os olhinhos pisca-piscando como nunca, corações aos pandarecos, mula-sem-cabeça, lobisomem, alma-do-outro-mundo. Depressa como isso, Amô! Pelo outro lado! Três já estavam em cima do galho de espinheiro, arco de bodoque, recurso salvador. Só Deus mesmo, tesconjuro!

Chiquinho apareceu, segurou na mão de Caum e estava a salvo. Amarinho Tupã ganhou a mão de Chiquinho e também estava a salvo. Estavam de bem de novo. Coisa de criança, besteira esse negócio de brigar por causa de pipa. Viu no que deu?

O sol, cortando o canavial, veio vindo, veio vindo, se escondeu lá nos Araújos, pintando de vermelho o fundo do céu e fazendo douradas as nuvens de algodão que disparavam raios sobre os eucaliptos.

Salientes na paisagem, lá em cima, as duas torres da usina podiam espiar até o finzinho da festa das cores que roubava a claridade para o outro lado do mundo.

Seu Domingos Machado, aquele das iniciais na fivela do cinto, saiu da venda, olhou três vezes para o alto, apanhou a vara de bambu e acendeu a luz dos postes da rua. Nos quintais as galinhas disputavam os galhos baixos das goiabeiras. Aqui e ali, o coro uníssono das cigarras. Pelas janelas abertas escapava o som dos rádios, todos envolvidos na magia dos acordes da Ave-Maria, a música vinda de dentro da terra feito cheiro de chuva no chão. Uma tristeza tão grande, uma melancolia, uma vontade de morrer...

Mário Pipoqueiro pedalava a bicicleta, a carrocinha acesa, o sininho fazendo blim-blim, enquanto as moças do Beco se comprimiam no canto da calçada, a fofoca a todo vapor, rabo-de-olho varrendo de ponta a ponta à procura de alguém. Umas doceiras, outras costureiras, todas caprichosas e benquistas; pés-de-boi para o trabalho. Sorte de quem casar com uma delas...

A praça enchendo de gente de toda a parte, uns até levando banquinhos que os de lá são poucos. O chão preto de besouros tontos com a luz fluorescente dos postes ao lado de canteiros de flores tão bem cuidados por Salvador.

As meninas brincando de roda, o falatório de gente grande sobre coisas que não interessam, um não-sei-quê tamanho sobre uma tal Revolução de dois anos atrás, Castelo Branco, tanto assunto, meu Deus!

- Quem quer brincar de pique-bandeira? – Chiquinho organizava, dava instruções; o dedo em riste alertando sobre as regras do jogo.
- Vamos sortear os lados – Caum mostrava presença.
- Aqui a bandeira! – Um galho na mão de Tuinho encerrava os preparativos para o início da brincadeira.
- Que Revolução, que nada!
- O rádio não fala em outra coisa...



O DIÁRIO DE AMARINHO TUPÃ

“Ainda há pouco amanheceu o dia. Um certo brilho nos capacetes coloridos dos trabalhadores das construções parece nos dizer que será um dia de muito sol. E eu, aqui, remoendo, vasculhando um passado tão distante, escondido nos canaviais do tempo, polícia-e-ladrão”.
Esses automóveis me irritam e esse café está uma droga.
Jornalismo. O mundo dá tantas voltas...O que mais interessa agora é entregar essa matéria na redação. Dependo dessa entrevista que ele me prometeu ontem à noite.
Parece que o mundo todo está cantando Coração de Estudante na voz de Milton Nascimento. Tancredo morreu...
O elevador principal do Edifício Santa Lúcia desceu lotado.
Não fosse esse corre-corre da multidão, não fosse essa pressa infernal, eu saberia o porquê de ele não ter aparecido até agora. Tudo é tão rápido, tão desesperador! Lembro-me ainda daquela sua mania de esquecer as coisas. Nem o ensino militar o endireitou. Pau que nasce torto morre torto.
“Dia desses esquece a cabeça” diziam no tempo do ginásio.
Dessa vez o Capitão Francisco não esqueceu a cabeça, mas o quepe. Eis o homem, nosso alvo. Lá está ele fechando a janela, oitavo andar, muito preocupado com os destinos do Brasil.

Ibirapuera, São Paulo-SP, 21 de abril de 1985.”




e-mail de Gildo Henrique: tupanb@hotmail.com

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