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Contos-->Contra os ventos do descrédito imbecil e xenófobo... -- 14/05/2003 - 09:08 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pai anão a reconhecer filhão
 
ALVÍSSARAS À LUSOFONIA
 

Rubem Fonseca
 
No Jornal 24 Horas de 14.05.2003
Por António Torre da Guia
 
Galardoados Brasileiros
Com o Prémio Camões = 100.000 Euros
1990 - João Cabral de Mello Neto
1993 - Rachel de Queiroz
1994 - Jorge Amado
2000 - Autran Dourado
2003 - Rubem Fonseca
 
A 15ª. edição do Prémio Camões galardoou este ano o escritor Rubem da Fonseca, mineiro de Juiz de Fora, que amanhã complementa 78 auspiciosos Maios.
 
Os amigos reconhecem-no e descrevem-no como pessoa de óptimo humor, afável e de convivência extremamente simples que pende para a discrição e adora o anonimato.
 
Viúvo e com três filhos, Rubem é formado em Direito e exerceu diversas actividades, entre elas a de polícia, antes de se aplicar por inteiro à literatura.
 
Os seus livros, além do Brasil e de Portugal, estão publicados nos EUA, Inglaterra, França, Espanha, Holanda, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Polónia e ainda em vários países da América Latina.
 
Foi agraciado e premiado no Brasil pela Fundação de Cultura Brasileira, Câmara do Livro de São Paulo, Associação Paulista de Críticos de Artes, União Brasileira de Escritores e também recebeu em Itália o Prémio Giusseppe Acerbi.
 
Do seu robusto acervo literário fazem parte roteiros de filmes e excelentes prosados novelísticos.
 
Alguns títulos de Rubem Fonseca:
O Caso Morel
A Grande Arte
Agostos
Romance Negro
Histórias de Amor
Secreções, Excreções e Desafios
Os Prisioneiros
A Coleira do Cão
Feliz Ano Novo
O Homem de Fevereiro ou Março
O Cobrador
 
Um conto do Autor
Livro de Ocorrências
 
1.
Investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.
Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.
Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço.
Foi o seu marido que fez isso?, perguntei.
Não foi por mal, doutor, eu não quero dar queixa.
Então por que a senhora veio aqui?
Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora? Não.
Miro suspirou. Deixa a mulher ir embora, disse ele entre dentes.
A senhora sofreu lesões corporais, é um crime de ação pública, independe da sua queixa. Vou enviá-la a exame de corpo delito, eu disse.
Ubiratan é nervoso mas não é má pessoa, ela disse. Por favor, não faz nada com ele.
Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu havia convencido um sujeito a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei na Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com decência.
Um homem alto e musculoso abriu a porta. Estava de calção, sem camisa. Num canto da sala havia uma barra de aço com pesadas anilhas de ferro e dois halteres pintados de vermelho. Ele devia estar fazendo exercícios quando cheguei. Seus músculos estavam inchados e cobertos por grossa camada de suor. Ele exalava a força espiritual e o orgulho que uma boa saúde e um corpo cheio de músculos dão a certos homens.
Sou da Delegacia, eu disse.
Ah, então ela foi mesmo dar queixa, a idiota, Ubiratan resmungou. Abriu a geladeira, tirou uma lata de cerveja, destampou e começou a beber.
Vai e diz para ela voltar logo para casa senão vai ter.
Acho que você ainda não percebeu o que vim fazer aqui. Vim convidá-lo para depor na Delegacia.
Ubiratan atirou a lata vazia pela janela, pegou a barra de ato e levantou-a sobre a cabeça dez vezes, respirando ruidosamente pela boca, como se fosse uma locomotiva.
Você acha que eu tenho medo da polícia?, ele perguntou, olhando com admiração e carinho os músculos do peito e dos braços.
Não é preciso ter medo. Você vai lá apenas para depor. Ubiratan pegou meu braço e me sacudiu.
Cai fora, tira nojento, você está me irritando.
Tirei o revólver do coldre. Posso processá-lo por desacato, mas não vou fazer isso. Não complique as coisas, venha comigo à Delegacia, em meia hora estará livre, eu disse, calmamente e com delicadeza.
Ubiratan riu. Qual é tua altura, anãozinho?
Um metro e setenta. Vamos embora.
Vou tirar essa merda da sua mão e mijar no cano, anãozinho. Ubiratan contraiu todos os músculos do corpo, como um animal se arrepiando para assustar o outro, e estendeu o braço, a mão aberta para agarrar o meu revólver. Atirei na sua coxa. Ele me olhou atônito.
Olha o que você fez com o meu sartório!, Ubiratan gritou mostrando a própria coxa, você é maluco, o meu sartório!
Sinto muito, eu disse, agora vamos embora senão atiro na outra perna.
Pra onde você vai me levar, anãozinho?
Primeiro para o hospital, depois para a Delegacia.
Isso não vai ficar assim, anãozinho, tenho amigos influentes.
O sangue escorria pela sua perna, pingava no assoalho do carro. Desgraçado, o meu sartório! Sua voz era mais estridente do que a sirene que abria nosso caminho pelas ruas.
2.
Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.
Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.
Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, "para salvar a alma do anjinho". Foi impedida. Com os outros espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.
Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?
Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.
Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, da para fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.
Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos. Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso.
No caminho da delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.
3.
Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.
Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.
O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar vinha um odor de cebola e alho fritos.
A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.
Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas a mulher quando o perito Azevedo chegou.
No banheiro, eu disse.
Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.
Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.
Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é?  Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem franzino, e barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um boneco de cera.
Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.
Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.
Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.

Conto extraído do livro "O Cobrador", Ed. Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, pág.127
 
 
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