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Contos-->O Chalé dos Imortais -- 14/05/2003 - 12:52 (Gildo Henrique) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este texto foi escrito por minha irmã Hilda.Sou tão íntimo dele, que parece ser meu.

....................................................................................

Dedico este livro
à memória de

Maria Rosa da Conceição Azeredo,
minha mãe,

cujos pacientes relatos
em tardes sonolentas
serviram de fonte
para a composição deste
álbum de família.

APRESENTAÇÃO

As pessoas não morrem, ficam encantadas.(Guimarães Rosa).

PREFÁCIO

Contar dos Imortais que habitaram o Chalé dos Azeredos é muito prazeroso. Eu acho um privilégio ter nascido aqui. Ter como referência esses antepassados tão ricos, não em bens materiais, mas em inspiração.
Quero falar de toda aquela época mágica, passando por uma galeria enorme de personalidades marcantes.
Desde Nhanhá, uma sinhazinha arrogante que viveu no Séc. XIX, até Nené, uma caipirinha “xucra” que nasceu no Caboio no início do Séc. XX.
Procurarei traçar um perfil desses seres que já ficaram encantados, como diria Guimarães Rosa, mas que continuam vivos em minha imaginação.
É com muito orgulho que deixo este “arquivo” para que futuras gerações possam conhecer um pouco de nossa família, de nossas raízes.
E um dia, quando se ouvir falar do chalé, alguém há de dizer: “vovó estava lá" ou "ela viveu lá para contar, para recordar e para se deixar de corpo, alma e inspiração”.
Hilda Conceição

I - A MISSÃO

Na penumbra do meu quarto, apenas uma tênue réstia de sol conseguia atravessar o velho telhado, detendo-se sobre a minha escrivaninha coberta de folhas de papel.
Observei a pequena luminosidade, ao mesmo tempo em que uma imensa paz interior me invadiu, fazendo com que todo o sofrimento dos dias anteriores fosse esquecido.
Não sabia precisar por quanto tempo eu teria ficado assim, estática, naquele estranho torpor.
Com os olhos semicerrados fiquei recordando cenas das últimas semanas e já imaginando que teria de me levantar e enfrentar a rotina daquela nova manhã. Foi quando reparei na posição da réstia de sol que funcionava como relógio. Nesse momento me dei conta de que já era bem tarde, o sol já estava a pino.
O que teria acontecido? Nunca acordei tão tarde. Fiquei atenta aos sons que viriam da rua. Não consegui ouvir nada. Fui ficando cada vez mais intrigada, levantei-me e fui caminhando pelo corredor.
Estupefata, percebi que o corredor estava diferente, bem mais escuro do que de costume. Quando me dei conta de que a casa parecia já não ser a mesma. Fiquei confusa. Em que sonho maluco eu havia me metido dessa vez?
Cheguei à cozinha e me deparei com um fogão a lenha, como nas minhas antigas lembranças do bangalô. As panelas fumegantes deram um toque de realismo e na chapa do fogão uma banana chiava, espumando de tão assadinha. Que sonho tão real!
Uma velhinha me sorriu e me ofereceu-me o fruto quentinho. Emocionada, reconheci Nhanhá, minha avó paterna. Eu nunca havia convivido com ela, mas sabia de suas histórias.
Nesse momento de magia, percebi que alguma coisa me levava a uma outra época em que a nossa casa era um chalé rústico que foi presenteado a Nhanhá no dia de seu casamento, para começar uma nova história.
As gerações se sucederam e eu percebi que estava ali para resgatar o passado, para relembrar um pouco de nossa gente. Essa era a minha missão. Eu fui escolhida para contar a história do Chalé dos Imortais.

II - O CHALÉ

O sol fugindo no horizonte contorna com seus reflexos dourado um romântico bangalô.
Revejo na minha memória como me foi pintado para sempre o chalé. Fruto de partilhas entre irmãos, a velha construção até hoje se mantém de pé, mas já não possui a beleza de sua arquitetura original. Algumas "adaptações" aqui, umas "puxadas" ali, outros "remendos" acolá e o velho chalé resistiu ao tempo, senhor de todos os destinos e conhecedor de todos os segredos e maldições da Família Azeredo.
Conta-se que o eterno bangalô foi o presente que nossa avó paterna Nhanhá recebeu de seus pais, aristocratas falidos, que concedeu a mão de sua filha caçula, Ignácia de Azeredo Pires, ao seu primo José Henrique de Azeredo, numa tentativa de perpetuar a família.
O ano era 1890, o povoado era a antiga Vila de Santo Ignácio. Hoje o pequeno lugarejo se chama Pantaleão: um recanto pacato, a duas curvas do Distrito de Tócos.
Por causa da mão-de-obra escassa (os escravos, naquela época já estavam libertos e cobravam caro pelo serviço), os senhores fidalgos foram falindo, pois, já não podiam tocar a lavoura canavieira, outrora tão lucrativa.
Com o empobrecimento da família, o jeito foi juntar os últimos tostões e comprar o chalé em Tócos para a menina Nhanhá, aos dezoito anos, começar uma nova história. O chalé foi comprado do Seu Guilherme Morisson, figurão de Tócos, que até hoje dá nome a uma das ruas mais importantes do distrito.
Adornando a fachada principal, existia uma espécie de toldo como se fosse um babado trabalhado em madeira e pintado num tom verde-musgo bem ao estilo "art noveau" trazido pelos franceses, antigos proprietários da “Sociéte Sucrérie de Tocos”, atual Usina Paraíso.
Novamente revejo o chalé sob aquele longínquo pôr-do-sol...
O cenário se torna, de repente, uma paisagem em movimento. Uma revoada de andorinhas passa e repassa calmamente sobre a cumeeira do chalé, ornamentada com um galo feito em aço e pintado com cores vivas, guardando os pontos cardeais que norteiam as nossas vidas.
Subitamente, os pássaros, há pouco vagarosos, sobem, sobem, numa ânsia febril, rumo às alturas...
Que mensagem aquelas aves estariam levando ao infinito?

II – A CACIMBA

Antes, a tarde estivera abafada e quente. Depois, as nuvens se transformaram em grossos pingos e choveram em mim recordações de minha infância vivida no chalé.
Pedaços de histórias que minha mãe contava e que agora estavam vivas em minha mente.
Nos fundos do pequeno sítio que circundava o chalé, um buliçoso canavial ia e vinha ao compasso do vento, parecendo me saudar.
Mais ao fundo estava a velha cacimba de pedras onde a minha prima Noêmia havia se afogado há mais de cinqüenta anos.
Mas não era possível o que eu estava vendo agora. Uma menina de seus quatro anos estava sentada na borda da cacimba, olhando para seu interior, prestes a cair. Pensei comigo mesma: cheguei bem a tempo de salvar Noêmia e mudar o rumo da história.
Corri em sua direção. No exato momento a menina caiu na cacimba. À beira do poço só ficou uma pequena boneca de pano, única testemunha da tragédia.
Peguei a boneca com muito carinho como se fosse minha filha e, nos traços de seu rostinho bordado com linha grossa, notei um ricto de dor.
Noêmia jazia no fundo da cacimba, deixando de lembrança apenas aquela boneca.
Voltei andando devagar. Não quis olhar para trás para ver a cena que eu já sabia de cor, tão contada que foi ao longo da minha infância...
Até hoje aquele local,“lá pras bandas da cacimba velha”, é um território proibido, quase não se vai lá.
Dizem que logo após a morte de Noêmia, nasceu bem juntinho à cacimba um pé de contas-de-milagre, planta rara na região e que seria por muitos e muitos anos, um ponto de referência na história do Chalé dos Imortais.

V - NHANHÁ

Numa tarde de saraus, uma sinhazinha com seus dezessete anos passeia entre os convidados com seu narizinho empinado.
Lindíssima, talhe delgado, cintura de vespa. Com jeito coquete e nome pomposo: Ignácia de Azeredo Pires, minha avó Nhanhá.
Conta-se que sua bisavó, Dona Isabel, veio para o Brasil em 1808 com a Família Real Portuguesa.
Aos dezenove anos, Belinha era uma das damas de companhia da rainha Dona Carlota Joaquina.
Mais tarde Isabel se casou com um nobre da corte e veio para um engenho-de-açúcar, fixar residência no interior do Estado. Precisamente na região da Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes.
Do casamento de Belinha (Isabel) com Don Afonso nasceu Maria Francisca, avó de Nhanhá, que deu seu mesmo nome à sua filha única.
Maria Francisca acabou se unido a Miguel Taí, rico fazendeiro das redondezas. Dessa união nasceu Nhanhá, nossa heroína. Além de Ignácia (Nhanhá), o casal teve mais três filhos: Chica Pires, Pedro Azeredo e Zezé Pires, e gerações de fidalgos decadentes foram se formando...Os Taí.
Aos dezoito anos, Nhanhá se casou com seu primo e tiveram três filhos; Manoel, Aurélio e Amaro. Por ter somente filhos homens, sempre recitava o versinho:

Filhos de minhas filhas
Meus netos são.
Filhos de meus filhos,
Serão ou não.

Minha mãe Maricota levou o resto de sua vida magoada com a sogra Nhanhá, pensando ser ela mesma a autora da desditosa quadrinha. Eu também sempre achei.
Mas, dois anos depois da morte de mamãe, eu descobri que a infeliz trovinha pertence à cultura popular, e ela apenas repetia o que outras sogras impertinentes já recitavam há muito tempo.
Que pena que minha mãe, leiga, morreu sem saber. Mãe, perdoe Nhanhá...
Outra característica de Nhanhá era o seu desleixo com a casa. Ela detestava qualquer tipo de faxina.(Esta foi minha herança). Hoje eu entendo o porquê. Nhanhá foi sinhazinha, teve mucamas para fazer tudo. Por isso minha mãe quando brigava comigo para eu arrumar meu quarto, dizia que eu havia herdado a "preguiça de Nhanhá" que quando não queria arrumar nada, dizia:
- Eu nunca precisei fazer nada nos meus tempos de sinhá. Sempre tive mucama até para tirar meus sapatos.

V - MERCEDES

Outro local, palco de grandes romances é a velha mangueira, sob a qual me encontro. Recordo pedaços de histórias que me foram contadas e recontadas ao longo dos anos e acabaram virando verdade.
Observo a frondosa mangueira centenária. De repente surge do nada uma mocinha dedilhando um violão.
Quem seria? Poderia até ser eu mesma há muitos anos atrás. Mas, reparo nos trajes da garota e sei que nunca usei aquelas roupas dos "anos quarentas”. Aquela saia godê, aqueles saltos, os cabelos ruivos à Rita Rayworth e um broche dourado com a inicial M, só poderiam ser da minha prima Mercedes.
Convivi muitos anos com ela. Era mais velha do que eu uns vinte anos.
Com seu jeito faceiro, sempre foi a mais bonita das três irmãs. Teve da mãe todos os mimos que uma filha caçula pode ter, como contava minha mãe. Muito carismática, conseguia uma galeria de admiradores.
O seu romance mais famoso foi a paixão que teve por seu primo em segundo grau - gente dos Manteigas, apelido de uma das famílias de parentes ricos lá da Goiaba, lugarejo próximo a Tócos.
O célebre romance com Siedgrieff - esse era o nome do rapaz - até hoje me faz lembrar de Mercedes como se ela fosse uma princesa que se apaixona por um príncipe de um reino distante e que foi um amor impossível, como nas obras shakespeareanas.
Quando veio a decepção - porque o galante rapaz se casou com uma herdeira rica - Mercedes passou a vagar como uma sombra.
Muitos anos mais tarde, mas ainda bonita, acabou casando com um índio forasteiro que apareceu para mudar o rumo dos seus sonhos.
Dessa união nasceram sete indiozinhos lindos, alguns com cabelos ruivos e olhos claros, mas que herdaram do pai o gosto pela pesca.
Nunca mais eu soube dos filhos de Mercedes. Dizem alguns parentes que eles têm barcos no sul da Bahia.
Mercedes morreu há vinte anos e levou com ela todas as ilusões que uma menina pobre e bonita pode ter quando nasce para ser princesa e a vida lhe tira o príncipe encantado...

VI – CACHICHA

Francisca Pires de Azeredo ou Cachicha. Se Mercedes vive em minhas lembranças como uma princesa, Cachicha, eu a lembro como uma cigana bela e sedutora.
Prima do meu pai, casou-se com meu tio Amaro Henrique, seu primo também.
A encantadora Cachicha fisgou o seu primo Amaro por ser a mais bela das primas.
Uma vez, quando menina, ouvi a sua história e me lembro até hoje. Depois ela me mostrou um retrato antigo que pegou numa caixinha de veludo. A fotografia estava amarelada, mas nem o tempo havia conseguido apagar a beleza da jovem que sorria com olhos reluzentes.
Naquela foto de época, Cachicha estava com flores nos cabelos negros e uma blusa com babados. Parecia uma cigana.
Fiquei toda orgulhosa por ser sua parenta. Mais tarde, na frente do espelho do quarto de mamãe, com umas rosas de plástico empoeiradas nos cabelos, eu fazia trejeitos, caras e bocas, tentando imitá-la no retrato que ela havia me mostrado, achando-me até um pouco parecida com ela, apesar dos meus cabelos serem pretinhos.
Se a minha figura não era a mesma de Cachicha quando era nova, pelo menos aquela imagem serviu para eu me lembrar para sempre daquela tarde em que o espelho do quarto de mamãe se transformou num espelho mágico, onde eu pude me imaginar linda e sedutora como Cachicha aos dezoito anos.
Mas a vida foi passando, os desgostos foram chegando e a luz dos seus olhos diminuía a cada dia.
Quando finalmente já não enxergava mais, tatuando na escuridão, morreu completamente cega. Mas seu espírito continuou clareando o caminho de suas netas e bisnetas.
Ah, imortal Cachicha! O brilho de seus olhos não morreu: vai permanecer eternamente, por muitas e muitas gerações.

VII – MANÉ MARIA

Outra figura lendária da minha infância era o Sr. Manuel de Maria Pires ou Mané Maria para os parentes.
Esse era um primo longe de meu pai, que todos os anos vinha passar uma temporada com a gente. Foi o nosso “turista de plantão”.
Sempre que vejo pela TV jovens se dizendo moderníssimos porque vivem em casa de amigos, eu retruco: moderno que nada! Mané Maria já fazia isso há décadas. Ele dizia que não tinha residência fixa, vivia em casa de parentes.
Mané Maria foi na verdade o primeiro turista que eu conheci, uma versão antiga desses mochileiros que andam por aí, à deriva, sem rumo a seguir. Mané Maria foi um precursor desses “easy rider” dos filmes de aventuras, sem um porto seguro para ancorar, e que mesmo assim se dizem felizes.
Quando eu via Mané Maria apontar lá na curva da praça eu já gritava anunciando: “papai, papai, seu parente já rodou o mundo e está de volta!”
Então Mané Maria chegava e era uma festa: trazia bugigangas para todos do chalé: um canivete para papai, uma toalha de “matéria plástica” para mamãe e uma biribinha (bonequinha pequena) pra mim, enfim presentes para todos os gostos.
Aí Mané Maria contava suas andanças pelo mundo. Dizia que conhecia o Brasil de ponta a ponta, sempre em busca de parentes.
Quando ele já estava bem velhinho, veio passar sua costumeira temporada no chalé, já quase sem poder caminhar. Meu irmão Hélio ofereceu-lhe uma carona na sua motocicleta para que o andarilho famoso pudesse seguir viagem no próximo ônibus para a cidade.
Quando eles sumiram lá na curva da praça eu senti um aperto no coração. Eu sabia que aquela tinha sido a última vez que, em vida, Mané Maria havia visitado o chalé...

VIII – ZÉ HENRIQUE

José Henrique de Azeredo, meu avô paterno era um místico e um mestre.
Pelo que minha mãe leiga me contava sobre ele, cheguei às minhas próprias conclusões.
Filho de família abastada, vovô foi um almofadinha do seu tempo de rapaz. Quando sua “fidalguia” faliu naquela metade do Séc. XIX, Zé Henrique teve que se sujeitar a casar com Nhanhá, filha caçula dos Pires, que outrora foram ricos fazendeiros da região e que haviam ficado com fama de “tios ricos”.
Por causa desse casamento “arranjado”, Zé Henrique, ao invés de dar o golpe do baú na prima, teve que procurar emprego.
Valendo-se dos seus vastos conhecimentos, por ter estudado por uns tempos no Rio de Janeiro, Zé Henrique aproveitou-se de sua cultura e defendeu, como mestre, alguns trocados para satisfazer “os luxos” da Sinhazinha Nhanhá: fez-se professor. Era mesmo a sua vocação.
E minha mãe, leiga, deixava no ar - quando me contava que era muito importante ser mestre, e muito lucrativo também - que eu deveria estudar para ser professora...
Engano de minha mãe. Pelo que sei, o meu avô não ficou rico como mestre. Levou a sua vida inteira cuidando da lavoura de cana-de-açúcar da pequena propriedade. Com a quebradeira das usinas - isso é antigo... - vovô ganhava muito pouco com o fornecimento da cana e passou a vida sonhando com “dias melhores”, além de ser dominado por Nhanhá, que fazia dele gato-e-sapato.
Sabe-se que Zé Henrique acabou os seus dias à sombra de uma paineira próxima ao chalé, lendo a Bíblia.
Minha mãe me contou que ele sempre recitava alguns trechos do Livro Sagrado que dizia:
“Encham as suas mentes com tudo o que é bom e merece elogios. O que é verdadeiro, digno, justo, puro, agradável e honesto...”.
E o Deus que nos dá a Paz, estará com vocês”. (Filipenses, 4-8,9).

IX – AMARO HENRIQUE

Tio Amaro foi um dos ídolos da minha infância. Era casado com Cachicha. De natureza romântica, era do tipo pacato-cidadão. Nunca o vi levantando a voz para ninguém. Era da Paz, como vovô.
Viveu sempre à sombra de Nhanhá, da qual era o filho caçula e preferido. Apesar de ser muito alto, era franzino, de “saúde melindrosa”, dizia mamãe.
Tio Amaro quando vinha jogar cartas com Hélio, ou sinuca com Lauro, meus irmãos mais velhos , gostava de contar histórias do seu tempo, querendo se referir à época em que era um galante cavalheiro e gostava de freqüentar os bailes famosos de seu tempo. Foi ele quem contou uma façanha interessante num desses bailes-em-casa-de-família, costume do início do Séc. XX que substituiu o antigo sarau do Séc. XIX. Naquele dia um primo de Tio Amaro, de nome Manuelzinho Pires, foi barrado porque não estava usando gravata, como mandava a pompa e a circunstância da ocasião.
O tal primo rico, barrado no baile, se afastou do salão indignado e voltou logo após com uma gravata trançada só com notas de mil réis, dinheiro mais valioso da época.
É lógico que a sua entrada no baile foi triunfal e atraiu muitas moçoilas admiradoras para o seu lado.
Esse feito de Manuelzinho Pires, o rapaz da gravata milionária, atravessou o século e tem sido contada de geração em geração, como símbolo de poder da Família Pires.
Seria realidade? Ou apenas mais uma lenda para ser contada neste Álbum de Família, que é O Chalé dos Imortais?

X – SANTINHO OVEIRO

Figura popular, era chegado a um bom rabo-de-saia e tocava clarinete na Banda de Tócos. Era o filho mais velho de Nhanhá. O meu tio Santinho.
Manoel Henrique de Azeredo, que de santo não tinha nada. Que o diga a numerosa prole que deixou decorrente de aventuras extraconjugais. Um pulador de cercas, como contava mamãe.
Tia Santinho tocou por muitos anos na Sociedade Musical Nossa Senhora da Penha. Essa entidade permanece até hoje encantando a todos quando toca a bela alvorada para a Festa da Padroeira de Tocos, que dá nome à banda.
É bem verdade que os tempos são outros e alguns netos dos antigos músicos da época de Tio Santinho procuram manter a tradição da eterna sociedade musical com muita dificuldade.
Tio Santinho chegou até a ganhar certa vez o tão cobiçado clarinete de ouro, prêmio dado somente a músicos talentosos da época.
Casado com Dona Filhinha da Pensão, vivia pelos cantos da casa, sempre acompanhado do seu inseparável clarinete, enquanto a esposa Filhinha dava duro na pensão para manter a casa.
Santinho Oveiro – esse apelido veio de um trabalho que ele conseguiu arranjar como revendedor de ovos, mas, como “das outras vezes”, não deu certo.
Dizia-se um incompreendido: seu talento musical não “rimava” com trabalho. Era um gênio erudito, um artista que nunca pôde viver de sua arte...
Às vezes, em noites de lua cheia, quando o meu sono demora a chegar, eu escuto alguém tocando ao longe e um solo de clarinete ecoa por todo o chalé. Deve ser o Tio Santinho executando alguns acordes para os atuais músicos da família: Carlos, Gildo e André, este último meu filho pagodeiro: versão moderna do tio-avô, que passou pela vida como uma banda, só tocando coisas de amor, como diria Chico Buarque.

XI – AURÉLIO HENRIQUE

Dos três irmãos, o que mais conheci foi Aurélio Henrique de Azeredo, meu pai. O filho do meio de Nhanhá.
Santinho Oveiro foi músico; Amaro Henrique foi romântico; papai foi o herói.
Aurélio era bravo, contava mamãe. Vivia sempre com a sua espingarda engatilhada, pronta para alguma emergência. Aurélio quando apontava lá no final do aceiro, em suas vindas da Lagoa Feia, todos já sentiam suas pisadas. Suas passadas firmes faziam estremecer todo o canavial e aí, se uma cobra atravessasse o seu caminho, seria esmagada na certa.
Às vezes algumas “candinhas” da redondeza vinham visitar a Comadre Maricota para os “comentários” da tarde, aproveitando-se da ausência de Aurélio, mas, quando chegava uma certa hora, com medo da volta de Aurélio, corriam para suas casas, à procura do que fazer.
Quando eu nasci, papai já não era tão bravo, já não possuía a pontaria certeira que fez dele o maior caçador da região compreendida entre Tócos e Ponta Grossa dos Fidalgos - Que o IBAMA o perdoe! - de onde trazia nosso sustento.
Lembro-me do meu pai reclamando de tudo: lá na capital, seu ídolo maior havia se suicidado ou “suicidaram ele”. O certo é que quando Getúlio Vargas morreu papai ficou muito triste. A seguir veio um tempo de vacas magras. O meu pai-herói resistia como podia. Caçava e pescava para ajudar o salário. Papai também foi um grande artesão: fazia redes de pesca, samburás, juquiás, esteiras de tabúa, todos os tipos de cesto e até utensílios de madeira, mas não era “hobby”: era para sobreviver. Além de desbravar, de ponta a ponta, a Lagoa Feia. Conhecia cada centímetro daquele “mundão dágua”, como costumava dizer.

“Suas passadas de gigante ecoarão eternamente e seu nome ficará gravado na História das Grandes Caçadas”. Este último trecho, eu o tirei de uma carta que o meu primo Zezinho Pires me escreveu de Brasília, por ocasião da morte de papai (1966), conseqüência de uma picada de uma cobra que escapou de sua pisada fatal.

XII – AS TRANÇAS

Ainda me vejo menina, escondendo-me atrás de enormes tranças feitas com tabúa - planta aquática comum na Lagoa Feia, matéria prima de peças de artesanato, tais como esteiras, chapéus, bolsas de praia e até usada para cobrir as cabanas dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: é uma espécie de palha muito resistente e durável.
As tranças de tabúa ficavam empilhadas em forma de caracol para serem enviadas para a Usina Paraíso. Todos os anos, na chamada época da moagem da cana-de-açúcar nas usinas da região, meu pai arranjava mais esse “bico extra” para toda a família ajudar.
Eu, bem pequena, ao invés de ajudar, só atrapalhava: ora choramingando para mamar (mamei no peito até os quatro anos), ora reclamando por ter que arrumar novamente os cabelos nas minhas próprias tranças feitas por mamãe, que tinha que parar o serviço para mais essa “tarefa extra”. Eu me imagino com a cara suja de fuligem de tanto chorar para não pentear os cabelos, que insistiam em fugir das tranças que mamãe arrumava tão bem e que eu as desmanchava outra vez.
Eu nem entendia direito o porquê de papai, mamãe e meus irmãos maiores ficarem noites adentro fazendo aquelas infindáveis tranças de tabúa.O certo é que com aquele biscate extra, papai engrossava o seu salário e rendia uns “trocados” para os meus irmãos assistirem a algumas películas de faroeste no cinema local.
Naquela época eu até cheguei a temer que, quando a situação apertasse mais, até as minhas próprias tranças fossem para a Usina Paraíso, sei lá pra quê.

“Foi o melhor dos tempos e o pior dos tempos, a idade da sabedoria e da incerteza, a era da fé e da incredulidade, a primavera da esperança e o inverno do desespero, tínhamos tudo e nada tínhamos”.

(Charles Dickens. Trecho da apresentação do livro de Zuenir Ventura 1968 – O Ano Que Não Terminou).

XIII – NENÉ

Maria Rosa da Conceição Azeredo. Mamãe. O apelido Maricota veio depois. Antes era Nené, jeitinho caipira que sua mãe Dona Ana Mariana de Jesus a chamava e seus sobrinhos até hoje repetem: Tia Nené. Esse tratamento é uma espécie de senha quando eu quero identificar os meus parentes pelo lado materno, que são muitos.
Nené nasceu no Caboio, um lugarejo famoso na baixada goitacá, onde antigamente havia duas tribos, não de índios, mas, de brancos remanescentes de navios franceses que naufragaram na costa do Cabo de São Thomé, no Séc. XVII: uma tribo era dos mocorongôs e outra dos mixuangôs, sendo desta última os meus ancestrais franceses. E de geração em geração, os mixuangôs permanecem até hoje para contar a história...
Eu me considero uma mixuangá da gema, apesar da “miscigenação”: tenho a pele clara...e cara de índia. Deve ser fruto de algum romance que alguns mixuangôs tiveram com índios goytacazes, que apesar de terríveis canibais tinham também fama de ardorosos amantes.
Nené aos dois anos se mudou com toda a família para um lugarejo chamado Pau-Brasil no sul da Bahia. Hoje a pequena vila se transformou num município.
Quando mamãe morava lá, contava, havia uns macaquinhos amarelos que roubavam todo o milharal da fazenda. (Pela referência, devem ser os tais micos-leões-dourados, de que tanto falam os ecologistas.).
Naquela época, o seu pai, o Sr. João Rosa, era peão de uma propriedade afastada da vila e, para aprender a ler, Nené precisava atravessar de canoa o Rio Jequitinhonha duas vezes por semana. Era o bastante para que Dona Dulcinéa ensinasse aos filhos dos empregados da fazenda.
Mamãe falava da única mestra que teve na sua vida como se fosse única, magnífica, sem par neste mundo. A menina Nené aprendeu muito com sua professora, mas não foi sobre Português, Matemática, História ou Geografia. Mamãe aprendeu a mais linda das lições: a caridade.
A Dulcinéa era uma moça paralítica que, soberana em sua cadeira de rodas, conseguia transmitir aos seus alunos o pouco que sabia, sem cobrar nada por isso. E eles só podiam ir à escola duas vezes por semana porque nos outros dias tinham que ajudar na lida diária da fazenda.

XIV – CORAÇÃO

Todas as vezes quando referi à minha mãe em capítulos anteriores, usei a expressão “leiga”. O bordão foi apenas para destacar este capítulo.
Minha mãe não era leiga coisa nenhuma. Para mim foi a mais sábia das criaturas.
Com mamãe aprendi a amar a natureza. Foi ela quem me ensinou a ver as cores no próprio arco-íris. Com mamãe aprendi a contar as estrelas e saber o que era poesia quando declamava para mim Meus Oito Anos, de Casimiro de Abreu, enquanto lavava roupa. “Que doce a vida não era naquela risonha manhã...”. Com essa mestra maravilhosa aprendi a ler aos quatro anos num pedaço de papel de pão!
E aquela história de eu ser superdotada quando fui estudar no Rio de Janeiro...Tudo balela. QI elevado, que nada! Eu só sabia as coisas que aprendi com mamãe.
Quando fui aprovada para o Colégio Pedro II, todos acharam o máximo. As questões da prova não eram do tipo múltipla escolha como hoje: foram perguntas dissertativas, e saí-me muito bem. Mas o meu mérito maior foi na redação, o que valia muito na época.
“Por que você quer estudar no Pedro II” foi o tema da redação. Não perdi tempo e disse entre outras coisas:

“... É que o Colégio Pedro II é eterno, e sei que durante a minha vida inteira vai ser sempre um ponto de referência na minha educação e será o “meu maior orgulho”.

É lógico que tirei a nota máxima e cursei o ginásio inteiro no colégio-padrão. O meu Pedro II...
Gostaria de ter dito mais: mesmo que eu fique velhinha morando num chalé às margens da Lagoa Feia, vou ser sempre portadora do maior tesouro: minhas lembranças do meu tempo de estudante.

...Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Quantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia...

(Coração de Estudante. Milton Nascimento-Wagner Tiso).

XV – FLORESCER

Depois da morte de mamãe, um vento gelado veio cortando o canavial desde a Lagoa Feia até o Chalé dos Azeredos.
Um ano depois, quando o canavial já estava em flor, voltou a murchar com a perda de Aureliano, meu irmão, o decano da família.
Mais um ano se passou, o canavial floriu de novo exibindo sua nova plumagem arroxeada. Um novo ciclo começava!
Aos poucos as nuvens negras que cobriam nosso antigo bangalô foram se dissipando, dando lugar ao sol que brilhava intensamente, trazendo boas novas.
A notícia de que um novo herdeiro estava a caminho me deixou muito animada. Pudera! Já haviam se passado dois anos do nascimento frustrado de Arthur, o reizinho, que seria o meu primeiro neto...
Fiquei toda orgulhosa quando André me pediu para escolher o nome do seu filho. Dessa vez teria que sobreviver.
Em meio a nomes de reis, santos e heróis, confesso que gostaria mesmo é que meu neto tivesse nome de escritor famoso como Cassiano Ricardo ou Jorge (o nosso imortal Amado) ou nome de poeta. Que tal Antonio Roberto?
Mas numa tarde calma, ouvindo a ópera Romeu e Julieta, emocionei-me e descobri que queria mesmo era um nome que exaltasse o amor.
Recordando o romance inesquecível dos amantes de Verona, imortalizado pelo grande dramaturgo inglês William Shakespeare, bati o martelo: o nome do meu neto seria Romeu, ele teria o porte atlético do pai e a meiguice da mãe, com seu jeitinho de princesa.
Estava eufórica! Eu iria dizer para ele que eu já fui hippie, contar sobre os Beatles e que o sonho não acabou!
Já tinha até encomendado um computador para Romeu: queria que ele aprendesse tudo o que eu não sei do mundo da Informática. Sou poeta, só sei lidar com os sonhos.
Já imaginava o garotão por volta dos seus doze anos, freqüentando um cursinho de Inglês e deixando as gatinhas suspirando com seu jeito de Don Juan. E Romeu, lindo, ajeitando o seu cabelo cortado à “asa delta”, justificando-se perante a galera:

- Sabe esse romântico nome, quem escolheu foi minha avó, que já ficou encantada. Agora ela mora num jardim, mas aqui na Terra foi a última das românticas.

Meu neto nasceu, mas não se chama Romeu. Sabotaram este episódio.

REFLEXÃO

A partir do nascimento de Murilo, meu neto que seria Romeu – mas acharam o nome arcaico –, o que contou, o que importou foi que uma geração de meus novos descendentes estava chegando, mesmo que ele se chamasse...Rosenberg Valentim.
Ao mesmo tempo um dos meus irmãos estava partindo...
A morte do meu irmão Lilinho foi um baque e ao mesmo tempo um sinal de alerta: nós outros estávamos na mira do tempo. Um de nós poderia ser o próximo.
Nós outros também já havíamos crescido, dado flores, frutos e, de certa forma, estávamos perpetuando a família.
Era chegada a hora de contar a história do Chalé dos Imortais, como se fosse a minha última missão.

XVI – LILINHO

Aureliano Henrique, o meu irmão Lilinho, o mais velhos dos sete irmãos do Chalé: Aureliano, Maria Geneci, Lauro, Hélio, Fidélis, Hilda e Gildo.
Suas roupas surradas e fora de moda, aquela bolsa marrom desbotada de tantas idas e vindas, tudo fazia crer que Lilinho seria um novo Mané Maria (o que adorava viajar). Mas, que nada! Lilinho não quis ficar perambulando pelo mundo até ficar velhinho. Perdeu-se em labirintos vivenciais, em conflitos familiares, em crises de terceira idade e acabou encontrando a sentença fatal.
Um dia ele apareceu no chalé, todo sorridente, de mãos dadas com a morte. Eu não reconheci “a mais indesejada das companheiras” porque ela usava um vestido vermelho para disfarçar, e sorria para ele com um convite: “vem...”
Pobre do meu irmão que não conheceu o poema de Fernando Pessoa:

“Por que me levastes para o alto dos montes se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?”.

Lilinho era festeiro e sempre vinha para a festa de Nossa Senhora da Penha.
Depois que ele morreu, um ano se passou e chegou outra vez o Dia da Padroeira.
O ônibus das quatro parou. Eu percebi alguém descer e o portão rangeu como das outras vezes. Depois ouvi os passos inconfundíveis. A seguir, o costumeiro empurrão na porta da sala, sempre encostada. Num pulo me pus de pé e corri ao seu encontro para escutar o seu bordão preferido:

- É páxa!

Dessa vez Aureliano não veio. Em seu lugar chegou a saudade, com seu vestido roxo e seu manto de eternidade.

XVII – LADY

Outra lembrança inesquecível é o linguajar de minha mãe. Influência dos mixuangôs.
Ao pronunciar algumas palavras em francês, até que mamãe caprichava no sotaque. Eu ouvi pela primeira vez a expressão “la garçone” dos lábios dela, quando quis se referir àquele corte curto e moderníssimo dos cabelos da cantora Marlene, a eterna Rainha do Rádio, que figurava nas folhas de uma revista da época, “O Cruzeiro” se não me engano...
Se no idioma francês mamãe era a tal, no inglês não sabia se expressar e chamava de pó-de-arroz “Ladí” aquele da latinha redonda, reluzente, no tom azul-natiê, como ela dizia. “Lady”, obviamente, tratamento dado para as damas. Que saudade eu tenho daquele pó, em cuja embalagem figurava uma moça bonita, com os cabelos cortados “a la channel”. A tal mocinha da lata, apesar de parecer francesa, era mesmo uma lady. E eu achava que o nome Ladí era o nome mais lindo do mundo.
Que ingenuidade a de mamãe, que pureza, na sua única vaidade: uma latinha de pó-de-arroz escondida na gaveta da penteadeira para ser usada numa ocasião “muito especial”, mas que ela só usava mesmo era para ir à cidade, o que raramente acontecia...
Por muitos e muitos anos a minha cor preferida tem sido o azul-natiê, porque é a cor do mar, a cor do céu e a cor daquelas latinhas de pó-de-arroz Lady que enfeitavam os sonhos de Maricota, como se fossem florzinhas azuis...

Eu sou turca, chama Jurja
Levo vida desgraçada
Eu só vendo a pó-de-arroz
E colarinha ponta de laço

(Versinho que mamãe sempre recitava, imitando um mascate árabe que aparecia de tempos em tempos lá na fazenda, para vender pó-de-arroz, quando ela era mocinha.).

XVIII – FLORZINHAS AZUIS

Sei que vou parecer piegas neste episódio especial, mas quero contar que existem até hoje, espalhadas aqui e ali nos arredores do Chalé, as florzinhas que tanto enfeitavam os sonhos de mamãe.
As minhas florzinhas azuis são do tipo onze-horas. Abrem-se ao amanhecer e fecham-se pontualmente ao meio-dia. São uma raridade. Eu nunca soube de sua existência em nenhuma outra parte do planeta.
As tais florzinhas são miúdas, possuem apenas três pétalas arredondadas com a coloração azul-natiê. Tem um miolo num tom amarelo-claro e dois pistilos brancos. A aparência é frágil, mas, demonstra uma força incrível ao querer se perpetuar, pois, sempre brota outra vez, mesmo quando o rapaz que faz a capina do local de tempos em tempos, por descuido, acaba com todas as minhas raríssimas flores, confundindo-as com “matinho”, apesar de todas as minhas recomendações para não tocar nelas.
Eu gostaria de ter estudado Botânica – adoro flores – para saber mais sobre essa maravilha. Como se chamará esse mimo da natureza? A que família pertence? Sei que existem outras flores azuis. O miosótis, por exemplo, é azul e diz uma antiga lenda que foram as lágrimas de Nossa Senhora que caíram sobre a flor e ela ficou assim: azulzinha, azulzinha. Mas as minhas florzinhas não são miosótis, apesar de terem a cor dos olhos da Virgem Maria.
Essas raridades tão delicadas são fortes demais, pois, mamãe dizia que elas já existiam desde a época de sua chegada no chalé.
Alguma coisa me diz que elas atravessaram o século, o milênio, só para continuarem se abrindo e alegrando todas as minhas manhãs. Como aquela em que Maricota chegou a Tócos para começar uma nova história no chalé.

XIX – RAÍZES

Nenê saiu de Pau Brasil e foi morar em Santa Fé, vilarejo que não existe mais. O que restou do lugar é uma antiga destilaria em ruínas, apenas destroços de uma época de ouro das usinas dos Campos dos Goytacazes.
De Santa Fé – este pequeno povoado ficava perto de Cardoso Moreira, município do Estado do Rio de Janeiro – a família foi para Guandu, limite com Outeiro, que existe até hoje e onde ainda é o reduto de muitos dos nossos parentes, um local de referência quando se quer achar as raízes de Nené. Eu identifico os parentes um a um, apenas por uma senha: Nené.
Quando meu pai Aurélio, o herói, foi trabalhar por aquelas bandas, conheceu a menina Nené com quinze anos se e rendeu aos seus encantos. Ele, já madurão, era um homem vivido, com seus trinta e cinco anos e ainda não tinha pensado em se casar. Quando a encontrou passou a cortejar a bela mocinha de pernas grossas, apesar dos pais dela não virem com bons olhos aquele romance. Além do mais, o Sr. João Rosa e D. Ana Mariana de Jesus tinham mais onze filhos para Nenê ajudar a criar, já que ela era a filha mais velha do casal e era quem cuidava da casa, enquanto os pais iam para a roça plantar mandioca para fornecimento a uma pequena fábrica de farinha da região.
Os meus avós maternos trabalhavam de sol a sol para sobreviverem. Nessa época eram meeiros na plantação de mandioca e participavam também do lucro da lavoura. Os filhos maiores ajudavam na fábrica de farinha e, assim, os doze filhos foram se criando, da terra molhada com o próprio suor que retribuía com as raízes.
Quando meu pai voltou para Tócos trouxe consigo a sua Maricota, apelido que ele havia dado a Maria Rosa, a menina das pernas grossas. O apelido novo pegou e Nené ficou sendo a Maricota do Aurélio pelo resto da vida.
Nené ficou debruçada lá na porteira, perdida na poeira da estrada...

“Maricota foi à feira de tamanco
Foi dizer pro namorado
Que tem dinheiro no banco”.

(Versinho que papai cantava sempre pra mamãe)

XX – MARICOTA

Nené ficou para trás, mas Maricota quando chegou lá na curva, voltou-se e lançou um último olhar sobre a paisagem que ela conhecia tão bem. Acenou para a sua infância que havia ficado chorando, na porteira, junto com seu apelido. Nené...
Naquele gesto de adeus, Maricota deixou toda a sua saudade e nunca mais, em vida, voltou àquele lugar.
Dias após a sua fuga, o seu pai se suicidou com um tiro de espingarda na cabeça, para lavar a honra. Por isso, minha mãe nunca mais teve clima para visitar a família depois da tragédia que ela provocou por amor. Meses depois, quando a poeira baixou, seus irmãos foram aparecendo no chalé para saber das notícias da irmã. E, como viram que Nené, agora Maricota, vivia bem, as mágoas foram esquecidas. Pouco depois da tragédia, a velha Ana Mariana, sua mãe, também morreu de desgosto, sem saber de Nené.
Minha mãe nunca falava da morte trágica dos pais. No chalé esse assunto sempre foi tabu. Eu fiquei sabendo sem querer, escutando a conversa dos adultos. Mamãe não falava no pai, mas essa dor deve ter se convertido em chagas no seu coração. Os filhos foram nascendo, crescendo, a vida foi passando e mamãe sempre aparentou uma calma infinita. Era uma pessoa de paz, apesar de tudo.
No dia de sua chegada ao chalé, quando veio para Tócos com papai, seguindo as ordens do seu coração, era uma manhã ensolarada de outubro e o povinho do lugar se espantou ao ver o Aurélio “solteirão” entrar triunfante na vila trazendo a sua Maricota.
No começo, ela enfrentou a hostilidade de Nhanhá, mas, depois, conquistou a velha Ignácia com seu jeitinho cativante, convivendo quinze anos com ela e foi durante esse período que a sogra fidalga contou à sua nora “xucra” sobre todo o esplendor de seu tempo de sinhá. Tudo o que eu sei daquele tempo de escravos não foi aprendido em livros de História e sim “via” Maricota, muito melhor que pela Internet de hoje.
Em 1942 a velha Ignácia partiu e Maria Rosa passou a ser a Senhora Soberana do Chalé, até aquela cinzenta manhã de outubro de 1998, quando ficamos chorando por Maricota, que ficou encantada.

XXI – SONHOS IMORTAIS

Um dos maiores orgulhos de minha vida é o fato de nossa família ter hospedado no Chalé o Gran Circo Bartholo.
Mas, na verdade, não foi bem assim... É que o chalé, apesar de pequeno, tinha um salão grande na frente que parecia até maior quando estava desocupado. Muito raramente aquele cômodo não estava “locado” a algum comércio. É que papai alugava o salão para aumentar a nossa renda familiar.
Houve tempo que ali funcionou um bar, outra vez uma relojoaria, e até como hospedaria de artistas de circo!
“... O circo chegou à cidade. Era uma tarde de sonhos e eu corri até lá...”, como toda a criançada de Tócos. Quando eu vi que era muita gente para ficar na Casa do Leão – um casarão antigo onde costumava se hospedar a gente do circo, “aquela gente encantada que chegava e seguia” eu cheguei e falei à queima-roupa ao velho-anão Bartholo, dono do circo:

– Meu pai aluga o salão lá de casa.

E saí correndo para contar a novidade a papai que nem acreditou que pelo menos uma vez na vida eu havia sido experta. “Essa é a minha filha!”. Ele foi conversar com o pessoal da trupe e o aluguel ficou acertado. Eu tinha dez anos na época e o meu irmão caçula bem menos. Acho que depois do circo nunca mais fomos os mesmos. Daí veio a nossa vocação artística...Do Gran Circo Bartholo!
Vivíamos aqui e ali espionando o que os artistas do picadeiro ensaiavam. No Chalé se hospedaram o palhaço e sua esposa, além de uma moça lindíssima chamada Ana Maria, a rumbeira do circo. Era tudo que sonhávamos: hospedar artistas em nossa casa!
Na ocasião o maior sucesso do “nosso” circo e a peça teatral “... E o céu uniu dois corações”. Foi o melhor espetáculo a que já assisti. Nem no Olympia de Paris eu vi igual! Não sei como conseguiam aqueles efeitos especiais para o dramalhão mexicano, mas eram o máximo!
Quando o circo se foi o meu coração foi junto. Como eu gostaria de ser uma dançarina como Ana Maria. A partir daquele dia, o salão do chalé era um lugar sagrado para mim e passou a ser o palco dos meus sonhos imortais.

XXII – RESPEITÁVEL PÚBLICO!

Naquele picadeiro iluminado eu era a artista principal. Cantava, dançava, fazia piruetas no ar, voava de um trapézio a outro como um pássaro. A minha roupa dourada refletia todas as cores, eu resplandecia como a maior atração daquele circo.
Desfilava num cavalo branco que tinha um penacho na cabeça (com certeza meus filhos diriam que eu estava “pagando o maior mico”). Agora eu era o próprio mico-de-cavalinho-de-circo que fazia caretas para a platéia e depois se transformava no palhaço Carequinha. Depois eu engolia fogo e servia de alvo para me atirarem facas e mais facas...Agora eu era a mulher barbada que se transformava na rumbeira Ana Maria...
Delirava. Vivia todos os personagens mágicos da minha infância, todos ao mesmo tempo. Foram muitos os espetáculos circenses a que assisti pela vida afora e os circos foram ficando cada vez mais luxuosos, mais sofisticados, mais caros...Do que eu nunca me esquecerei são os circos pobres com lonas rotas e palhaços remendados, que tanto me encantaram.
Mas o meu circo delirante agora era chic: tinha até um mestre-de-cerimônia que anunciava:
– Respeitável público! Com vocês o maior sucesso do momento: A Maga do Milênio! Ela vai tirar da cartola o que o público pedir. Façam seus pedidos!
E eu, Maga do Milênio, suava frio sem ter nada para tirar da cartola enquanto a platéia pedia:
– Dólares! Riquezas! Ouro! Diamantes! Poder!...Até que uma vozinha de criança gritou “–Paz!”. Todos aplaudiram e eu, que só sabia falar das guerras, quis falar de paz.
De repente o milagre aconteceu e consegui encontrar alguma coisa no fundo da cartola: flores brancas, muitas flores brancas. Aplausos. E eu delirava. Um foco de luz mais brilhante incidiu sobre mim e senti uma claridade intensa que me cegava...

XX – ESTRANHO VELÓRIO

O circo foi se apagando da minha mente ao mesmo tempo em que eu parecia estar acordando daquele sonho delirante.
O foco de luz se transformou numa réstia de sol sobre os papéis esquecidos sobre a escrivaninha. Depois não vi mais nada, não ouvi mais nada. O olfato era o único sentido que parecia ainda funcionar e um cheiro intenso de flores invadiu todo o meu ser.
Flores? Tive uma intuição. Corri até a igreja onde se costumava velar os mortos católicos do lugar. Entrei e percebi que todos ficaram indiferentes à minha presença. E eu apostei que eles não estavam me vendo. Meus irmãos com roupas sóbrias pareciam preocupados, enquanto algumas das minhas cunhadas com suas roupas de festa não conseguiam disfarçar um risinho cúmplice entre elas. Num canto da igreja deparei com meus filhos Juninho, André e Íris chorando. E aquele caixão lá na frente?! Eu já adivinhara quem estava dentro.
Num segundo compreendi tudo: o sorriso de Nhanhá quando deixou aquela “banana quente” em minhas mãos...O circo delirante...O cheiro de flores! Agora os personagens imortais do chalé desfilavam um a um na minha frente. Nhanhá, a sinhazinha; Mercedes, a princesa; Cachicha, a cigana; Mané Maria, o viajante; Zé Henrique, o mestre; Amaro Henrique, o romântico; Santinho Oveiro, o músico; Aurélio Henrique, o herói; Nené, a sábia e Lilinho, o festeiro.
E eu? Como os meus descendentes se lembrarão de mim? Como uma louca? Uma Sherazade? Uma hippie dos anos sessentas? Agora eu seria mais um fantasma a habitar o chalé.
Talvez alguém escreverá o livro “A Bailarina da Casa 22” sobre uma velha que um dia quis ser bailarina e aparecia, em noites claras de verão, toda vestida de branco, dançando para o luar. Um fantasma sonhador...

XXIV – A CHEGADA

Estava tranqüila quando vim calmamente andando pela rua. Agora eu tinha certeza de que os transeuntes não estavam me vendo. Eu já não estava presa à matéria, pertencia ao plano espiritual. Parecia voar ou flutuar.
Parei em frente ao chalé, pois, sabia que estava chegando o momento do reencontro. Eu não queria acreditar, mas, sabia desde o começo do sonho, que os meus parentes, outrora habitantes do chalé não estavam vivos, era eu quem estava morta.
Havia acabado de chegar quando vi a menina Noêmia se afogando na velha cacimba de pedra. Agora eu sabia o porquê de não ter me voltado para continuar vendo a cena. Era como se eu tivesse sido a própria Noêmia e vivido duas encarnações. Mas, nós, católicos, não podemos acreditar nisso. Explica-se, então, pela memória genética: coisas que os nossos ancestrais viveram e nos são passadas por meio do DNA, de geração em geração. Salve a ciência!
Voltei à cacimba e reconheci a “minha” bonequinha de pano. Quando apertei o seu corpinho inerte contra o meu peito, num instinto maternal, senti um leve soluço. Olhei espantada para a boneca no exato momento em que seu rostinho sofrido se abria num sorriso, substituindo o ricto de dor.
Voltei pelo canavial que, com seus pendões balançando ao vento, parecia me dar as boas-vindas. Fiz o percurso célere até a porta dos fundos do chalé e cheguei, finalmente, ao meu quarto, passando pelo corredor antigo e comprido.
Na escrivaninha um amontoado de folhas de papel pareciam esperar que alguém as transformasse numa novela de época. A réstia de sol que foi meu relógio durante anos estava de apagando. E eu agora era eterna.
Corri até a frente do chalé. Como estava lindo aquele por-do-sol. Os dias que se seguiriam seriam ensolarados e felizes, pensei. As andorinhas subiam, subiam, levando uma mensagem: o Chalé dos Imortais agora tinha mais um espírito sonhador. Era chegada a hora do reencontro.

XXV – O REENCONTRO

Uma inesperada recepção me aguardava: flores e mais flores no lugar de meus parentes mortos. Que seria aquilo? O Jardim dos Imortais? É por isso que Guimarães Rosa nos disse que “as pessoas não morrem, ficam encantadas” ?
Seguindo um rastro de perfumes adocicados, deparei com vários vasos de flores. Logo no primeiro estava uma violeta, num tom lilás apagado, com grossas pétalas carcomidas pelo tempo. Fui me aproximando e senti que era Nhanhá. Num outro vaso estava uma margarida meio murcha, mas ainda bonita. Reconheci naquela flor a prima Mercedes. Mais à frente um perfume intenso impregnava todo o ambiente: era uma camélia que exalava sua sedução: Cachicha. Depois um odor seco e parecendo distante me levou até uma saudade e reconheci naquela flor roxa Mané Maria. Ali em outro vaso havia um gerânio com um perfume tão fraco que mal pude sentir Zé Henrique, vovô. Continuei o percurso e vi que o cravo branco, impecável, só podia ter saído da lapela de um elegante cavalheiro como Amaro Henrique. E aquele outro cravo vermelho...tinha que ser meu tio Santinho Oveiro. Avistei um enorme girassol que não possuía quase odor, mas brilhava como o astro-rei papai. E aquela rosa ali tão linda, a rainha das flores? Mãe!!! Num vaso tristonho, um alecrim-do-campo chorava as mágoas: era o meu ingênuo irmão Lilinho.
E eu? Que flor seria naquele eterno jardim? Uma espalhafatosa estrelissa ou uma misteriosa orquídea daquelas bem raras...?
Num pequeno vaso ainda vazio de repente brotou uma florzinha azul singela, um miosótis da cor dos olhos de Nossa Senhora, como dizia uma antiga lenda que um dia li na infância...Nesse mesmo dia, li uma história na qual alguém deixava um recado junto à linda florzinha azul:

Don’t forget me.

Não se esqueçam de mim.

THE END







AGRADECIMENTOS

A todos que me incentivaram a publicar este álbum de família que é o Chalé dos Imortais.
Todos esses fatos e lendas sempre fizeram parte da minha vida e eu guardei-os no fundo do coração para contá-los um dia.
Esse dia chegou.
Quero deixar um agradecimento especial ao meu irmão caçula Gildo Henrique, porque se não fosse ele, aquelas folhas esquecidas sobre a escrivaninha teriam o mesmo destino de simples papéis no fundo de alguma gaveta.

Obrigada.

Hilda Conceição


































FONTES DE INSPIRAÇÃO


- Canteiros – poesia, Cecília Meireles;
- O Bangalô da Saudade – crônica, Orávio de Campos Soares;
- Martim Cererê – prosa, Cassiano Ricardo;
- Romaria – música, Renato Teixeira;
- A Caipirinha – pintura, Anita Malfati;
- Sonhos de Uma Noite de Verão – teatro, Shakespeare;
- Os Pratos de Vovó – poesia, Antonio Roberto Fernandes;
- Tinenti – conto, Gildo Henrique;
- Coração de Estudante – música, Milton Nascimento-Wagner Tiso;
- A Padroeira – telenovela, Walcir Carrasco;
- Gabriela, Cravo e Canela – romance, Jorge Amado;
- Quilombo – filme, Cacá Diegues;
- O Guarani – romance, José de Alencar;
- O Guarani – ópera, Carlos Gomes;
- O Saci – conto, Monteiro Lobato;
- ...Na Corte dos Tupinambôs – enredo da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense;
- Sagração da Primavera – música, Stravinsky.




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