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Contos-->A criação -- 14/05/2003 - 12:52 (Thiago D Martin Maia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A cabeça de Caetano Arrabal sempre foi imensa e pesada. Contava-se no povoado onde nasceu, e no qual esteve até a morte, que sua mãe era uma negra alta de músculos enrijecidos e cabelos maciços, uma mulher arrogante apesar de muito pobre, com força para arrastar um boi de carro por metros e metros, e de quem o único choro datado verteu-se no nascimento do filho caçula, quando o cocuruto liso e desproporcional alargou em exagero o vão encharcado; o que lhe valeu ser conhecida no lugarejo, ainda que secreta e medrosamente, por Manuela Arrabal Caçapa ou Manuela Caçapão. Contudo a Caetano Arrabal não quiseram alcunhar de nada, nem sob muxoxos ou na hora privada do amor, pois na idade adulta e já anos depois do assassinato de Manuela por uma urutu amarela da qual retiraram cinco bacias de veneno, seu murro canhoto e seus coices de besta desaconselhavam chistes tanto quanto sua fortuna de imperador previdente, adquirida no comércio de animais com os tropeiros e nos assaltos impostos aos mesmos, que alagavam as calças ao perceber adiante no caminho um grupo de encapuzados bem armados, fronteados por um esguio mulato cuja cabeça fazia sombra ao cavalo: pacato tordilho capixaba chamado Lustro e envolvido, na altura da barriga, pelo couro hipnótico de uma extinta e inacreditável urutu amarela.

Nunca ninguém comentou a respeito do pai de Caetano, embora todos conhecessem o soldado com modos de coelho que tinha predileção por negras e as cortejava no caminho da tropa, provavelmente buscando as mais experimentadas, uma vez que seu tato de pelúcia desembocava sempre nas mulatas já senhoras. No caso do povoado isso não foi levado em conta, pois na escapada em que flagraram-no se despedindo de Manuela, com a farda amassada, as medalhas postiças em desordem e a expressão apaixonada, deram como confirmada a certeza antiga sobre os poderes de bruxa da mulher, se não que outra explicação para namoro tão sem propósito e para a horda de entes do Mal que claramente habitava os fundos da casa, enfurnando-se escondida nos bichos do quintal? Ali havia galinhas, um galo excessivamente calado, alguns porcos de ancas salientes, duas cabras mal amanhadas e um bode sobranceiro. Os gatos cercavam o terreno e os de pêlo escuro e mais denso normalmente se engalfinhavam, tomados por um fascínio que só terminou quando Caetano enterrou a mãe no chão do lugar, ergueu uma cruz diminuta e passou a ser sozinho. Porém mesmo antes, certas vezes esses gatos se distanciavam, nas noites de frio passageiro em que a tropa andava pelo povoado e o soldado de modos de coelho delicado visitava Manuela Caçapão, fazendo-a gotejar a tesão de dias e meses sem ele, afastando dali as entidades infernais e obrigando ao barulho o galo que ainda talvez preferisse calar.

Dos dois filhos mais velhos que Manuela viu nascer, preparando-se sem saber para o parto quase mortal de Caetano, Patrício fugira para o Sul escorraçado num duelo com Tenente Canuto, a quem Manuela, Lúcio e Caetano quiseram bem a partir de então, por no momento derradeiro da briga ter errado de propósito o rumo do facão e permitido que Patrício se apressasse até o mar ocidental, apenas com uma vista vazada, um fêmur partido em três e uma seta cravada na mão direita, que tal como em Caetano felizmente não era a boa. Já Lúcio Arrabal, surpreendido em insensata pederastia sobre os leitões criados por Manuela, apanhou até a morte no colo de sua mãe, tendo a boca tapada pelas mãos de Caetano, que considerou justa a punição e aceitável o destino dado ao cadáver, deixado no cocho dos leitões para que estes se vingassem em sua vergonha eterna. Se bem que, após o enterro de Manuela, Caetano recolhera o esqueleto do irmão espalhado pelo chiqueiro e o depositara num balaio com fecho reforçado, porque lhe horrorizava a idéia de que os descendentes dos leitões, ao conviverem diariamente com a ossada de Lúcio sob a influência nefanda do bode sobranceiro, manifestassem a fúria dos antepassados ultrajados e invadissem a casa numa noite qualquer para devorar o último Arrabal intacto, não sem que antes o porco mais bem postado o enrabasse com o falo rosa de penugens indecentes, sujo da merda vermelha e do enxambrar opaco, próprios das porquinhas moças.

Nos primeiros meses que sucederam a morte de sua mãe, Caetano promoveu o que há muito planejava, com tamanho controle dos envolvidos, que em menos de três anos o apresentavam como O Doutor. Começou encetando a desconfiança dentro do bando da Curva, uma coleção de ladrões de padre que agia nas estradas e atacava quem queria, pois seu líder era também um auto-intitulado militar que policiava o povoado, um estrangeiro de barba ruça e melindres de vestimenta a quem todos distinguiam por Major Odilon Vargas, mas que após a tremenda balbúrdia provocada por Caetano e assistida por alguns dos próprios subalternos na Guarda e no bando da Curva, confessou se chamar Arião do Prado, um imigrante paranaense de passado invisível, e sumiu matreiro como um fantasma inglês antes até que memorizassem seu nome. A partir daí Caetano ameaçou um a um dos membros do bando e da Guarda com o argumento de que a bruxaria é hereditária e segue da mãe para o caçula, e a aqueles menos impressionáveis propôs uma caçada: capturaram em semanas o antigo chefe Arião do Prado e o socaram numa toca de tatus recheada de escorpiões intransigentes; escorpiões pretejados e guardados em potes e garrafas pelo mesmo Arião, desde a época em que não apontara ainda a sua barba cheia e ruça. De noite o bando da Curva inteiro reconheceu o novo líder, que não chegou a se embebedar com os demais, tendo estado durante o dia compenetrado e sombrio, relembrando um desejo embaçado que sentiu de relance e lhe excitou a carne, à medida que seus homens tocavam fogo na moradia dos tatus.

A essa pequena milícia que obedecia as suas ordens por parte nos lucros e para não verem gatos e cobras espreitando suas famílias, Caetano aliou uma capacidade inaudita para a compra, a venda e a troca, não sendo possível o empréstimo porque sua mercadoria demonstrava a peculiaridade cabal e indiscutível de estar viva. De início, com o produto dos assaltos que o bando da Curva continuou perpetrando e com o soldo mensal recebido pela Guarda dos aldeões temerosos – afinal a Guarda era o bando –, Caetano pôde fomentar em muito as criações de sua mãe, transportando para o povoado leitões de raça do Chile, montarias do Rio Grande e do Mato Grosso, e pássaros ornamentais do Norte que passou a encomendar e despachar para fora do Brasil, através de contatos que firmou junto aos militares e negociantes da capital, sempre com a diligência e a habilidade que manifestou desde a tomada das rédeas do lugar, e com uns sopapos e balázios de seu bacamarte, que nas horas de sono do dono ficava recostado ao balaio dos ossos de Lúcio, e por essa presteza leal foi nomeado Capitão da Guarda, o que impelia os membros do grupo menos graduados a lhe bater continência, e os fazia correr o risco das sérias represálias cabíveis nos casos de insubordinação. Na única vez em que Caetano se ofendeu, ao ser acertado de raspão pelo tiro titubeante de um tropeiro receoso, houve um alívio geral não porque a ferida era de nada, mas sim porque o grupo todo, incluindo Caetano, se sentia desconfortável por existir na liderança uma cabeça desmedida, que nunca era sequer cogitada como alvo de bala alheia. Assim mesmo, tão rapaz e prestigioso, Caetano não parecia contente e aqueles que o conheciam de antes suspeitavam discretamente de sua agonia escancarada, meio disfarçada em vigor e provinda do ar silencioso, demasiado tácito, surgido justamente no dia em que se tornou o chefe do bando e o corpo de Arião foi socado e esturricado na toca, primeiro por peçonha e depois pelas chamas candentes. Dentro de si Caetano mantinha um desejo premente, que lhe veio de fato naquela data e não tardaria a espontar, enchendo de aversão e enleio os seus mais firmes partidários.

Apareceu trazido lentamente no sibilo também característico, achatando o solo da entrada e enrugando a grama abaixo. O carro era de boi e comum, mas por estarem os bois encarregados de uma enorme leva de porcos, solicitada pelos cafeicultores do sudoeste do estado, o carro vinha puxado por dois cavalos volumosos. Os passantes que viam a carga se deitavam uma bênção, e um raso do grupo, estupefato, largou o posto da encruzilhada e entrou no lugarejo correndo, já tramando o discurso que faria na sede principal da Guarda. Atrás do carro havia outro; atrás desse mais um, um quarto e um quinto. Em todos os carros e mais numerosamente no sexto vinham caceteiros desconhecidos, que não faziam parte do bando ou da Guarda, uma vez que para conservar no segredo a origem da carga nenhuma espécie de capataz era tão indicada quanto os muleiros de Sorocaba. Estacionaram na pracinha em frente à sede da Guarda com a gente se amontoando para entender o que acontecia, e viram Caetano sair pela porteira do prédio, subir num dos potros desgastados do carro dianteiro e dizer, com pouca autoridade, mais devido a saber de antemão que os muleiros e a gente o atenderiam, do que à doentia sensação de umidade que lhe perturbou os nervos ao roçar a sela do potro:

– Estas pequenas são minhas, vou criá-las no meu curral.

O raso que correra para avisar Caetano chegou à pracinha a tempo de ouvir o ditame. Então, enquanto via as adolescentes se levantando espantadas e fracassadas pelo calor, percebeu que estavam presas aos carros por grilhões adaptados a aldravas que lhes sangravam o pulsos. Eram todas castanhas ou ruças de olhar acanhado e falar incontido. Uma das mais brancas chorou baixo e o raso, no caminho de volta, concluiu que essa demoraria a se acostumar ao curral, ao couro amarelo, ao esqueleto trancado e à garrucha empossada, naquele lugar de bruxaria e guerra, onde não havia maior peso e imensidão que os da cabeça de Caetano Arrabal.
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