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Contos-->O CANTO DA SERIEMA -- 14/05/2003 - 14:21 (Moura Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O CANTO DA SERIEMA

A Vila do Duro ainda dormia à sombra escura da Serra Geral. Os clarões da madrugada velha rompiam no firmamento. O tropeiro Nortão Xangraxá, mulato espadaúdo, de peitaço largo, de bruaqueiro tupina, sem tardança colocou o dobro no alto da cangalha e apertou com vontade o ligal, que acochou rangindo na correama de couro cru nova. E gungunou animado:
— Arre, burrada turuna!... Parada agora, só no Marimbu!
Passou a perna no burro, deu o sinal de partida e furou o ar num estalado seco com o longo manguá de couro de anta; e a burrada arreada, gemendo com os pesados surrões, derramou-se na estrada, no rumo de Barreiras.
O tempo ainda era das derradeiras águas. Os caminhos escorregadiços, encharcados, com olhos d’água rebentando-se pelos grotões e pelas campinas. A seriema estridulou ao longe, naplanura chata dos gerais, o canto grave e metálico.

* * *

O boiadeiro Salomão de Sousa, viajando à escoteira, acochou os bicos das esporas nos vazios da maturra, que entrou serenando nas águas do rio das Ondas e foi bater na outra margem e saiu espadanando o rabo. Para trás ficou Barreiras, e o seu destino era a Vila do Duro.
A mulona, arraçoada com milho e rapadura, embrenhou-se na região dos carrascais impiedosos, dos sertões dos gerais e foi furando as imensidões até a Cabeceira da Vereda. Lugar ermo e feio, de chão estorricado, onde os carreiros padeciam o seu calvário, com a quebra de eixos dos carros de bois.
O sol estava a duas braças, quando Salomão entrou na Ponta d’água. Logo adiante, num atoleiro deparou com um carro de bois encravado, e os homens na labuta. Foi saudando do alto da mulona:
— Deus seja louvado, meus amigos!
Todos responderam. E o boiadeiro foi saltando da alimária e se prontificando:
— Cheguei na hora do adjutório!
O velho João Bruaca, chancudo, de musculatura firme e cevado na paçoca de gergelim, já tordilho, ficou animado com a disposição de Salomão, e arrepiou cabelos.
— Arre, cambada de tomba-cupins! Antão não sabe que aroeira quando dá no cerne é cento e cinquenta anos, e se for sapecada de fogo, é duzentos anos?!
E atirando o chapéu de couro ao chão, meteu os braços na mesa do carro, com o barro até nas canelas, e fungou sentido:
— Força, moçada perrengue! Comigo é assim, não faço piseiro em tijuco!
E o carro saltou do atoleiro cantando nos cocões. Num cambará-de-lixa, um guitererê alegrou a tarde com seu canto.
O velho João Bruaca agradeceu a ajuda e aconselhou oboiadeiro:
— Tenha muito cuidado, seu moço, os bandoleiros Cascavel-de-Quatro-Ventas, Urutu e Caranguejeira estão agindo daqui até a cabeceira do rio Palmeira. Assaltam qualquer um, carreiros, tropeiros e andarilhos. É uma miséria. É bom o amigo ir cortando por fora da estrada-real. É mais seguro.
Salomão, passando a perna na mula, respondeu:
— Se estou com Deus, quem pode estar contra mim?
E ali deu adeus ao velho carreiro e ganhou os gerais, com a mula batendo orelhas pelo caminho. À boquinha da noite avistou uma fogueira nas proximidades de um jatobá vistoso. Sentado num couro de boi, estava um velho barbaçudo, chopitando um cigarro de fumo tabouqueiro. O velho o saudou de semblante alegre:
— Vamos apeando, que do lá de cá, é de boa paz!
— E do meu também! — Respondeu o boiadeiro.
Salomão apeou para o pernoite. Tratou logo de pear a mula e amarrou seu fiango num galho alto do jatobazeiro. E o prosão foi ferrado.
— A minha graça, seu boiadeiro, é Febrônio Gonó; moro no caldeirão de Pedro Botelho. Pode me chamar de Gonó, seu criado.
— Por que caldeirão de Pedro Botelho? —Inquiriu Salomão.
O velho, coçando a barbaça de piaçaba, riu e explicou:
— É a Vila do Pontal do Guará, aí na beira do Paranã. Aquilo, no tempo do maioral, barriga de surrão, foi um inferno, onde o couro do relho cantava e o cala-boca zunia. O gunga-muquixe era de estatura meã, olho zerê, boca torta e de barba de umbigo de boi. Quando gargalhava, era como um grunhido de caititu. A sua pessoa exalava o pixé da morte. Ele era o manda-trovoada, era senhor da vida e da morte. Por qualquer dá-cá-aquela-palha mandava surrar o cristengo. Os garimpeiros eram obrigados a lhe pagar uma pesada taxa do ouro arrancado das lavras. E o gunga depois mandava os seus escravos atocaiar os coitados, em qualquer beira de caminho, para roubar o ouro e encomendar as suas almas. Não respeitava a mulher de seu ninguém. A que lhe interessavamandava buscar debaixo de clavinote. Mas um dia ele tomou à força a mulher do Zoca –Mão-de-Onça, e o caldo entornou. Mão-de-Onça, mestição ombrudo e de muita coragem, curtiu calado sua desgraça. Chegou a ficar como cipó de dar em alma. Mas sempre observando os movimentos do gunga, nas suas idas pras suas fazendas. E numa madrugada fez sertão. Ninguém teve mais notícia de sua pessoa. Foi viver como bicho do mato, atocaiado às margens do rio Palma. O gunga tinha o costume dos antigos, de tomar banho de madrugadinha nas águas correntes. Mão-de-Onça, assuntou por muitos meses o seu movimento, no poço de banho, ali no rio Palma, no fundo de sua fazenda. Tomou todas as providências, apesar do homem ter a fama de corpo fechado, não quis preparar bala de ouro, não. Carregou o clavinote boca-de-sino com duas colheres de pólvora e balotes de ferro de pés-de-panela untados com veneno de cascavel, que, segundo sua crença, era bom pra matar feiticeiros curados. E numa madrugada de brisa mansa, do ano de 1831, preparou a tocaia debaixo de uma gameleira. E lá en-vém o gunga de ceroula pro seu banho costumeiro. Quando se aproximou da linha de tiro, Mão-de-Onça berrou fogo. O tirambaço esgoelou longe, na beira do rio, espantando a bicharada. O gunga caiu mole, com o rombo no peito, ciscando o chão. Mão-de-Onça, da tocaia, sorriu satisfeito e exclamou:
— Se o barreado de ferro não matar, o veneno da cascavel sepulta!...
E azeitando as canelas desapareceu na mata. O povo da vila recebeu a morte do gunga com uma alegria medonha. E até hoje não gostam de lembrar o nome do ladrão espancador!
— Eu que não vou nesse Pontal do Guará, pois a minha rota é a vila do Duro, não tenho que me preocupar com a assombração deste tinhoso das profundas.
O velho, rindo, acrescenta:
— Antão, meu filho, tenha muito cuidado! Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cacundeiros estão derramando maldade pela região. Me faça um favor: quando estiver passando por Conceição, procure Zé Mumbica e diga-lhe que esse desgraçado do Cascavel ofendeu sua sobrinha, no Cocalinho. Ele sabe onde fica. E como não deixa os seus como defunto sem choro... Vai bater aqui e fazer esses ladrões virarem cruzes de beira de estrada. Escuta o que te digo, homem! Ora se vai! Ali é cabra macho!
A noite avançava pelos chapadões e encostas da Serra Geral. Os vagalumes ziguezagueavam por entre as moitas.
Quando a estrela-d’alva descambava no firmamento, Salomão arreou a mula e fez chão. Ao romper da manhã, quando passava por uma restinga de mato, foi surpreendido por três cavaleiros, que o fecharam duma vez na estrada. Não teve dúvida; eram os bandoleiros! À esquerda ficou Urutu; à direita, Carangueijeira e na frente, Cascavel-de-Quatro-Ventas, com seu focinho-de-porco, mostrando os dentes acavalados. A sua carona de tatu arregalado bafejava a morte. E foi dizendo:
— Cabra fogoió da peste! Vai apeando e tirando os cobres do alambrado da sela, que é meu !
Carangueijeira, rosnando como onça em sobejo de carniça, reclamava:
— As botas e a roupa é do degas aqui !...
Urutu ergueu a voz grave de gralha:
— Eu me contento com a arreata e a mula!...
Uma acauã gargantou ao longe:
— Vá à cova!... Vá à cova !
O chefe-caveira dos malfeitores, rilhando os dentes de criminoso, com o garruchão nas mãos, admoestou raivoso:
— Se fizer um movimento, eu berro fogo, fogoió safado!...
Salomão, na agonia do momento, instintivamente invocou numa prece silente a ajuda das hostes celestiais. E essa súplica cresceu dentro de si , numa força gigantesca, que o levou a correr as esporas nas ilhargas da mula. O animal jogou gorgulho para trás, numa arrancada de anta na canajuba, que levou de roldão, no peito, o cavalo ruço-cardão do bandoleiro, dando tempo de ainda meter-lhe nas arcas do queixo um murraço, fazendo-o desequilibrar comgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

* * *

O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejosgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

* * *

O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejos aotronco da árvore. Os biriguis xoupões não lhe davam sossego, pelos braços e rosto. As taçuíras também atacavam, entrando pela barra da calça de algodão ganga. Do seu esconderijo, quando não ouviu mais barulho dos bandoleiros, desceu pelo tronco da árvore e pelos taimbés. E foi segurando na raizama e nos cipós, até bater no fundo do grotão. Dali seguiu o filete d’água e saiu num carreiro de gado, que cortava a grota. Quando saiu em cima, andou um pouco pelo reboleiro de taboca e deu em riba da mula; puxou-a pelo cabresto até sair da canajuba e passou-lhe a perna, seguindo pelo tirão batido de casco de gado; quando chegou a uma tingueira, cortou por fora e foi sair numa várzea às margens do rio de Janeiro. Lugar bonito para refrigério de gado! E no meio avistou uma ema que briquitava com uma cascavel. Aproximou-se um pouco e ficou observando a luta. A cascavel batendo o maracá, se enrodilhava, na treita, e armava o bote. A ema gingava, no bamboleio das pernas longas e secas. Abriu as asas e vinha arrastando as pontas. A cobra jogava o bote e só pegava as pontas das penas. Do alto do pescoção fino, a ema abaixou veloz e sapecou a bicada na croa da cabeça da cascavel. A cobra se enrodilhou novamente e deu outro bote. E a ema já nervosa da brincadeira mortífera, retiniu umas três bicadas certeiras na cabeça da cobra, que se entregou à morte. E no final, emitiu um gemido profundo e devorou a maracabóia.
Salomão, sentindo a sede acochar, esporeou a mula pra beira do rio, amarrando-a num cambuí, e desceu a barranqueira, indo dar nuns lajeados de pedra. E ali de cócaras, na ponta de uma pedra chata, meteu a mão fechada em forma de concha na água do perau escuro e, quando a jogava à boca, de supetão as águas num rebojo violento se abriram; e a cabeça negra de uma sucuriú-de-cama apontou; e num bote feroz enroscou-lhe o corpo, arrastando-o pra dentro do poço. O laço da surucujuba foi atarrachando-o, num emaranhado de roscas apertadas, ficando-lhe livre o braço direito; e naquela agonia de vida ou morte, com o laço acochando cada vez mais, numa força colossal, meteu os dedos nos olhos da sucuriú, como se fossem garfos de aço, que os caroços saíram daórbita. O monstro negro, numa cutelada de dor, afrouxou o laço, e Salomão nadou rápido pra fora do rio. Subiu o barranco e, montando na mula, ganhou o cerradão. Foi margeando o rio quando, em certa altura, ouviu o cantar de carros de bois. Era a passagem. Um dos carreiros atravessou o rio, pois o vau era fundo. E assim que avistou o boiadeiro, foi dizendo:
— Parece que o amigo vem fugindo de perigo, num trote?!...
— Bota perigo nisso, amigo! Primeiro fugi dos ladroões, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas, e, ainda há pouco, da boca de uma sucuriú-de-cama, de um poção escuro desse rio.
O carreiro, voltando-se pros ajudantes, disse:
— Vocês ouviram? Os ladrões dos gerais estão no trecho. Preparem as armas, e vamos atravessar ligeiro o rio.
Salomão saltou da mula e foi ajudar os homens. O carro estava do outro lado, no alto da ribanceira. O mestre-carreiro, na sua vasta experiência, mandou o candeeiro tirar do recavém as ferramentas, machado e enchada, por medidas de segurança, se delas precisasse. Em seguida descambuiu uma junta de boi, lá da frente e a encabuiu, presa, por tirante, no argolão, para segurar o carro por trás, como se fosse freio. E gritou os bois:
— Barroso, Malhado, ôoo boi!... E lá foi de barranco abaixo. Quando chegou em baixo, quase entrando na água, parou os bois, e a carga foi atravessada na cabeça dos homens. Asssim que terminou o transporte da carga, o mestre-carreiro desatrelou os bois e os atravessou a nado. E na outra margem os encangou de novo, e amarrou as cordas na mesa do carro, e os bois o puxaram para a margem. Aí que foi dificuldade subir a ribanceira. O mestre-carreiro lá ia e lá vinha, de um lado e do outro, gritando com os bois, pois tinha que puxar macio, por igual, para que as correias não arrebentassem ou alguns canzis. Os bois, de corpo para frente, as pernas de viés, no chão, as carnes duras como pedra, iam rasgando barranco acima. E no alto, o alívio! Eram homens treinados com a árdua tarefa, apesar do cansaço e das noites indormidas, varavam sertão. Havia trecho do caminho, naquelas campinasmensas, que o mestre-carreiro, de pé, dormia sufocado pelo sono; quando despertava por algum tropicão, o carro ia rompendo sózinho. Aí saía correndo para alcançá-lo.
Salomão despediu-se do carreiro e derramou na estrada. Andou várias léguas paridas; quando entrava na mata, às margens do Ribeirão-do-Boi-Morto, um tiro espocou forte, e os anuns, as almas-de-gato saíram voando. E Salomão, do alto da mula, despencou para o chão com um buraco no peito, sangrando. Os tocaieiros saíram de trás dos pés de paus e foram apossando-se dos pertences da vítima, que ainda agoniava na ânsia da morte. Urutu foi arrancando as botas e as roupas. Cascavel-de-Quatro-Ventas afrouxou a barrigueira da sela da mula e encontrou o tufo de dinheiro no suadouro.
Nisso soaram, nas proximidades, as badaladas de chocalho de tropa. Os bandoleiros saíram correndo pelo mato. Não demorou e a tropa apontou na boca da mata. Era Nortão Xangraxá. O tocador-guia gritou:
— Patrão, tem um homem morto no caminho; deve ser do tiro que ouvimos, ainda há pouco!
Xangraxá encostou a tropa na magem do ribeirão e foi dar sepultura ao morto. Numa moita próximo do corpo, encontrou um alforje deixado cair pela fuga dos matadores. O chefe-tropeiro abriu as bolsas do alforje e encontrou vários objetos e, entre eles, uma carta. A tampa do alforje continha uma marca estranha. O tropeiro abriu a carta e, na sombra de um angico, leu a missiva:

“Salvador, 4 de abril de 1875
Prezado Coronel Macabeu
O portador desta, Salomão de Sousa, tem a missão de instalar, no Duro, uma oficina e de arrecadar dinheiro entre os operários para alforriar os escravos que forem comprando, como os operários da oficina de Vila Boa estão fazendo. Com isto, vamos limpar o país desta horrível mancha da escravidão.
Portando, contamos com seu apoio.
Saudações,
Melquisedeque”

Xangraxá, após dar sepultura ao morto, rompeu estrada. E no décimo dia chegou a Barreiras. Foi só entrar na rua principal, com a tropa, que o capitão João da Mata, do seu casarão, assim que bateu com os olhos na marca do alforje dependurado na sela do tropeiro, o abordou de imediato:
— Esse alforje é de meu irmão Salomão, que não desapartava dele, nem para dormir. Como veio parar nas suas mãos?
O tropeiro apressou-se em responder:
— Meu Capitão, esse alforje foi encontrado junto do morto, nas beiras do Ribeirão-do-Boi-Morto. Só indetifiquei o morto, foi porque encontramos uma carta no alforje, e está aqui. O coitado foi atocaiado pelos bandoleiros, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cupinchas. E levaram tudo, burra, dinheiro, as roupas, deixando-o nu como nasceu. E nós, por dever de cristão demos-lhe sepultura.
Após as explicações entregou ao capitão os pertences do morto. O Capitão, comovido, agradeceu. O tropeiro estalou o relho na tropa e continuou rua abaixo. O Capitão, com a triste notícia, reagiu de imediato e mandou chamar os homens de bem da terra. Em poucos minutos, quatro cidadãos de respeito estavam na sua presença, selando um pacto de vingança:
— Estamos prontos para partir, Capitão, e chorar o nosso morto. Aqueles ladrões de estrada vão receber o que pediram !...
Aos primeiros vislumbres da madrugada, os cinco cavaleiros, vestidos de bursaca negra , bem armados , com espadas reluzentes à borraina das selas e com dois cargueiros de mantimentos , ferramentas e gargalheiras, derramaram-se na estrada. No vigésimo dia de viagem encontraram na região do rio de Janeiro três homens a pé, em estado lastimável, nos molambos, meio trôpegos. Um dos homens, demonstrando uma alegria imensa, ergueu a voz:
— Foi DEUS que os mandou !... Foi DEUS!...
O Capitão, ali no meio do caminho, pediu calma aos homens, que foram repisando a tragédia.
— Fomos roubados pelo bandoleiro Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas. Nos tirou tudo, tropa e até nossas roupas . Olhe só a nossa miséria , Capitão , nos deixou na tanga, de ceroula!
O Capitão, erguendo o chapéu de couro, ansioso perguntou:
— Mas aonde estão os miseravéis ?
— Na hora em que eles estavam nos roubando, eu ouvi o porcão maior dizer: — Ande depressa, que vamos ficar atocaiados na beira do rio, aguardando o comboio de carros de bois que envém do Duro. Vamos lavar a égua, cambada!”
O Capitão, rilhando os dentes, reiterou :
— Se vocês desejar nos acompanhar, vamos recuperar sua tropa e sepultar os miseráveis !...
Os homens aplaudiram o convite e se prontificaram à caminhada. O Capitão mandou armá-los de imediato .
À boca da noite, chegaram às imediações da mata do rio. Por precaução o Capitão acampou a certa distância da passagem do vau, que era o lugar da tocaia dos bandidos. E ato contínuo determinou um dos tropeiros para espionar os movimentos dos ladrões. Dentro de pouco tempo o homem retornou e informou:
— Os cabras estão acampados à direita do vau...
A noite avançava. As rasga-mortalhas sobrevoavam o acampamento. Quando a estrela-d’ alva surgiu brilhosa no céu, os homens começaram o movimento, para a emboscada aos ladrões. Foram rastejando pelo mato; quando chegaram ao acampamento, os malfeitores dormiam a sono solto. O Capitão não pestanejou, caiu de armas em cima dos bandidos, que não tiveram tempo de reação. O dia vinha rompendo, cheio de energia na vastidão daquelas paragens. O Capitão ordenou que acorrentassem os bandidos. E as correntes com as gargalheiras foram acochadas nos tornozelos e pescoço. Os cabras fungavam ajoujados nas ferropéias. O Capitão, voltando-se para o tropeiro Zeca Bié, um pardaço de estatura meã , solicitou:
— Seu Bié, me prepare rápido três cangas de guatambu pra— Estamos chegando no vau das acácias !...
O Capitão, com os homens montados, fizeram as últimas orações ao morto e desapareceram na verdura dos chapadões dos gerais.
O canto da seriema estridulou ao longe, pras bandas da Serra Geral.

O CANTO DA SERIEMA

Vila do Duro ainda dormia à sombra escura da Serra Geral. Os clarões da madrugada velha rompiam no firmamento. O tropeiro Nortão Xangraxá, mulato espadaúdo, de peitaço largo, de bruaqueiro tupina, sem tardança colocou o dobro no alto da cangalha e apertou com vontade o ligal, que acochou rangindo na correama de couro cru nova. E gungunou animado:
— Arre, burrada turuna!... Parada agora, só no Marimbu!
Passou a perna no burro, deu o sinal de partida e furou o ar num estalado seco com o longo manguá de couro de anta; e a burrada arreada, gemendo com os pesados surrões, derramou-se na estrada, no rumo de Barreiras.
O tempo ainda era das derradeiras águas. Os caminhos escorregadiços, encharcados, com olhos d’água rebentando-se pelos grotões e pelas campinas. A seriema estridulou ao longe, naplanura chata dos gerais, o canto grave e metálico.

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O boiadeiro Salomão de Sousa, viajando à escoteira, acochou os bicos das esporas nos vazios da maturra, que entrou serenando nas águas do rio das Ondas e foi bater na outra margem e saiu espadanando o rabo. Para trás ficou Barreiras, e o seu destino era a Vila do Duro.
A mulona, arraçoada com milho e rapadura, embrenhou-se na região dos carrascais impiedosos, dos sertões dos gerais e foi furando as imensidões até a Cabeceira da Vereda. Lugar ermo e feio, de chão estorricado, onde os carreiros padeciam o seu calvário, com a quebra de eixos dos carros de bois.
O sol estava a duas braças, quando Salomão entrou na Ponta d’água. Logo adiante, num atoleiro deparou com um carro de bois encravado, e os homens na labuta. Foi saudando do alto da mulona:
— Deus seja louvado, meus amigos!
Todos responderam. E o boiadeiro foi saltando da alimária e se prontificando:
— Cheguei na hora do adjutório!
O velho João Bruaca, chancudo, de musculatura firme e cevado na paçoca de gergelim, já tordilho, ficou animado com a disposição de Salomão, e arrepiou cabelos.
— Arre, cambada de tomba-cupins! Antão não sabe que aroeira quando dá no cerne é cento e cinquenta anos, e se for sapecada de fogo, é duzentos anos?!
E atirando o chapéu de couro ao chão, meteu os braços na mesa do carro, com o barro até nas canelas, e fungou sentido:
— Força, moçada perrengue! Comigo é assim, não faço piseiro em tijuco!
E o carro saltou do atoleiro cantando nos cocões. Num cambará-de-lixa, um guitererê alegrou a tarde com seu canto.
O velho João Bruaca agradeceu a ajuda e aconselhou oboiadeiro:
— Tenha muito cuidado, seu moço, os bandoleiros Cascavel-de-Quatro-Ventas, Urutu e Caranguejeira estão agindo daqui até a cabeceira do rio Palmeira. Assaltam qualquer um, carreiros, tropeiros e andarilhos. É uma miséria. É bom o amigo ir cortando por fora da estrada-real. É mais seguro.
Salomão, passando a perna na mula, respondeu:
— Se estou com Deus, quem pode estar contra mim?
E ali deu adeus ao velho carreiro e ganhou os gerais, com a mula batendo orelhas pelo caminho. À boquinha da noite avistou uma fogueira nas proximidades de um jatobá vistoso. Sentado num couro de boi, estava um velho barbaçudo, chopitando um cigarro de fumo tabouqueiro. O velho o saudou de semblante alegre:
— Vamos apeando, que do lá de cá, é de boa paz!
— E do meu também! — Respondeu o boiadeiro.
Salomão apeou para o pernoite. Tratou logo de pear a mula e amarrou seu fiango num galho alto do jatobazeiro. E o prosão foi ferrado.
— A minha graça, seu boiadeiro, é Febrônio Gonó; moro no caldeirão de Pedro Botelho. Pode me chamar de Gonó, seu criado.
— Por que caldeirão de Pedro Botelho? —Inquiriu Salomão.
O velho, coçando a barbaça de piaçaba, riu e explicou:
— É a Vila do Pontal do Guará, aí na beira do Paranã. Aquilo, no tempo do maioral, barriga de surrão, foi um inferno, onde o couro do relho cantava e o cala-boca zunia. O gunga-muquixe era de estatura meã, olho zerê, boca torta e de barba de umbigo de boi. Quando gargalhava, era como um grunhido de caititu. A sua pessoa exalava o pixé da morte. Ele era o manda-trovoada, era senhor da vida e da morte. Por qualquer dá-cá-aquela-palha mandava surrar o cristengo. Os garimpeiros eram obrigados a lhe pagar uma pesada taxa do ouro arrancado das lavras. E o gunga depois mandava os seus escravos atocaiar os coitados, em qualquer beira de caminho, para roubar o ouro e encomendar as suas almas. Não respeitava a mulher de seu ninguém. A que lhe interessavamandava buscar debaixo de clavinote. Mas um dia ele tomou à força a mulher do Zoca –Mão-de-Onça, e o caldo entornou. Mão-de-Onça, mestição ombrudo e de muita coragem, curtiu calado sua desgraça. Chegou a ficar como cipó de dar em alma. Mas sempre observando os movimentos do gunga, nas suas idas pras suas fazendas. E numa madrugada fez sertão. Ninguém teve mais notícia de sua pessoa. Foi viver como bicho do mato, atocaiado às margens do rio Palma. O gunga tinha o costume dos antigos, de tomar banho de madrugadinha nas águas correntes. Mão-de-Onça, assuntou por muitos meses o seu movimento, no poço de banho, ali no rio Palma, no fundo de sua fazenda. Tomou todas as providências, apesar do homem ter a fama de corpo fechado, não quis preparar bala de ouro, não. Carregou o clavinote boca-de-sino com duas colheres de pólvora e balotes de ferro de pés-de-panela untados com veneno de cascavel, que, segundo sua crença, era bom pra matar feiticeiros curados. E numa madrugada de brisa mansa, do ano de 1831, preparou a tocaia debaixo de uma gameleira. E lá en-vém o gunga de ceroula pro seu banho costumeiro. Quando se aproximou da linha de tiro, Mão-de-Onça berrou fogo. O tirambaço esgoelou longe, na beira do rio, espantando a bicharada. O gunga caiu mole, com o rombo no peito, ciscando o chão. Mão-de-Onça, da tocaia, sorriu satisfeito e exclamou:
— Se o barreado de ferro não matar, o veneno da cascavel sepulta!...
E azeitando as canelas desapareceu na mata. O povo da vila recebeu a morte do gunga com uma alegria medonha. E até hoje não gostam de lembrar o nome do ladrão espancador!
— Eu que não vou nesse Pontal do Guará, pois a minha rota é a vila do Duro, não tenho que me preocupar com a assombração deste tinhoso das profundas.
O velho, rindo, acrescenta:
— Antão, meu filho, tenha muito cuidado! Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cacundeiros estão derramando maldade pela região. Me faça um favor: quando estiver passando por Conceição, procure Zé Mumbica e diga-lhe que esse desgraçado do Cascavel ofendeu sua sobrinha, no Cocalinho. Ele sabe onde fica. E como não deixa os seus como defunto sem choro... Vai bater aqui e fazer esses ladrões virarem cruzes de beira de estrada. Escuta o que te digo, homem! Ora se vai! Ali é cabra macho!
A noite avançava pelos chapadões e encostas da Serra Geral. Os vagalumes ziguezagueavam por entre as moitas.
Quando a estrela-d’alva descambava no firmamento, Salomão arreou a mula e fez chão. Ao romper da manhã, quando passava por uma restinga de mato, foi surpreendido por três cavaleiros, que o fecharam duma vez na estrada. Não teve dúvida; eram os bandoleiros! À esquerda ficou Urutu; à direita, Carangueijeira e na frente, Cascavel-de-Quatro-Ventas, com seu focinho-de-porco, mostrando os dentes acavalados. A sua carona de tatu arregalado bafejava a morte. E foi dizendo:
— Cabra fogoió da peste! Vai apeando e tirando os cobres do alambrado da sela, que é meu !
Carangueijeira, rosnando como onça em sobejo de carniça, reclamava:
— As botas e a roupa é do degas aqui !...
Urutu ergueu a voz grave de gralha:
— Eu me contento com a arreata e a mula!...
Uma acauã gargantou ao longe:
— Vá à cova!... Vá à cova !
O chefe-caveira dos malfeitores, rilhando os dentes de criminoso, com o garruchão nas mãos, admoestou raivoso:
— Se fizer um movimento, eu berro fogo, fogoió safado!...
Salomão, na agonia do momento, instintivamente invocou numa prece silente a ajuda das hostes celestiais. E essa súplica cresceu dentro de si , numa força gigantesca, que o levou a correr as esporas nas ilhargas da mula. O animal jogou gorgulho para trás, numa arrancada de anta na canajuba, que levou de roldão, no peito, o cavalo ruço-cardão do bandoleiro, dando tempo de ainda meter-lhe nas arcas do queixo um murraço, fazendo-o desequilibrar comgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

* * *

O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejosgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

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O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejos aotronco da árvore. Os biriguis xoupões não lhe davam sossego, pelos braços e rosto. As taçuíras também atacavam, entrando pela barra da calça de algodão ganga. Do seu esconderijo, quando não ouviu mais barulho dos bandoleiros, desceu pelo tronco da árvore e pelos taimbés. E foi segurando na raizama e nos cipós, até bater no fundo do grotão. Dali seguiu o filete d’água e saiu num carreiro de gado, que cortava a grota. Quando saiu em cima, andou um pouco pelo reboleiro de taboca e deu em riba da mula; puxou-a pelo cabresto até sair da canajuba e passou-lhe a perna, seguindo pelo tirão batido de casco de gado; quando chegou a uma tingueira, cortou por fora e foi sair numa várzea às margens do rio de Janeiro. Lugar bonito para refrigério de gado! E no meio avistou uma ema que briquitava com uma cascavel. Aproximou-se um pouco e ficou observando a luta. A cascavel batendo o maracá, se enrodilhava, na treita, e armava o bote. A ema gingava, no bamboleio das pernas longas e secas. Abriu as asas e vinha arrastando as pontas. A cobra jogava o bote e só pegava as pontas das penas. Do alto do pescoção fino, a ema abaixou veloz e sapecou a bicada na croa da cabeça da cascavel. A cobra se enrodilhou novamente e deu outro bote. E a ema já nervosa da brincadeira mortífera, retiniu umas três bicadas certeiras na cabeça da cobra, que se entregou à morte. E no final, emitiu um gemido profundo e devorou a maracabóia.
Salomão, sentindo a sede acochar, esporeou a mula pra beira do rio, amarrando-a num cambuí, e desceu a barranqueira, indo dar nuns lajeados de pedra. E ali de cócaras, na ponta de uma pedra chata, meteu a mão fechada em forma de concha na água do perau escuro e, quando a jogava à boca, de supetão as águas num rebojo violento se abriram; e a cabeça negra de uma sucuriú-de-cama apontou; e num bote feroz enroscou-lhe o corpo, arrastando-o pra dentro do poço. O laço da surucujuba foi atarrachando-o, num emaranhado de roscas apertadas, ficando-lhe livre o braço direito; e naquela agonia de vida ou morte, com o laço acochando cada vez mais, numa força colossal, meteu os dedos nos olhos da sucuriú, como se fossem garfos de aço, que os caroços saíram daórbita. O monstro negro, numa cutelada de dor, afrouxou o laço, e Salomão nadou rápido pra fora do rio. Subiu o barranco e, montando na mula, ganhou o cerradão. Foi margeando o rio quando, em certa altura, ouviu o cantar de carros de bois. Era a passagem. Um dos carreiros atravessou o rio, pois o vau era fundo. E assim que avistou o boiadeiro, foi dizendo:
— Parece que o amigo vem fugindo de perigo, num trote?!...
— Bota perigo nisso, amigo! Primeiro fugi dos ladroões, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas, e, ainda há pouco, da boca de uma sucuriú-de-cama, de um poção escuro desse rio.
O carreiro, voltando-se pros ajudantes, disse:
— Vocês ouviram? Os ladrões dos gerais estão no trecho. Preparem as armas, e vamos atravessar ligeiro o rio.
Salomão saltou da mula e foi ajudar os homens. O carro estava do outro lado, no alto da ribanceira. O mestre-carreiro, na sua vasta experiência, mandou o candeeiro tirar do recavém as ferramentas, machado e enchada, por medidas de segurança, se delas precisasse. Em seguida descambuiu uma junta de boi, lá da frente e a encabuiu, presa, por tirante, no argolão, para segurar o carro por trás, como se fosse freio. E gritou os bois:
— Barroso, Malhado, ôoo boi!... E lá foi de barranco abaixo. Quando chegou em baixo, quase entrando na água, parou os bois, e a carga foi atravessada na cabeça dos homens. Asssim que terminou o transporte da carga, o mestre-carreiro desatrelou os bois e os atravessou a nado. E na outra margem os encangou de novo, e amarrou as cordas na mesa do carro, e os bois o puxaram para a margem. Aí que foi dificuldade subir a ribanceira. O mestre-carreiro lá ia e lá vinha, de um lado e do outro, gritando com os bois, pois tinha que puxar macio, por igual, para que as correias não arrebentassem ou alguns canzis. Os bois, de corpo para frente, as pernas de viés, no chão, as carnes duras como pedra, iam rasgando barranco acima. E no alto, o alívio! Eram homens treinados com a árdua tarefa, apesar do cansaço e das noites indormidas, varavam sertão. Havia trecho do caminho, naquelas campinasmensas, que o mestre-carreiro, de pé, dormia sufocado pelo sono; quando despertava por algum tropicão, o carro ia rompendo sózinho. Aí saía correndo para alcançá-lo.
Salomão despediu-se do carreiro e derramou na estrada. Andou várias léguas paridas; quando entrava na mata, às margens do Ribeirão-do-Boi-Morto, um tiro espocou forte, e os anuns, as almas-de-gato saíram voando. E Salomão, do alto da mula, despencou para o chão com um buraco no peito, sangrando. Os tocaieiros saíram de trás dos pés de paus e foram apossando-se dos pertences da vítima, que ainda agoniava na ânsia da morte. Urutu foi arrancando as botas e as roupas. Cascavel-de-Quatro-Ventas afrouxou a barrigueira da sela da mula e encontrou o tufo de dinheiro no suadouro.
Nisso soaram, nas proximidades, as badaladas de chocalho de tropa. Os bandoleiros saíram correndo pelo mato. Não demorou e a tropa apontou na boca da mata. Era Nortão Xangraxá. O tocador-guia gritou:
— Patrão, tem um homem morto no caminho; deve ser do tiro que ouvimos, ainda há pouco!
Xangraxá encostou a tropa na magem do ribeirão e foi dar sepultura ao morto. Numa moita próximo do corpo, encontrou um alforje deixado cair pela fuga dos matadores. O chefe-tropeiro abriu as bolsas do alforje e encontrou vários objetos e, entre eles, uma carta. A tampa do alforje continha uma marca estranha. O tropeiro abriu a carta e, na sombra de um angico, leu a missiva:

“Salvador, 4 de abril de 1875
Prezado Coronel Macabeu
O portador desta, Salomão de Sousa, tem a missão de instalar, no Duro, uma oficina e de arrecadar dinheiro entre os operários para alforriar os escravos que forem comprando, como os operários da oficina de Vila Boa estão fazendo. Com isto, vamos limpar o país desta horrível mancha da escravidão.
Portando, contamos com seu apoio.
Saudações,
Melquisedeque”

Xangraxá, após dar sepultura ao morto, rompeu estrada. E no décimo dia chegou a Barreiras. Foi só entrar na rua principal, com a tropa, que o capitão João da Mata, do seu casarão, assim que bateu com os olhos na marca do alforje dependurado na sela do tropeiro, o abordou de imediato:
— Esse alforje é de meu irmão Salomão, que não desapartava dele, nem para dormir. Como veio parar nas suas mãos?
O tropeiro apressou-se em responder:
— Meu Capitão, esse alforje foi encontrado junto do morto, nas beiras do Ribeirão-do-Boi-Morto. Só indetifiquei o morto, foi porque encontramos uma carta no alforje, e está aqui. O coitado foi atocaiado pelos bandoleiros, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cupinchas. E levaram tudo, burra, dinheiro, as roupas, deixando-o nu como nasceu. E nós, por dever de cristão demos-lhe sepultura.
Após as explicações entregou ao capitão os pertences do morto. O Capitão, comovido, agradeceu. O tropeiro estalou o relho na tropa e continuou rua abaixo. O Capitão, com a triste notícia, reagiu de imediato e mandou chamar os homens de bem da terra. Em poucos minutos, quatro cidadãos de respeito estavam na sua presença, selando um pacto de vingança:
— Estamos prontos para partir, Capitão, e chorar o nosso morto. Aqueles ladrões de estrada vão receber o que pediram !...
Aos primeiros vislumbres da madrugada, os cinco cavaleiros, vestidos de bursaca negra , bem armados , com espadas reluzentes à borraina das selas e com dois cargueiros de mantimentos , ferramentas e gargalheiras, derramaram-se na estrada. No vigésimo dia de viagem encontraram na região do rio de Janeiro três homens a pé, em estado lastimável, nos molambos, meio trôpegos. Um dos homens, demonstrando uma alegria imensa, ergueu a voz:
— Foi DEUS que os mandou !... Foi DEUS!...
O Capitão, ali no meio do caminho, pediu calma aos homens, que foram repisando a tragédia.
— Fomos roubados pelo bandoleiro Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas. Nos tirou tudo, tropa e até nossas roupas . Olhe só a nossa miséria , Capitão , nos deixou na tanga, de ceroula!
O Capitão, erguendo o chapéu de couro, ansioso perguntou:
— Mas aonde estão os miseravéis ?
— Na hora em que eles estavam nos roubando, eu ouvi o porcão maior dizer: — Ande depressa, que vamos ficar atocaiados na beira do rio, aguardando o comboio de carros de bois que envém do Duro. Vamos lavar a égua, cambada!”
O Capitão, rilhando os dentes, reiterou :
— Se vocês desejar nos acompanhar, vamos recuperar sua tropa e sepultar os miseráveis !...
Os homens aplaudiram o convite e se prontificaram à caminhada. O Capitão mandou armá-los de imediato .
À boca da noite, chegaram às imediações da mata do rio. Por precaução o Capitão acampou a certa distância da passagem do vau, que era o lugar da tocaia dos bandidos. E ato contínuo determinou um dos tropeiros para espionar os movimentos dos ladrões. Dentro de pouco tempo o homem retornou e informou:
— Os cabras estão acampados à direita do vau...
A noite avançava. As rasga-mortalhas sobrevoavam o acampamento. Quando a estrela-d’ alva surgiu brilhosa no céu, os homens começaram o movimento, para a emboscada aos ladrões. Foram rastejando pelo mato; quando chegaram ao acampamento, os malfeitores dormiam a sono solto. O Capitão não pestanejou, caiu de armas em cima dos bandidos, que não tiveram tempo de reação. O dia vinha rompendo, cheio de energia na vastidão daquelas paragens. O Capitão ordenou que acorrentassem os bandidos. E as correntes com as gargalheiras foram acochadas nos tornozelos e pescoço. Os cabras fungavam ajoujados nas ferropéias. O Capitão, voltando-se para o tropeiro Zeca Bié, um pardaço de estatura meã , solicitou:
— Seu Bié, me prepare rápido três cangas de guatambu pra— Estamos chegando no vau das acácias !...
O Capitão, com os homens montados, fizeram as últimas orações ao morto e desapareceram na verdura dos chapadões dos gerais.
O canto da seriema estridulou ao longe, pras bandas da Serra Geral.

O CANTO DA SERIEMA

Vila do Duro ainda dormia à sombra escura da Serra Geral. Os clarões da madrugada velha rompiam no firmamento. O tropeiro Nortão Xangraxá, mulato espadaúdo, de peitaço largo, de bruaqueiro tupina, sem tardança colocou o dobro no alto da cangalha e apertou com vontade o ligal, que acochou rangindo na correama de couro cru nova. E gungunou animado:
— Arre, burrada turuna!... Parada agora, só no Marimbu!
Passou a perna no burro, deu o sinal de partida e furou o ar num estalado seco com o longo manguá de couro de anta; e a burrada arreada, gemendo com os pesados surrões, derramou-se na estrada, no rumo de Barreiras.
O tempo ainda era das derradeiras águas. Os caminhos escorregadiços, encharcados, com olhos d’água rebentando-se pelos grotões e pelas campinas. A seriema estridulou ao longe, naplanura chata dos gerais, o canto grave e metálico.

* * *

O boiadeiro Salomão de Sousa, viajando à escoteira, acochou os bicos das esporas nos vazios da maturra, que entrou serenando nas águas do rio das Ondas e foi bater na outra margem e saiu espadanando o rabo. Para trás ficou Barreiras, e o seu destino era a Vila do Duro.
A mulona, arraçoada com milho e rapadura, embrenhou-se na região dos carrascais impiedosos, dos sertões dos gerais e foi furando as imensidões até a Cabeceira da Vereda. Lugar ermo e feio, de chão estorricado, onde os carreiros padeciam o seu calvário, com a quebra de eixos dos carros de bois.
O sol estava a duas braças, quando Salomão entrou na Ponta d’água. Logo adiante, num atoleiro deparou com um carro de bois encravado, e os homens na labuta. Foi saudando do alto da mulona:
— Deus seja louvado, meus amigos!
Todos responderam. E o boiadeiro foi saltando da alimária e se prontificando:
— Cheguei na hora do adjutório!
O velho João Bruaca, chancudo, de musculatura firme e cevado na paçoca de gergelim, já tordilho, ficou animado com a disposição de Salomão, e arrepiou cabelos.
— Arre, cambada de tomba-cupins! Antão não sabe que aroeira quando dá no cerne é cento e cinquenta anos, e se for sapecada de fogo, é duzentos anos?!
E atirando o chapéu de couro ao chão, meteu os braços na mesa do carro, com o barro até nas canelas, e fungou sentido:
— Força, moçada perrengue! Comigo é assim, não faço piseiro em tijuco!
E o carro saltou do atoleiro cantando nos cocões. Num cambará-de-lixa, um guitererê alegrou a tarde com seu canto.
O velho João Bruaca agradeceu a ajuda e aconselhou oboiadeiro:
— Tenha muito cuidado, seu moço, os bandoleiros Cascavel-de-Quatro-Ventas, Urutu e Caranguejeira estão agindo daqui até a cabeceira do rio Palmeira. Assaltam qualquer um, carreiros, tropeiros e andarilhos. É uma miséria. É bom o amigo ir cortando por fora da estrada-real. É mais seguro.
Salomão, passando a perna na mula, respondeu:
— Se estou com Deus, quem pode estar contra mim?
E ali deu adeus ao velho carreiro e ganhou os gerais, com a mula batendo orelhas pelo caminho. À boquinha da noite avistou uma fogueira nas proximidades de um jatobá vistoso. Sentado num couro de boi, estava um velho barbaçudo, chopitando um cigarro de fumo tabouqueiro. O velho o saudou de semblante alegre:
— Vamos apeando, que do lá de cá, é de boa paz!
— E do meu também! — Respondeu o boiadeiro.
Salomão apeou para o pernoite. Tratou logo de pear a mula e amarrou seu fiango num galho alto do jatobazeiro. E o prosão foi ferrado.
— A minha graça, seu boiadeiro, é Febrônio Gonó; moro no caldeirão de Pedro Botelho. Pode me chamar de Gonó, seu criado.
— Por que caldeirão de Pedro Botelho? —Inquiriu Salomão.
O velho, coçando a barbaça de piaçaba, riu e explicou:
— É a Vila do Pontal do Guará, aí na beira do Paranã. Aquilo, no tempo do maioral, barriga de surrão, foi um inferno, onde o couro do relho cantava e o cala-boca zunia. O gunga-muquixe era de estatura meã, olho zerê, boca torta e de barba de umbigo de boi. Quando gargalhava, era como um grunhido de caititu. A sua pessoa exalava o pixé da morte. Ele era o manda-trovoada, era senhor da vida e da morte. Por qualquer dá-cá-aquela-palha mandava surrar o cristengo. Os garimpeiros eram obrigados a lhe pagar uma pesada taxa do ouro arrancado das lavras. E o gunga depois mandava os seus escravos atocaiar os coitados, em qualquer beira de caminho, para roubar o ouro e encomendar as suas almas. Não respeitava a mulher de seu ninguém. A que lhe interessavamandava buscar debaixo de clavinote. Mas um dia ele tomou à força a mulher do Zoca –Mão-de-Onça, e o caldo entornou. Mão-de-Onça, mestição ombrudo e de muita coragem, curtiu calado sua desgraça. Chegou a ficar como cipó de dar em alma. Mas sempre observando os movimentos do gunga, nas suas idas pras suas fazendas. E numa madrugada fez sertão. Ninguém teve mais notícia de sua pessoa. Foi viver como bicho do mato, atocaiado às margens do rio Palma. O gunga tinha o costume dos antigos, de tomar banho de madrugadinha nas águas correntes. Mão-de-Onça, assuntou por muitos meses o seu movimento, no poço de banho, ali no rio Palma, no fundo de sua fazenda. Tomou todas as providências, apesar do homem ter a fama de corpo fechado, não quis preparar bala de ouro, não. Carregou o clavinote boca-de-sino com duas colheres de pólvora e balotes de ferro de pés-de-panela untados com veneno de cascavel, que, segundo sua crença, era bom pra matar feiticeiros curados. E numa madrugada de brisa mansa, do ano de 1831, preparou a tocaia debaixo de uma gameleira. E lá en-vém o gunga de ceroula pro seu banho costumeiro. Quando se aproximou da linha de tiro, Mão-de-Onça berrou fogo. O tirambaço esgoelou longe, na beira do rio, espantando a bicharada. O gunga caiu mole, com o rombo no peito, ciscando o chão. Mão-de-Onça, da tocaia, sorriu satisfeito e exclamou:
— Se o barreado de ferro não matar, o veneno da cascavel sepulta!...
E azeitando as canelas desapareceu na mata. O povo da vila recebeu a morte do gunga com uma alegria medonha. E até hoje não gostam de lembrar o nome do ladrão espancador!
— Eu que não vou nesse Pontal do Guará, pois a minha rota é a vila do Duro, não tenho que me preocupar com a assombração deste tinhoso das profundas.
O velho, rindo, acrescenta:
— Antão, meu filho, tenha muito cuidado! Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cacundeiros estão derramando maldade pela região. Me faça um favor: quando estiver passando por Conceição, procure Zé Mumbica e diga-lhe que esse desgraçado do Cascavel ofendeu sua sobrinha, no Cocalinho. Ele sabe onde fica. E como não deixa os seus como defunto sem choro... Vai bater aqui e fazer esses ladrões virarem cruzes de beira de estrada. Escuta o que te digo, homem! Ora se vai! Ali é cabra macho!
A noite avançava pelos chapadões e encostas da Serra Geral. Os vagalumes ziguezagueavam por entre as moitas.
Quando a estrela-d’alva descambava no firmamento, Salomão arreou a mula e fez chão. Ao romper da manhã, quando passava por uma restinga de mato, foi surpreendido por três cavaleiros, que o fecharam duma vez na estrada. Não teve dúvida; eram os bandoleiros! À esquerda ficou Urutu; à direita, Carangueijeira e na frente, Cascavel-de-Quatro-Ventas, com seu focinho-de-porco, mostrando os dentes acavalados. A sua carona de tatu arregalado bafejava a morte. E foi dizendo:
— Cabra fogoió da peste! Vai apeando e tirando os cobres do alambrado da sela, que é meu !
Carangueijeira, rosnando como onça em sobejo de carniça, reclamava:
— As botas e a roupa é do degas aqui !...
Urutu ergueu a voz grave de gralha:
— Eu me contento com a arreata e a mula!...
Uma acauã gargantou ao longe:
— Vá à cova!... Vá à cova !
O chefe-caveira dos malfeitores, rilhando os dentes de criminoso, com o garruchão nas mãos, admoestou raivoso:
— Se fizer um movimento, eu berro fogo, fogoió safado!...
Salomão, na agonia do momento, instintivamente invocou numa prece silente a ajuda das hostes celestiais. E essa súplica cresceu dentro de si , numa força gigantesca, que o levou a correr as esporas nas ilhargas da mula. O animal jogou gorgulho para trás, numa arrancada de anta na canajuba, que levou de roldão, no peito, o cavalo ruço-cardão do bandoleiro, dando tempo de ainda meter-lhe nas arcas do queixo um murraço, fazendo-o desequilibrar comgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

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O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejosgarrucha e tudo, de cangalha aberta no chão. O seribolo, provocado pela ação imprevista de Salomão, deixou os bandoleiros meio atoleimados por um instante. E o boiadeiro, desesperadamente, acochou as esporas, unindo-se à tábua do pescoço do animal , como se fosse uma só peça , num galope sacudido .
Os cascos da mulona batiam em batuques profundos, na estrada encharcada das derradeiras chuvas, jogando barro pra cima.

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O tropeiro Nortão Xangraxá, depois da travessia do rio Areia, desembocou com o lote de burros no chapadão de areia frouxa, naquela toada molenga, provocada pelo calorão. A burrada, ao ouvir o estalar seco da lonca, disparou num chouto acelerado, enfileirando-se pelo caminho, ao rangir das bruacas e surrões pejados de arroz limpo, couro, carne-seca, fumo, pena de ema, peles de caças, borracha extraída; rompiam estrada, rumando pra Barreiras; pra trás ficava o Baixão-dos-Pombos, e se aproximavam da Pedra Furada, no sopé da Serra Geral, para o pouso. Ao longe reboava o sopro de um berrante. Era a boiada de Camapu, rasgando os gerais, no rumo de Barreiras, com destino à Feira de Santana. O berrante ecoava em notas doloridas pelo verde descampado. E a boiada rolava trôpega, pisando os cascos pelo areião, naqueles fundões solitários do sertão sem fim dos gerais.
O mestre-tropeiro Xangraxá escolheu uma ponta de pedra, nas imediações da Pedra Furada, para o pouso. E determinou aos tocadores estaquearem os burros junto do pouso, em razão das onças e do perigo de ataque dos grandes morcegos vampiros do lugar. Aqueles homens rudes, traquejados no manejo da tropa, em pouco tempo, enquanto um homem ia desatando as bridas das cabresteiras, afrouxando os cambitos e jogando abaixo arrochos e ligais, faziam suas tarefas. Outros dois tocadores musculosos botavam, também abaixo, os surrões e bruacas. Logo uma fogueira foi acesa no centro do pouso, para afugentar os bichos andejos aotronco da árvore. Os biriguis xoupões não lhe davam sossego, pelos braços e rosto. As taçuíras também atacavam, entrando pela barra da calça de algodão ganga. Do seu esconderijo, quando não ouviu mais barulho dos bandoleiros, desceu pelo tronco da árvore e pelos taimbés. E foi segurando na raizama e nos cipós, até bater no fundo do grotão. Dali seguiu o filete d’água e saiu num carreiro de gado, que cortava a grota. Quando saiu em cima, andou um pouco pelo reboleiro de taboca e deu em riba da mula; puxou-a pelo cabresto até sair da canajuba e passou-lhe a perna, seguindo pelo tirão batido de casco de gado; quando chegou a uma tingueira, cortou por fora e foi sair numa várzea às margens do rio de Janeiro. Lugar bonito para refrigério de gado! E no meio avistou uma ema que briquitava com uma cascavel. Aproximou-se um pouco e ficou observando a luta. A cascavel batendo o maracá, se enrodilhava, na treita, e armava o bote. A ema gingava, no bamboleio das pernas longas e secas. Abriu as asas e vinha arrastando as pontas. A cobra jogava o bote e só pegava as pontas das penas. Do alto do pescoção fino, a ema abaixou veloz e sapecou a bicada na croa da cabeça da cascavel. A cobra se enrodilhou novamente e deu outro bote. E a ema já nervosa da brincadeira mortífera, retiniu umas três bicadas certeiras na cabeça da cobra, que se entregou à morte. E no final, emitiu um gemido profundo e devorou a maracabóia.
Salomão, sentindo a sede acochar, esporeou a mula pra beira do rio, amarrando-a num cambuí, e desceu a barranqueira, indo dar nuns lajeados de pedra. E ali de cócaras, na ponta de uma pedra chata, meteu a mão fechada em forma de concha na água do perau escuro e, quando a jogava à boca, de supetão as águas num rebojo violento se abriram; e a cabeça negra de uma sucuriú-de-cama apontou; e num bote feroz enroscou-lhe o corpo, arrastando-o pra dentro do poço. O laço da surucujuba foi atarrachando-o, num emaranhado de roscas apertadas, ficando-lhe livre o braço direito; e naquela agonia de vida ou morte, com o laço acochando cada vez mais, numa força colossal, meteu os dedos nos olhos da sucuriú, como se fossem garfos de aço, que os caroços saíram daórbita. O monstro negro, numa cutelada de dor, afrouxou o laço, e Salomão nadou rápido pra fora do rio. Subiu o barranco e, montando na mula, ganhou o cerradão. Foi margeando o rio quando, em certa altura, ouviu o cantar de carros de bois. Era a passagem. Um dos carreiros atravessou o rio, pois o vau era fundo. E assim que avistou o boiadeiro, foi dizendo:
— Parece que o amigo vem fugindo de perigo, num trote?!...
— Bota perigo nisso, amigo! Primeiro fugi dos ladroões, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas, e, ainda há pouco, da boca de uma sucuriú-de-cama, de um poção escuro desse rio.
O carreiro, voltando-se pros ajudantes, disse:
— Vocês ouviram? Os ladrões dos gerais estão no trecho. Preparem as armas, e vamos atravessar ligeiro o rio.
Salomão saltou da mula e foi ajudar os homens. O carro estava do outro lado, no alto da ribanceira. O mestre-carreiro, na sua vasta experiência, mandou o candeeiro tirar do recavém as ferramentas, machado e enchada, por medidas de segurança, se delas precisasse. Em seguida descambuiu uma junta de boi, lá da frente e a encabuiu, presa, por tirante, no argolão, para segurar o carro por trás, como se fosse freio. E gritou os bois:
— Barroso, Malhado, ôoo boi!... E lá foi de barranco abaixo. Quando chegou em baixo, quase entrando na água, parou os bois, e a carga foi atravessada na cabeça dos homens. Asssim que terminou o transporte da carga, o mestre-carreiro desatrelou os bois e os atravessou a nado. E na outra margem os encangou de novo, e amarrou as cordas na mesa do carro, e os bois o puxaram para a margem. Aí que foi dificuldade subir a ribanceira. O mestre-carreiro lá ia e lá vinha, de um lado e do outro, gritando com os bois, pois tinha que puxar macio, por igual, para que as correias não arrebentassem ou alguns canzis. Os bois, de corpo para frente, as pernas de viés, no chão, as carnes duras como pedra, iam rasgando barranco acima. E no alto, o alívio! Eram homens treinados com a árdua tarefa, apesar do cansaço e das noites indormidas, varavam sertão. Havia trecho do caminho, naquelas campinasmensas, que o mestre-carreiro, de pé, dormia sufocado pelo sono; quando despertava por algum tropicão, o carro ia rompendo sózinho. Aí saía correndo para alcançá-lo.
Salomão despediu-se do carreiro e derramou na estrada. Andou várias léguas paridas; quando entrava na mata, às margens do Ribeirão-do-Boi-Morto, um tiro espocou forte, e os anuns, as almas-de-gato saíram voando. E Salomão, do alto da mula, despencou para o chão com um buraco no peito, sangrando. Os tocaieiros saíram de trás dos pés de paus e foram apossando-se dos pertences da vítima, que ainda agoniava na ânsia da morte. Urutu foi arrancando as botas e as roupas. Cascavel-de-Quatro-Ventas afrouxou a barrigueira da sela da mula e encontrou o tufo de dinheiro no suadouro.
Nisso soaram, nas proximidades, as badaladas de chocalho de tropa. Os bandoleiros saíram correndo pelo mato. Não demorou e a tropa apontou na boca da mata. Era Nortão Xangraxá. O tocador-guia gritou:
— Patrão, tem um homem morto no caminho; deve ser do tiro que ouvimos, ainda há pouco!
Xangraxá encostou a tropa na magem do ribeirão e foi dar sepultura ao morto. Numa moita próximo do corpo, encontrou um alforje deixado cair pela fuga dos matadores. O chefe-tropeiro abriu as bolsas do alforje e encontrou vários objetos e, entre eles, uma carta. A tampa do alforje continha uma marca estranha. O tropeiro abriu a carta e, na sombra de um angico, leu a missiva:

“Salvador, 4 de abril de 1875
Prezado Coronel Macabeu
O portador desta, Salomão de Sousa, tem a missão de instalar, no Duro, uma oficina e de arrecadar dinheiro entre os operários para alforriar os escravos que forem comprando, como os operários da oficina de Vila Boa estão fazendo. Com isto, vamos limpar o país desta horrível mancha da escravidão.
Portando, contamos com seu apoio.
Saudações,
Melquisedeque”

Xangraxá, após dar sepultura ao morto, rompeu estrada. E no décimo dia chegou a Barreiras. Foi só entrar na rua principal, com a tropa, que o capitão João da Mata, do seu casarão, assim que bateu com os olhos na marca do alforje dependurado na sela do tropeiro, o abordou de imediato:
— Esse alforje é de meu irmão Salomão, que não desapartava dele, nem para dormir. Como veio parar nas suas mãos?
O tropeiro apressou-se em responder:
— Meu Capitão, esse alforje foi encontrado junto do morto, nas beiras do Ribeirão-do-Boi-Morto. Só indetifiquei o morto, foi porque encontramos uma carta no alforje, e está aqui. O coitado foi atocaiado pelos bandoleiros, Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus cupinchas. E levaram tudo, burra, dinheiro, as roupas, deixando-o nu como nasceu. E nós, por dever de cristão demos-lhe sepultura.
Após as explicações entregou ao capitão os pertences do morto. O Capitão, comovido, agradeceu. O tropeiro estalou o relho na tropa e continuou rua abaixo. O Capitão, com a triste notícia, reagiu de imediato e mandou chamar os homens de bem da terra. Em poucos minutos, quatro cidadãos de respeito estavam na sua presença, selando um pacto de vingança:
— Estamos prontos para partir, Capitão, e chorar o nosso morto. Aqueles ladrões de estrada vão receber o que pediram !...
Aos primeiros vislumbres da madrugada, os cinco cavaleiros, vestidos de bursaca negra , bem armados , com espadas reluzentes à borraina das selas e com dois cargueiros de mantimentos , ferramentas e gargalheiras, derramaram-se na estrada. No vigésimo dia de viagem encontraram na região do rio de Janeiro três homens a pé, em estado lastimável, nos molambos, meio trôpegos. Um dos homens, demonstrando uma alegria imensa, ergueu a voz:
— Foi DEUS que os mandou !... Foi DEUS!...
O Capitão, ali no meio do caminho, pediu calma aos homens, que foram repisando a tragédia.
— Fomos roubados pelo bandoleiro Cascavel-de-Quatro-Ventas e seus capangas. Nos tirou tudo, tropa e até nossas roupas . Olhe só a nossa miséria , Capitão , nos deixou na tanga, de ceroula!
O Capitão, erguendo o chapéu de couro, ansioso perguntou:
— Mas aonde estão os miseravéis ?
— Na hora em que eles estavam nos roubando, eu ouvi o porcão maior dizer: — Ande depressa, que vamos ficar atocaiados na beira do rio, aguardando o comboio de carros de bois que envém do Duro. Vamos lavar a égua, cambada!”
O Capitão, rilhando os dentes, reiterou :
— Se vocês desejar nos acompanhar, vamos recuperar sua tropa e sepultar os miseráveis !...
Os homens aplaudiram o convite e se prontificaram à caminhada. O Capitão mandou armá-los de imediato .
À boca da noite, chegaram às imediações da mata do rio. Por precaução o Capitão acampou a certa distância da passagem do vau, que era o lugar da tocaia dos bandidos. E ato contínuo determinou um dos tropeiros para espionar os movimentos dos ladrões. Dentro de pouco tempo o homem retornou e informou:
— Os cabras estão acampados à direita do vau...
A noite avançava. As rasga-mortalhas sobrevoavam o acampamento. Quando a estrela-d’ alva surgiu brilhosa no céu, os homens começaram o movimento, para a emboscada aos ladrões. Foram rastejando pelo mato; quando chegaram ao acampamento, os malfeitores dormiam a sono solto. O Capitão não pestanejou, caiu de armas em cima dos bandidos, que não tiveram tempo de reação. O dia vinha rompendo, cheio de energia na vastidão daquelas paragens. O Capitão ordenou que acorrentassem os bandidos. E as correntes com as gargalheiras foram acochadas nos tornozelos e pescoço. Os cabras fungavam ajoujados nas ferropéias. O Capitão, voltando-se para o tropeiro Zeca Bié, um pardaço de estatura meã , solicitou:
— Seu Bié, me prepare rápido três cangas de guatambu pra— Estamos chegando no vau das acácias !...
O Capitão, com os homens montados, fizeram as últimas orações ao morto e desapareceram na verdura dos chapadões dos gerais.
O canto da seriema estridulou ao longe, pras bandas da Serra Geral.

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