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Contos-->MARIA BANDINHA -- 15/05/2003 - 14:46 (Moura Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MARIA BANDINHA
A serra chiava suculenta no interior da tora de pau-brasil, naquele movimento vai-e-vem! Em baixo, encontrava-se João serrador, e no alto do estaleiro, via-se Nicodemos, que se apresentava esbaforido e bastante suado, naquele final laborioso do dia. A tarde caminhava no horizonte, projetando sombra no interior da mata que se estendia ao pé da serra do Carmo. A jaó emitia o seu piado triste, como se estivesse despedindo do dia. Nicodemos, dali onde se encontrava, espichou os olhos para o sol, que descambava na cova do céu, e ordenou para o companheiro:
— João, vamos parar! Tá na hora, homem!
Aquilo era uma notícia e tanto para o João, que se encontrava extremamente cansado, após um dia de muito trabalho, naquela posição incômoda debaixo do estaleiro. Rapidamente, deslocou-se daquela furna de cozinhar onça na loca, com o corpo todo suadoe cheio de serragem vermelha, proveniente do movimento da serra no interior da tora. Já fora de sua trincheira, espichou os braços e respirou aquele ar puro e santificado da mata. Nicodemos pulou para o chão, com o rosto espargindo alegria, pois a produção do dia fora um colosso, e daí a dois dias, estariam de volta. Por isso, era motivo de alegria, e foi dizendo para o companheiro, naquele seu jeito brincalhão e bondoso:
— João, daqui a dois dias, vou ver os meus bacuris!
— Tá bestando, homem! Por que não diz que está é com saudade da muié? E só chegar lá, vai dizendo pros meninos:
— Cadê sua mãe?... Cadê sua mãe?...
E cai na risada. Nicodemos, também rindo do companheiro, que acabava de descobrir suas verdadeiras intenções - não era para menos, trinta dias fora de casa! – replica ao companheiro:
— Tá bom, é isso mesmo. E ocê, que não tem muié, vai ficar por aí bestando pelas casas das raparigas do povoado, feito jegue abandonado na capoeira.
E emitiu uma sonora gargalhada, para acrescentar meio sério:
— Vamos parar com esta estória de muié e vamos cuidar do de-comer, o dia está acabando, e a noite vem chegando. Eu vou preparar o de-comer, e ocê vai lá do outro lado da grota, caçar aquela jaó que não pára de piar, pois amanhã não temos carne pro almoço.
— Não se preocupe, Nicodemos, vou pegar a vinte-e-oito, e vai ser aquela fartura de carne no almoço!
E lá se foi embrenhando pela mata adentro, na direção das jaós, do outro lado da grota que circundava o improvisado acampamento. Ali se instalara, na pequena clareira, aberta a machado no seio da mata que se interligava com a baixada, já fora da mata, por uma trilha de carro de bois, para o transporte da madeira serrada.
Nicodemos foi para o rancho de folha de piaçaba, arrumar as panelas para o jantar. Mas tudo estava uma bagunça, e o jeito foi dirigir-se para a grota, onde corria uma água cristalina, paralavar as vasilhas da cozinha. Ali, agachado na pedra negra de basalto, Nicodemos lavava e esfregava aquelas panelas encardidas , quando ouviu numa outra rocha, às costas, o terrível e conhecido barulho de chocalho de uma cascavel, que balançava o guizo intermitente. Calmamente, depositou a panela de ferro na rocha, reteve a respiração e não se apavorou, pois confiava em suas orações. Era, além de bom serrador, um conceituado benzedor. Quando benzia as bicheiras do gado, os bichos caíam na hora! Não fez nada, apenas granou o olhar naquele réptil luzidio, que foi tornando-se de cor violácea como se estivesse jorrando uma poderosa força. A cascavel foi serenando o guizo e desmanchando o bote. Nicodemos emitiu um som estranho e no final deu uma ordem de comando:
— Rá... rá...rá... Má... má... Vá te embora, em nome de Deus!
Após aquelas fortes palavras, a cascavel, como se estivesse obedecendo, deslizou-se por entre as rochas e desapareceu. De repente, reboou pela mata um tiro abafado, seguido de outro. Nicodemos pensou consigo:
— O João é um bom caçador!
Terminada sua tarefa, Nicodemos retornou ao rancho. A trempe de pedra-canga encontrava-se ao lado direito do rancho, e ali ele começou a catar, aqui e acolá ,os gravetos e folhas secas, e botou fogo, abanando-o com o chapéu de palha. Logo subiu um fumaceiro dos diabos, de fazer arder os olhos em copiosas lágrimas. Mas, daí a pouco, em recompensa, exalava-se pelo ar o gostoso cheiro de carne assada! João, chegando da caçada e exibindo nas mãos as jaós e as juritis, foi gritando eufórico:
— Não te disse, Nicodemos, que o almoço estava garantido?
Porém já começava escurecer, e eles desceram para a grota. Iam tomar um banho frio, naquelas águas mágicas, que revigoravam as energias do corpo. Lá no alto a lua cheia despontava.
Por conseguinte, após aquele refrescante banho que os renovou, animando-os da fadiga do dia, sentaram-se em volta da trempe de pedra-canga, à luz do fogo, e saborearam a deliciosacarne assada, regada a pimenta malagueta. A lua cheia passeava por cima da mata, clareando a clareira do rancho. E o diálogo irrompia-se animado entre os dois amigos de longa data.
— É, Nicodemos, eu estou mesmo precisando casar. Ocê vive muito bem, com a Maria, não é mesmo?
— Graças a Deus, João!
— Ocê, Nicodemos, nunca desconfiou dela, não é mesmo?
— Por quê ocê tá dizendo isto?
— Por nada, é a maneira de falar.
Aquelas palavras de João Serrador ressuscitaram antigas dúvidas em Nicodemos, que interrompeu o diálogo e foi encostar-se junto de um jatobazeiro que dava sombra durante o dia no rancho. Assim encostado, acendeu o cigarro de palha, puxou uma baforada e soprou a fumaça do palito de fósforo e permaneceu em reflexão: — “Será que a Maria não me respeita?”
Aquela dúvida o atormentava, provocando-lhe uma dor aguda no coração. Tinha consciência de que zelava da família, não lhes deixando faltar nada.
Dois dias depois, Nicodemos deixava a mata, descendo a serra e pegando o caminho de volta. Era um dia de marcha forçada, e aquele cavalo era bom de trote, vindo chegar a casa à boquinha da noite. De longe conheceu o burro preto do vaqueiro Chico Dente-de-Ouro, amarrado na cerca de entrada da casa. Achou aquilo estranho, não ouviu o barulho dos meninos. Pensou, o melhor é verificar. E desviou o itinerário, indo amarrar o animal na fonte de água que abastecia a casa, num capão de mato que a encobria. De lá veio cauteloso, pisando no chão com cuidado, e dirigiu-se a uma moita de bambu que fazia sombra na janela do casal, nos dias de sol quente. Fora plantada ali por suas mãos. E dali, encostou na janela e ouviu o ranger da cama e a voz de Maria:
— Ai, Chico... vou morrer... de prazer!...
Lá fora, Nicodemos tremeu de cima para baixo, com o que acabava de ouvir. E ficou pensando, com o coração repleto de ódio; era só entrar e sangrar os dois, ali no esponjador. Mascontrolou-se, tinha outro plano. E, em seguida, retirou-se da mesma maneira que havia chegado e foi para a fonte, de onde proviera. E, lá chegando, sentou-se em uma enorme pedra, que lhe era familiar, onde tantas vezes sua mulher lavara roupa. E ficou pensando nas palavras de seu amigo João, que gostava de repetir:
— “Mulher senvergonha é igual vaca, não tem marruco certo, qualquer um serve.”
Dali, dava para ouvir a casa, e ficou aguardando. Logo escutou as gargalhadas de sua mulher, igualzinha das quengas lá do curral-das-éguas do povoado. Era uma vagabunda, pensou consigo. De onde estava, escutou os passos do burro de Chico vaqueiro retirando-se, as batidas do casco ferrado no chão; era igual batidas de matraca em plantação de milho. Aguardou um pouco e dirigiu-se para a casa. Foi entrando, como se nada tivesse acontecido. A mulher o recebeu festiva, chamegando, simulando, e foi perguntando:
— Nicodemos, ocê não ia chegar só daqui a dez dias? O que aconteceu, homem?!
— Nada, muié. O serviço terminou antes do prazo, só isso. E acrescentou:
— Cadê os meninos?
Respondeu a mulher:
— Eles foram pra casa da comadre Joana, ontem. Que insistiu pra levar eles. E ocê sabe que não tenho medo de dormir sozinha.
E, simulando saudade, foi empurrando-o para o quarto, como das outras vezes. Nicodemos sabia que a mulher era quente, uma fogueira, incendiária. Quando viu estava deitado na cama, ainda quente, cheirando pecado. Apenas disse para Maria:
— Vou ali fora e volto já.
Ás pressas, saiu do quarto e apanhou no saco de linhagem, ainda da viagem, uma lapiana bem afiada, com que ele sempre abria as caças, e voltou ao quarto. A mulher fungava, peladinha na cama. Com um movimento rápido, Nicodemos encostou a lâmina afiada no pescoço da mulher e raivoso disse:
— Sua cadela, vai me pagar! Pensou que não ouvi sua sem-vergonhice, ainda agora!
A mulher agoniava com a faca na garganta. Nicodemos apanhou rápido uma corda de bacalhau num jirau próximo à cama, só foi estirar o braço livre. Com laçadas firmes, amarrou os braços da mulher na cabeceira da cama e as pernas, bem abertas, nos pés da cama. O sexo de Maria aflorava-se rosado e carnudo. A mulher agoniava, gemia e estrebuchava:
— Pelo amor de Deus, não me mate, Nicodemos!
E Nicodemos, como um cirurgião vingativo, removia o tumor maligno da moral. Pacientemente, foi abrindo a vulva com a mão, e pegou firme no grande lábio vaginal á direita, e passou a lâmina afiada da faca, arrancando um pedaço de carne em forma de bife, e o jogou em cima de um caco de jatobá, que se encontrava no chão, rente à parede de adobe. Como um cirurgião zeloso do ofício, foi até a cozinha, pegou um pouco de sal, misturou bem com pimenta malagueta e trouxe para o quarto. Calmamente, foi passando o sal pelo corte longitudinal, que sangrava abundantemente. A mulher estrebuchava, a cada pitada de sal. Nicodemos, no final daquela operação sinistra, que envolvia vários sentimentos, descarregou o seu ódio:
— Essa cicatriz ocê vai levar no meio das pernas pro resto da vida. É uma lembrança pra recordar da sua sem-vergonhice, e que faltou com o respeito para com um homem de verdade, que só queria a felicidade da família. E, saindo do quarto, gritou:
— Eu podia é te matar, sua cadela desgraçada! Mas a cicatriz basta... é um fardo pesado que ocê vai carregar.
Estas foram as últimas palavras de Nicodemos, que desapareceu na escuridão da noite.
Naquela região do Boqueirão Maior, Maria era conhecida como Maria do Nicodemos Serrador; passou, depois daquela tragédia, a ser conhecida como Maria Bandinha...

Texto extraído do livro VEREDÃO - CONTOS REGIONAIS,
OBRA PREMIADA PELA UBE-RJ/ 2000
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