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Artigos-->RATO MENINO -- 15/05/2021 - 00:08 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

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RATO MENINO
Jan Muá
Maio de 2021

Apareceu de repente. Vinha de algum lado. Era um adolescente de quatorze ou quinze anos e pertencia à pequena favela que se escondia no mato junto ao lago Paranoá muito perto do Espaço Norte em pequenas barracas onde os moradores vivem na mais cruel miséria que pode ter um ser humano. O adolescente era a voz viva da favela e da miséria que ali reinava. 
Eu estava conversando com o porteiro frente ao bloco onde moro. E ele  veio até mim fazendo exagerados gestos com a  mão  junto à boca para me dizer que tinha fome, queria comer. Um gesto parecido com aquele usado pelos turistas quando querem se  expressar em países onde não conhecem a língua local. Não era bem comida em gêneros o que ele queria. Pelo que pude entender, o  que ele queria era grana. Dizia que era para comprar comida para levar para a favela para a mãe cozinhar. Olhei com calma para ele e disse: - olha meu filho. Dinheiro não há aqui. Mas posso te arranjar alguma coisa para você comer ou levar para cozinhar. Quando percebeu que não ia me convencer a dar dinheiro para ele, disse que aceitava comida. 
Subi então ao meu apartamento e peguei um pacote de macarrão italiano que era o que eu tinha à mão e num saquinho coloquei dois pães, três bananas e uma maçã. Desci e entreguei. Me despedi e fui à minha vida. 
Aconteceu porém, que no meio da tarde, quando saí para fazer minha caminhada reconheci quando já estava na quadra vizinha  o mesmo jovem que havia encontrado horas antes no meu bloco. Estava remexendo o lixo nos contêineres da quadra. Passei a observá-lo. E vi que cem metros mais adiante ele passou a remexer  outros contêineres em outro bloco. O fato produziu em mim intensa reflexão. Disfarcei um pouco minha curiosidade e passei pertinho dele quando estava entretido remexendo o contêiner. Observei que nessa altura uma senhora do povo que prestava serviços domésticos no bloco foi timidamente abordada por ele  para lhe pedir uma ajuda. Me comoveu ver essa senhora puxar da carteira e repartir  generosamente com ele uma nota de dois reais. Continuei minha caminhada mas observando de longe os movimentos do adolescente. Nessa altura me aproximei. A primeira reação dele foi pedir-me dinheiro para comprar uma garrafa de coca-cola. Me disse que já tinha dois reais. E que faltavam oito reais. Fiel ao meu princípio geral de não dar dinheiro na rua e sim  tentar ajudar, me dispus a lhe oferecer a desejada garrafa de coca de dois litros. Disse a ele para ir até ao supermercado próximo da quadra e nos encontraríamos lá para comprar a garrafa de coca. No caminho eu pensei muito na verdade real das carências deste povo da favela. A imagem do adolescente catando restos nos contêineres do lixo como se fosse um rato me tocou. Pior que um rato. Porque o rato pela sua instintiva natureza, busca de noite a despensa ou os esconderijos de uma casa, e vai direto ao encontro de um pedaço de bom queijo ou de outra mercadoria de seu gosto e come. Aqui, o adolescente, apesar de ser por natureza um ser humano não tinha nem a condição de um rato normal. Ele mendigava restos higienicamente condenados e perigosos rejeitados em contêineres de lixo. Não era uma novidade para mim. Mas era uma lição enorme sobre desigualdade social e direitos humanos.  Um alerta para os surdos governos federal, estadual e municipal. Esperei o adolescente no supermercado. Entramos e ele ficou louco, cheio de desejos. Andou por lá procurando coisas, na esperança de que tinha encontrado um protetor. Meu compromisso era a coca. Mas estava disposto a comprar-lhe comida para levar para sua mãe e seus  três irmãozinhos, que tinha, segundo sua narrativa. Vi que ele estava excitado. Eu tinha arrumado uma cestinha para colocarmos as mercadorias. Como ele andou por ali zanzando, verifiquei que ele já tinha duas mercadorias selecionadas na cestinha. Olhei. Uma, era a garrafa de coca que motivara minha ida ao supermercado. A outra, que muito me surpreendeu e ao mesmo tempo me alertou, era uma faca grande de cozinha com uma ponta bem aguda. Ao descobrir a faca dentro da cestinha, perguntei: o que é isto, menino¿. - É para levar para minha mãe para cortar a carne, respondeu ele. Ela está precisando. No momento, olhei para ele seriamente  e disse: - Menino,  nós viemos buscar a coca cola, certo¿. Essa faca não é do trato. Portanto você vai colocar a faca lá no lugar de onde a tirou porque eu não vou pagar essa faca. Entendido¿ Ele tirou a faca da cestinha e aceitou minhas condições. Para compor, eu fui buscar uma bandejinha de bifes de contrafilé e disse: tem aqui carne já cortada: leve para sua mãe e seus irmãos. O que me veio à cabeça foi que aquela faca tinha destino certo na imaginação ou nos planos do adolescente. Rixas e contendas sobre diferenças e  namoradas dão-se em qualquer ambiente e mais ainda em favelas onde a crônica urbana conta  e relata vítimas certas. De minha parte, eu nunca misturaria minha boa vontade de ajudar uma pessoa carente, que era inteiramente desconhecida para mim,  cometendo o equívoco de municiar essa pessoa com instrumentos que poderiam servir tanto para possíveis vinganças pessoais como também para armá-lo para possível defesa no ambiente em que vive. 
Obediente ao propósito que nos levou ao supermercado, disse que ele poderia escolher algumas coisas de alimentação para levar para a barraca onde disse que vive com sua mãe. Na concessão desta liberdade, veio à tona qual é na verdade a mentalidade de um adolescente carente que não tem acesso a escolhas no que se refere a bens de mercado. Apenas guloseimas. Nada de básico para alimentação. Pediu-me se podia dia levar um pote de sorvete de marca. -Pode, respondi.  Mais adiante me pediu se podia pegar  também uma embalagem de pequenas caixinhas de chocolate para seus irmãozinhos.
-Ok.Pode.  Ofereci pães, ofereci fatiados de queijo e presunto. Mas ele não quis. 
Fomos para o caixa. Paguei. E  o adolescente pegou a mercadoria e lá foi à sua vida. Vida inferior. Vida de menino-rato que procura restos nos contêineres de lixo. Situação deprimente. Na perseguição de um destino incerto. O que pergunto é: o que será este adolescente nos anos sucessivos de sua vida¿ 
Quantos meninos-ratos temos no Brasil atual, inteiramente entregues à sorte, sem qualquer preocupação da autoridade pública a quem compete dar um estatuto de cidadania a cada cidadão, segundo o artigo primeiro da Constituição de 1988¿ E a quem compete erradicar a pobreza, tal como diz o artigo terceiro da mesma Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I -Construir uma sociedade livre, justa e solidária. II – Garantir o desenvolvimento nacional. III- Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. IV -Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Jan Muá

Maio de 2021

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