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Contos-->O dia ainda tem vinte e quatro horas? -- 07/09/2000 - 19:32 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Daí que hoje levantei cedo e não tomei café da manhã, ainda pesada das pizzas de ontem à noite. Meu corpo arde e está inchado. Pareço o pão descansando e fermentando na forma à espera do forno. Forno! Cadê o bolo? Bolo? Respondo tudo com senhas instantâneas. Ir ao mercado 24 horas comprar empadas para o menino levar para a festa do colégio: o que é entrar num mercado que não fecha as portas nunca? Hoje em dia não se dorme então não? Ser coruja o tempo todo – branca, dia; negra, noite. Os olhos vermelhos crispados ao sol do contra. Comer, mastigar dá vergonha, quando ontem me empanturrei de pizza, para desafiar. Agora estou aqui, e estaria de qualquer jeito, porque agora estou aqui, então é isso mesmo.
No mercado 24 horas, a moça da portaria entrega o tíquete de entrada: “Bem-vindo!’” – e bate a vontade de atirar-lhe um movimento brusco, algo que retumbe. Mas dá mais jogo deixar passar a ofensa e aceitar, indiferente e simples, o panfleto de promoções. Apreciar os riscos amarelos sinalizando o estacionar sem olhar para trás. Sem olhar para trás: e coragem, que você consegue, e vá, sempre em frente, que o passado já era, morreu não faz dois segundos. O futuro é um paquiderme de portas arreganhadas e sem fila, prático e cômodo. Não se vire para ver a caveira da moça do portaria. Ela já era, virou máquina e, pobrezinha, já não sabe que sorrir vem fácil, sem precisar perfeição nenhuma de ficar rindo o tempo todo. Era uma vez um guardinha de shopping que se transformou numa máquina de dizer mensagens e entregar tíquetes – levanta o mastro, passa o carro, vivifica a voz sepultada: “Seja bem-vindo!”. A humanidade calcinada cabe numa caixinha de biscoitos. E não se vire para olhar a moça ainda sorrindo, agressiva e assassina – suicidada.
O carro vai entrando no pátio. Está na hora do banho de sol, mas lá dentro do hipermercado desponta um sol fluorescente, todo o mundo é verde e doente, porque é assim que as pessoas se vestem: hospitalares. Umas geringonças humanas condenadas ao ferro-velho, porque já não prestam para nada. E que nesse zoológico anônimo caminham com força entre seções de tudo o que o homem precisa para viver, esse homem que, morto, cabe numa caixinha de blush. Ou, tanto faz, de biscoitos. Ninguém passa sem torcer a cabeça. Tanta coisa, e nunca que iremos nos acostumar com novidades que arrebentam bolha aqui e acolá, tentando facilitar a vida. Mas não quero, meu Deus, não quero facilidade. Rasgo tudo e queimo. Me deixe só, com minha malinha de viagem e mais nada! Quero é meu corpo nu passeando entre as prateleiras vazias, num supermercado deste tamanho, que nos esfaqueia com seus preços na lua. Uma tela invisível de raios X nos vigia, e é diante dela que passamos, desprevenidos. O Doutor X de nossa juventude nos observa e se delicia: este tem platina nas juntas; aquele lá tem osteoporose. E não adivinhamos, nem nunca supomos o que há por trás desse nosso passeio. Se um dia descobrirmos, então indagaremos: quem pagou para nos expormos assim desse jeito?
Há uma moça no caixa da lanchonete de última hora, dentro do supermercado 24 horas, e agora o que parece é existir um boteco dentro de tanta modernidade: “Quantas empadas quer?” “Todas”. E diante de seu olhar, sou obrigada a acrescentar: “É que hoje é dia de festa na escola de meu filho”. “Ah, bem. Assim, é possível. Mas, Juca, embrulha para ela, naquela embalagem de isopor descartável”. “Não, odeio descartáveis. Não sou de desperdícios”. “Não tem importância. Se é assim, depois você pode usar o isopor como vasilha para comida de cachorro”. “Bem”. E coça-me a língua para responder algo mais, mas a moça não vale nenhuma contenda, vendedora de salgados que é e que faz questão de ser.
Do jeito que entrei, saio. De volta ao cemitério de carros estacionados, a única diferença é que agora não tenho rodas. Entrei de táxi e saio a pé, por isso não escuto a moça da portaria, que diz qualquer coisa do tipo: “Esperamos tê-lo atendido bem. Volte sempre”. Caminhando com minhas próprias pernas, agora enxergo a velha sandália que está descolando do lado. E esqueci a cola. Mas estou com as empadas, e para que mais? Já nem vejo a sandália. Agora tenho outros afazeres: pegar minha filha na escola de inglês e não pensar no resto da lista de tarefas que ainda tenho que cumprir ao longo do dia. Por enquanto é tudo o que posso ser: uma mãe com um saco de empadas nas mãos, caminhando até a escola de inglês onde a filha estuda e de onde sairão as duas para casa daqui a pouco. Eu e meu pacote, uma criatura quente e volumosa embalada no colo, lá vou eu, atravessando feia e esquelética, amarela e torta, a passarela fincada entre as duas pistas perigosas e zoeirentas do Pistão Sul. Fico corajosa aqui em cima da concretagem, com os carros lá embaixo, zunindo. São muitas vidas em pressa, enquanto nos bastidores existe uma campanha de Paz no Trânsito à espreita e muitos rosários sobrando para pendurar nos pára-brisas. É o vento seco assobiando o invisível, o que vem, o que passa, o que freia. Pneus. A choperia noturna, dormindo. Porque é cedo. E choperia, até que enfim, eis uma coisa que não funciona 24 horas. Esta, pelo menos, dorme e se recompõe. Graças a Deus, ainda há noite e ainda há dia, para podermos ter tempo de ser humanos. Desço outra da passarela e ainda vejo gente caminhando com o sol nas costas, braços marchando no ritmo das pernas. Reconheço nos transeuntes um agasalho que agorinha mesmo estava em promoção no mercado gigante. Mas não viro as costas para subir novamente nenhuma passarela e visitar novamente o hipermercado de placas metálicas e cor de gelo. Não se visita nada nesta vida mais de uma vez, senão já não é visita. Desgrudo-me desse visgo e deixo a moça passar, ela embrulhadinha e morna no agasalho saído do monte, eu de vestido farfalhante de quem perdeu boa liquidação. Nem por isso morro. Já estou chegando. Agora faltam quinze minutos para o fim da aula. Depois, é pegar minha filha e chegar em casa a tempo de tanta coisa. Vinte e quatro horas é muito tempo. Amanhã eu não sei se tanto.




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