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cronicas-->Isso é escravidão -- 27/07/2000 - 01:50 (felipe lenhart) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma espécie de rede de pescador açoriano, daquelas trançadas, envolvendo pedras e pedregulhos, é lançada ao mar: um marujo velho, desdentado, piolhento, fedido e enjoado é quem joga o tal embrulho por um dos peitorais do convés, e do tal embrulho estende-se uma forte corda, daquelas dos arpões de caçar baleias, amarrando vidas humanas, uma a uma, em longa fila: os negros, homens e mulheres, arrancados da África e dos seus lares, trocados por alguns rifles e muitos barris de rum com os nativos traidores - dominados pela cobiça do homem-branco -, são puxados pela força da gravidade, pelas pedras e pedregulhos, entre gritos de pavor e pedidos de misericórdia, e, assim, morrem afogadas metade das mercadorias dos senhores feudais do Novo Mundo, enquanto percorrem o caminho que Colombo fez num dia de vento brando e sol escaldante. Assim é feita a limpeza da Nau negreira nos tempos modernos.
Mas isto é raro de acontecer: somente quando um chato navio da Marinha inglesa ou norte-americana se aproxima, aí sim é feito a limpeza, pois o tráfico de escravos e os navios negreiros são proibidos nos mares do norte, aí fodeu: tem que riscar dos documentos de carga o nome, ou o número, dos negros que foram lançados à alto mar, e tem que calar a boca dos outros negros, e tem que limpar o sangue do convés imundo, e tem que prender todos nos calabouços do navio, e tem que esconder as armas e chicotes e espadas, e tem que conversar e atender bem os marinheiros que vem fazer a vistoria, e isso dá um trabalho danado pra tripulação. Mas é raríssimo de acontecer: um imprevisto, uma bobagem.
Quando tudo corre normalmente, a mercadoria fica meses à fio sem ver a luz do sol: deitados uns, sentados outros, mas todos acorrentados pelas mãos e pés e cabeças, e nus, e defecando, e urinando, e gemendo, gritando, cantado ladainhas, evocando deuses e antepassados, batendo uns nos outros quando chega a refeição diária: dois ou três marujos (velhos, desdentados, piolhentos, fedidos e enjoados) passam no meio do corredor de corpos negros, esbugalhados, enquanto mãos em formato de concha imploram para serem sorteadas: dependendo do bom humor dos algozes, fulano come, sicrano também, beltrano não: quem parece doente não ganha comida. Comida: uma gororoba de arroz grudado, que mais parece merda, e que, nos exércitos, os soldados grudam no teto do refeitório em sinal de protesto.
E novas vidas, vidas humanas, vêm à luz na escuridão do imenso porão: as mulheres, sempre chorando e esperneando, têm seus filhos ali, no meio dos ratos e doenças, intempéries mil, e quando os negros são chicoteados e surrados no convés, todos tem de olhar e respeitar o chicoteador: quando ninguém percebe, uma mãe, libertada das correntes dos pés, das mãos e do pescoço para dar de mamar ao filho, senta-se no peitoral do convés e vupt, vai ao encontro dos deuses e ancestrais que não vieram lhe salvar do inferno das trevas. Assim, mãe e filho vivem juntas e morrem juntas, nas profundas funduras do Atlàntico.
Depois de quase nove meses de um cotidiano rico destes tipos de cenas, a mercadoria chega ao seu destino, seu futuro: descem do navio, são lavados por mão brancas, arrastados e chicoteados por mãos brancas, xingados e desrespeitados por mãos brancas, e são vendidos para mãos brancas. Trabalham e morrem pela produção de açucar e pela vida boa das mãos brancas.
E a Nau, agora carregada com barris de rum e alguns rifles velhos, parte na direção do Oriente, rumo às índias Ocidentais. Assim engatinha o capitalismo, o chamado "pré-capitalismo", rumo à glória eterna.

Felipe Lenhart
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