DA MEMÓRIA E DA ACTUALIDADE
Sem a cidade não seria o que é e por sua vez o contrário também é verdade factual: um sem o outro não seriam o que são e deles, "Portus" e "Calle", Portugal não teria sido o que é ao cabo de 892 anos.
Há sensivelmente 60 anos, na margem esquerda do Douro e imediatamente a montante da ponte Dona Maria, existiam praias ribeirinhas, como era o caso do "Aurélio" e do "Borras".
Na margem direita, sobre e em redor de algumas enormes pedras, existia também a denominada e célebre "Praia dos Tesos", onde a garotada menos favorecida pelos trocados dos pais tomava banho clandestino.
Centenas de miúdos que não tinham dinheiro para alugar a travessia, calções e toalhete, divertiam-se em "pelote". Exímios nadadores e mergulhadores aquela saudável juventude empreendia ali empolgantes disputas.
Por volta dos meus onze anos, após saltos gradualmente mais e mais alto, deparou-se-me a emocionante, a perigosa e grande aventura: o salto de vinte metros, pela maré cheia, do tabuleiro inferior da ponte Dom Luís.
O Berto, o Barito e o Amílcar já o tinham feito por diversas vezes. Eram os campeões eleitos da maltinha fixe que frequentava o Douro. "Torre, cuidado, senão entrares bem podes partir o pescoço". O aviso caía e metia mesmo medo.
Nas primeiras tentativas os miúdos lançavam-se por forma a caírem de pé e assim conseguiam a pouco e pouco a experiência da queda para depois alcançarem o mergulho.
O Barito era um super em primor de mergulho. Lançava-se para cima, todo esticado e de braços abertos na horizontal, em esplêndido voo de anjo e entrava na água como uma flecha em rigorosa linha vertical.
E o meu dia chegou. Era Verão e estava calor de rachar, mas eu tremia como se fosse em Janeiro, de medo, claro, tomado de estranha palpitação pelo corpo todo, pleno de hesitação, de dúvida e de paralisante receio.
Vá... Vá... Lancei-me, um, dois, três, quatro, cinco e seis segundos, zás, o impacto, a espuma, o atrito em compressão, e desci, desci seis ou sete metros para o fundo do rio.
Demorei uma eternidade a esbracejar até à tona e respirei enfim. Fantástico, sensacional, emocionante. "Vou já para a margem para dar mais um, e outro, e ainda outro...". Que gozo, que esplendor, que indizível emoção!
Nos dias seguintes, nos Verões seguintes, voei, voei, voei, enrolei, enrolei uma, duas, trêse quatro vezes... "Torre, tenta o quintuplo". Tentar, tentei, mas nunca consegui. Ninguém conseguia. Quem tentasse ficava com o corpo todo a arder. Ninguém lograva o quintuplo com entrada correcta na água.
Ontem, aos 64 anos no pino, tive ensejo de experimentar de novo a sensação. "Vais matar-te, Torre...", alertou-me o Zé Augusto.
Lancei-me naturalmente, sóbrio, descontraído, com o Toninho total a pairar dentro de mim. Voei três vezes sucessivas. A margem esquerda estava cheia de mirones. "Ai... O velho... Salta e nada bem, o gajo...". Palavra que senti a vaidade inchar no peito, todo puxado para a frente como um pavão.
No segundo salto, em triplo, a entrada não foi nada boa. Os calções saíram-me até à ponta dos pés. Por isso tentei o terceiro. Maravilha, espectacular, sensacional, apre... Estou bem... Muito bem mesmo!
Sabe... António Maia?!... Você sabe que devo a saúde que tenho ao Douro e à praia de Mindelo. Mindelo?!... Que inesquecíveis tempos. Eu, o Toninho da Micas, o filho do Camilo, os estudantes daquela era. Aprendemos a ir a Guilhado com os Larús, com o doutor Amadeu, com o Sampaio.
Ena, que bom, que arrepio solene, no meio do mar, balançando nas ondas, mirando a profundidade trinta e quarenta metros abaixo. Milhares de banhos e mergulhos até a pele ganhar a casta misturada do sol e da água do mar...
Que belo a doer mansinho consoante o tempo me põe a distância nos olhos. Até parece mentira...
Um abraço e até sábado. Vou aí jogar uma suecada entre um saboroso copito e badalar sobre a vida um pouco.
Oh ponte do meu regresso
Mãe de ferro da saudade
Onde hoje passeio um verso
No arco da liberdade
Oh ponte da minha idade
E derradeira passagem
Para o céu da eternidade
Lá longe... Na outra margem!
Torre da Guia