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cronicas-->Mútua Mente -- 11/01/2003 - 11:08 (Sandra Regina da Silva Porto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Numa casa tem sempre uma pessoa que é responsável por limpar o lixo que as outras pessoas acumulam. Minha mãe era esta pessoa. Ela não podia descansar enquanto a casa não estivesse em ordem, limpa e cheirando a jasmim. Ela fazia isto como um ritual, todos os dias.

Todos os dias, como numa jornada santa, minha mãe organizava metodicamente os espaços e os tempos de sua lida, afim de que pudesse, ao anoitecer, saber que havia conseguido, mais uma vez, dar às contas de seu rosário metafórico o sentido desta tão particular e peculiar penitência.

Muitas vezes eu olhava para isto como alguma coisa irracional, cultural, antropológica, patológica. Outras vezes eu olhava com os olhos sem visão que aprendi a ter através de todas as teorias que aprendi para não ver. Quase sempre eu olhava para isto como uma justificativa para a minha mente articulada na questão da dualidade e, ao fim de uma racionalização sistematizada e legitimada por todos os enredos do conhecimento, dizia silenciosa e pesarosamente: Nossa!

Eu poderia chamar a isto de alienação, de poder mal direcionado, de submissão. Eu poderia chamar aos atos de minha mãe do que eu bem entendesse, que todo e qualquer nome nunca poderia dar conta daquilo que realmente, para minha mãe, significava o ato de limpar o lixo.

Olho retrospectivamente para minha ela limpando o lixo da casa e vejo que o fazia, talvez sem saber. Ela organizava o mundo de fora, na mútua ação de organizar o mundo que existia dentro dela. Minha mãe limpava o lixo de fora, porque ela sabia que tinha que dar conta do lixo acumulado em toda a sua vida.

Minha mãe limpava o lixo de todas as pessoas. Talvez acreditasse que assim pudesse dormir tranquila, porque a sua obrigação havia sido cumprida. Talvez ela achasse que isto fosse a sua obrigação.

Minha mãe queria dormir tranquila. Muitas vezes ela conseguia. Quando isto acontecia, ela cantava e dançava num contentamento semelhante aos dos loucos ou dos místicos em êxtases solitários. Ela limpava o lixo ouvindo o rádio, todos os dias.

Mas tinha vezes que ela ligava o rádio e ouvia mais lixo: todas as desgraças do mundo. E aí eu sabia que aquele seria um dia difícil. E que no outro, ela teria que fazer uma faxina rigorosa, tirando o lixo das paredes, dos vidros e dos espelhos e que, ao final do dia, tudo teria que estar refletindo uma imagem perfeitamente transparente e asséptica. Nestas vezes eu via que minha mãe não havia conseguido lidar direito com o lixo.Mas o que eu nunca consegui ver até hoje, era a coragem e a determinação que ela tinha para enfrentar os seus fantasmas rotos e empoeirados.

Minha mãe tinha aquela disposição dos ingênuos, dos sonhadores, dos poetas e das crianças, para acreditar que seus simples e repetidos atos fariam com que a realidade - muitas vezes bizarra a ponto de fazerem nossos olhos arderem de indignação - se transformaria em imagens tão extraordinariamente belas e claras como as telas dos impressionistas.

Minha mãe nunca quis que alguém fizesse estas coisas por ela. E quando alguém a ajudava, dizia que não estava bem feito. Geralmente esta atitude fazia brotar no coração do co-autor da obra, um sentimento de frustração e de incompetência. O que eu não podia compreender é que, nos estranhos caminhos da mítica pessoal, só havia lugar para um único e especial autor.

Hoje, eu que estou sendo iniciada na maravilhosa possibilidade de poder ver com os olhos fechados consigo, com um cuidado tão grande quanto ao de um arqueólogo que têm nas mãos uma peça rara, reconhecer e decifrar as pistas de um enigma que minha mãe tão assustadoramente deixava visíveis.




Hoje eu, pescando as minhas lembranças e refazendo uma parte do texto de minha vida, vejo que minha mãe arrancava o joio para colher o trigo de seu campo arado por mãos estrangeiras, numa messiànica trajetória em busca de si mesma e tornando-se o sal da terra.

Quando minha mãe começou a ficar velha e a perder a visão, ela precisou que alguém limpasse a casa para ela.

Depois de muito pouco tempo ela desistiu, e morreu.








Niterói, 07/04/02



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