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Contos-->NAS ASAS DE ICARO -- 29/05/2003 - 13:13 (Maria Dalva Junqueira Guimarães) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
tricotando causos
Às vezes brinco com a palavra, porque ela é a minha máscara.
Sempre nesse às vezes há, atrás da máscara, a palavra
com que brinco (...)

CLARICE LISPECTOR



ERA JUNHO... No junho, as amendoeiras punham por toda parte uma nota viva e sorridente. As praganas – barbas das espigas – aloiravam; as cigarras zumbiam; as águas corriam docemente nos arroios e dos verdes maci-ços de folhas leves e ondulantes. Emoldurados no céu, espreitavam a primavera curiosos, milhares de olhos miúdos e vermelhos, os pardais.
Havia nas ruas de então sons e folguedos na praça, nos parques de diversão e nos salões dos clubes que freqüentavam, fortuitos encontros de na-morados...
Era uma alegria e uma felicidade contagiantes que encharcavam o coração e as idéias, simultaneamente.
Emiliana sempre viveu no mundo da fantasia. Nas pupilas pequenas, luas e estrelas piscando. Nas dobras dos muros, o fenômeno da multiplicação — trepadeiras se alastrando, caramanchões enfeitados de musgos, cobertos de lodo e que muito a encantavam.
Era o começo de uma estrada que conduzia a muitas histórias de amor e exortavam à inquisição daquelas vidas ainda infantis.
o0o
Quando menina houve uma época de muita solidão e de muita peleja para a sua família. Viviam num vale esquecido, lá pelos rincões de uma pequena cidade do interior das gerais.
Era a filha mais velha do casal, seo Nicolau e dona Querubina. Ha-via também Sabrina e Taoana. E os quatro garotos Nícolas, Gabriel, Eduardo e Thiago.
A casa, na encosta do morro, era pequena. Dois quartos. Sala de jan-tar. Sala de visitas, cozinha e despensa. No quintal, até bem grandinho pelo ta-manho da casa, havia um pomar, uma casinha de guardar lenha e uma casinha para as galinhas, semelhante a uma cabaninha. Havia o chiqueiro e a casa do monjolo, seu refúgio predileto.
A janela de seu quarto se abria para um verde cheiroso. Seu mundo de criança era praticamente vivido ali, abanando arroz na peneira de taboca e que era socado no pilão do monjolo, durante a noite. Não tinha varanda, nem ti-nha alpendre. E como ela gostava de varanda e de alpendre!
o0o
Vivia sonhando com um reloginho prateado que vira numa vitrine de uma loja da cidade, na véspera do Natal, quando ainda só tinha cinco anos. E também sonhava com um anelzinho de pedra vermelha. Sonhava com uma casa bem grande, com um quarto para cada uma delas. Detestava ter de dividir sua intimidade com as irmãs, sempre tão bisbilhoteiras, abrindo suas gavetas, lendo seu diário cifrado, com os códigos da linguagem dos efes que usava. Cada letra seguida de efes. Ficavam lindas aquelas páginas cobertas de hieróglifos. E, mais do que lindas, inexpugnáveis para assegurar o sigilo.
Mas a Sabrina sempre dava um jeito de traduzir seus significados. Transgredindo a ética, vinha e desvendava suas confidências mais secretas, tra-tassem elas de paixões celestiais ou de rasteiros ódios.
Não precisava medir emoções, e elas escorriam pelas páginas com genuína intensidade. Apesar daquele alfabeto particular, a irmã e até a mãe, vo-razes caçadoras de segredos, violavam sua intimidade. E não seria de estranhar que, a uma discussão qualquer, elas, a mãe e a irmã, apresentassem novas e po-derosas armas para uma briga ferrenha. E ela confessava: a vontade era de bater a cabeça contra a parede do quarto. Mas, na prática, queimou o diário, jurando jamais escrever outro. Um juramento que durava até a próxima necessidade de confidência.
Era aí que a mocinha odiava a irmã e até a própria mãe. O efeito era devastador. A mãe não entendia que ela só a odiava em certas circunstâncias e que, no geral, a amava mais do que a qualquer outra pessoa. Mesmo aquele namorado cujo amor platônico avassalava sua alma de menina-mulher. Em rela-ção ao pai, quase todo o tempo o adorava, com ou sem careca.
o0o
Pena que senso de humor e adolescência sejam incompatíveis. A criança daquele tempo, principalmente a menina da roça, acreditava em cego-nhas e Papai Noel.
O Natal ia chegar. Já estava com nove anos, passando da hora de es-tudar. Teve de ir pra cidade, morar na casa da avó Severiana e sua tia Giovana, a irmã caçula de sua mãe, uma moça que estava sempre zangada com crianças. Tão diferente da outra tia, Felícia, irmã de seu pai, que era um amor de criatura. Adorava gente pequena. E nunca criticava nem brigava com os sobrinhos.
Como eu ia dizendo, o Natal ia chegar, e sua tia maldosa disse para a garota que no Natal o Papai Noel vinha à noite, descia pelo telhado e deixava presente para as crianças que colocassem seu sapato na beira da cama.
Muito roceira e muito ingênua, acreditou. Foi dormir cedo e deixou os dois sapatos lá, para o amigo das crianças colocar o presente. Queria era uma bola, porque era meio atleta. Durante o recreio, na escola, brincava daqueles brinquedos de correr, pegar a bola no ar e defendê-la dos contra-ataques dos ad-versários. Mas podia ser qualquer brinquedo que ficaria feliz.
E qual não foi a sua surpresa quando acordou. Os sapatos estavam vazios... Nada de nada tinha ficado lá. Foi correndo, chorosa, reclamar que o Papai Noel não havia deixado nada nos seus chinelos...
Foi aí que a tal tia foi logo dizendo que ele certamente não encon-trara o endereço. Ou que poderia ter esquecido o número da casa, e justificando que o Papai Noel só trazia presentes para as crianças obedientes ou sei lá que desculpa.
Essa foi uma grande decepção na sua vida de menina. Sentia-se a-bandonada. Mal-amada pelo Papai Noel.
o0o
Os caminhos que tantas vezes percorreu eram trilhas que se afunda-ram nas encostas das montanhas, rotas batidas e desconhecidas. As folhas, os arbustos, os fiapos de nuvens prendiam seu olhar que se movia a esmo, procu-rando mitos, perfazendo ritos na trilha do tempo. O fazer e o desfazer de Pené-pole, a ânsia de Afrodite. Ulisses e Helena.
O duelo corporal e verbal dos corpos sensuais deixam ecos que o vento semeia, fantasmas e fantasminhas, duendes, fadas, bruxas, tudo criação fantasmagórica: brinquedo lúdico que a levava a outras paragens no tempo.
Soltava o pensamento. Percorria lugares longínquos — passado e-nevoando o seu presente, ameaçando seu futuro.
o0o
Não era heroína. Era mulher cotidiana que para chegar à sua essên-cia escolheu um estilo de vida sadomasoquista de ser: a megera, a bela adorme-cida, a fera! Personagens esparsas flutuando nas páginas de histórias mal vivi-das.
A Madame Bovary de sempre. Percorreu vários cenários.
o0o
Sua avó sempre dizia:
— Essa garota é mesmo uma menina irrequieta, andarilha. Vive no mundo da lua e gosta de ouvir o desfolhar lento dos livros. Vive lendo...
Seu roteiro de viagem era diferente. Não conseguia prender-se à ta-refa de Penépole; à de Ulisses, sim, viajar e contar histórias, vividas e fictícias. O fazer e desfazer de Penélope, a ânsia de Afrodite. Ulisses e Helena. Histórias cotidianas, o avesso das lutas diárias.
Eram tantas as máscaras e vestes que trocá-las já era um hábito inconsci-ente. E, enquanto esperava pelo novo desenlace, cavalgava pelas pradarias, sal-tava rios, atravessava arco-íris até a imagem sonhada delinear-se ao longe.
o0o
Um dia, num tempo não tão distante, decidiu publicar seu primeiro livro – já na terceira adolescência, livre dos códigos – teve de considerar muitas coisas, sendo, uma delas, que nome literário adotaria. Isso, que para a maioria das pes-soas não constitui nenhuma dificuldade, era para ela um dilema: sendo filha de agricultores, precisava se precaver das críticas que na certa viriam. Acabou por adotar o pseudônimo de Valesca.
o0o
Chegou o dia do lançamento do livro e... Essa foi sua primeira ati-vidade como escritora, e estava nervosíssima. Como era um livro de poesia, pensou em declamar alguns poemas para o seu seleto público. Uns poucos ami-gos e parentes. Preparou sua fala. Decorou. Esqueceu...
No final daquela noite de autógrafos, estava estressada. Porém, feliz. A força das palavras a atraía. Elas eram as metáforas de sua vida.
o0o
Transformou-se em princesa Aracne em seu incessante labor de bordar e tecer, à espera do príncipe que não vinha, mas, afinal, o encanto permanecia à espera da meia-noite...
Nesse labor incessante de Aracne-Aranha, o relógio quebrado e a che-gada do príncipe que nunca vinha.
No entanto, o encanto permanecia com a espera.

Construiu sua casa como a da aranha
e, como guarda, fez sua choupana.
Rico, ele se deita pela última vez;
quando abrir os olhos, nada encontrará.
(JÓ 27 18-19)
Mas a habitação da aranha
é a mais frágil das habitações.
(Corão 29-40)
Semelhante fragilidade evoca uma realidade de aparências fictícias e efêmeras. A aranha torna-se, nesse enfoque, uma artífice de teias de ilusões.
o0o
Era outra vez junho, as searas aloiravam já e, nas cerejeiras, polpu-das, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarlate, ocul-tavam a dança frenética de suas angústias...
O céu resolveu recostar os ouvidos nas janelas e ouvir os segredos das personagens que encenava: tecelãs, pastoras, princesas afloram de seus lábios e cabelos.... Despia-as. E era ali que fadas e dragões se debatiam, e em seus cor-pos a fantasia da carne delirava.
Devagar apanhava coisas, pedaços de acontecimentos, fragmentos de histórias e, em vão, tentava construir cenários inexistentes. O clima feliz se vo-latizava aqui, ali. O sapatinho de cristal não era o número que ela calçava.
Enfim, algumas cores e ironias dão vida às tragédias cotidianas.
o0o
Era começo de inverno. Seu pai sempre tinha planos.
Enquanto engraxava sonhos, escovava planos.
Fascinado com a idéia de conhecer mundo, resolveu migrar para o sul, deixara os velhos vizinhos das gerais. Antigos amigos. Noutro dia....
Assim, embalados em sonhos, partiram.
Lembrava-se bem – era domingo...
Deixaram para trás a longa trilha no paralelo de ferro das rodas; ro-lava um carro encosta abaixo, ao passo vagaroso da parelha de bois, o eixo la-muriando à distância, do outro lado da baixada. As colinas empinavam tetas a-dolescentes para os novos moradores.
O vaqueano aguçou o ouvido empoleirado no moirão da cancela. Enquanto proseava, punha carga no carretão. Dona Querubina vinha adiante, to-da sestrosa, empurrando a filharada para frente, com um lenço atado à cabeça, as pontas reviradas para trás, e os chinelos de marroquim. O fazendeiro tirou as cangalhas que colocara para ler as placas na estrada, puxou uma última fumaça à ponta sarrosa do cigarro, fez um gesto vago:
–– Chegamos! Obrigado, meus Deus!
— Que luar lindo! Nunca vi outro igual!
A fazenda, formada de pouco tempo, ia então no devagar. Alguns cana-viais, gado e café em início. A Granja São Bartolomeu...
Não importava muito. Viviam contentes.
A mãe mourejava o dia inteiro nos trabalhos da casa: cose, arruma, re-menda, varre. A vidinha entre eles, orquídeas que floriam em tronco rude, brin-ca e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que desciam ao ter-reiro. Em noites escuras vinham visitá-los, cirandando em torno da casa, seus amiguinhos luminosos – os vaga-lumes.
O pai vivia a luta silenciosa contra a aridez do solo, lutando contra as for-migas, as geadas, a esterilidade da terra, umas colheitinhas curtas aqui e ali.
o0o
Os anos foram passando. Os botões se fizeram flores.
O amor como um tremor de terra vinha abalando montanhas e minérios nas entranhas da carne. Como relâmpagos e sóis, chegava inaugurando auroras ou ateando faíscas incendiárias.
O amor é assim. O amor cai de surpresa em cima de você, joga os braços a sua volta e transforma toda sua existência.
As derrapadas são fatais e traiçoeiras.
Chegam enlaçadas por grifos e hieróglifos.
Os amores chegavam e partiam...
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Emiliana, mulher interna em si mesma: nela, os sentimentos nasci-am e secavam. Regados pela noite externa, cresciam contidos, ali enraizavam, mas só dentro viviam.
Emiliana sentimentos. Emiliana calendário. Terremoto. Tempo nu-merado. Golpes mal curados. Cicatrizes.

madellon



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