A FILOSOFIA COMO UM RASGAR  DO CAOS E UMA CRIAÇÃO DE CONCEITOS

João Ferreira

27 de setembro de 2007

Um grupo de alunos de História da Filosofia Medieval me procurou mostrando-se muito interessado em obter de mim  uma noção de filosofia. Queriam uma noção definitiva. Embora considerasse utópica a pretensão de quererem de mim uma "noção definitiva de filosofia", considerei muito legítimo que o grupo quisesse que eu lhe desse uma definição baseada em alguns parâmetros que permitisse a eles encarar questões mais avançadas da filosofia. Considerando bem, em certo sentido buscar uma noção certinha e dogmática da filosofia é um sonho tipicamente jovem. Até porque em filosofia não há dogmas a serem ensinados. Ter uma noção exata de filosofia é um sonho idealista como outros sonhos representados pelas demandas de qualquer jovem apostado em decifrar o enigma do mundo. Por outro lado, temos de reconhecer que esta demanda utópica do tesouro escondido na filosofia é uma força especial que mantém vivos, vigilantes e animados estes jovens para frequentarem um ambiente onde há o propósito de estudar filosofia.

Encarnando uma certa mentalidade social expressa por pessoas leigas em filosofia, muitos delas, ao encararem um curso de filosofia, armam-se em críticos de filósofos, concretamente, afirmando generalidades ou disparidades, frequentes vezes sem conhecerem os textos. Ora é norma salutar ter como princípio assente que a doutrina de um autor só ganha legitimidade no estudo direto dos textos, e não necessariamente na opinião de intérpretes, por mais badalados que sejam. Apesar do pressuposto, estes jovens não desistem e vão em frente querendo um curso que os instrua e os leve até ao cabo do mundo para encontrar um conceito ou uma experiência filosófica real que os toque na sua racionalidade ou na sua emoção.Estão certíssimos estes jovens em sua demanda. Querem saber realmente o que é filosofia.  Na sua inquirição sentem no espírito como pressão legítima sondar a natureza e os horizontes da filosofia. De preferência de uma maneira muito própria e pessoal. Querem saber o que é filosofia, mas não apenas as respostas já dadas na história da filosofia, com destaque para as que soam como respostas dos outros. Aceitam, sim,também, as respostas dos outros e a informação cultural assim como a crônica das teorias filosóficas que consideram importante objeto de conhecimento. Mas querem mais do que isso. Eles querem conhecer a filosofia por dentro, querem  sentir o próprio ato de filosofar  enquanto experiência pessoal ou a revelação da filosofia como algo que se desenvolve dentro da pessoa, como fenômeno que alia o ato do pensar com a busca da apropriação da linguagem de contornos universais e particulares ao mesmo tempo. Uma linguagem que dê retorno aos anseios, e que consiga exprimir uma dúvida, uma incerteza, uma procura, uma intuição, um raciocínio e que possa entender e elaborar uma doutrina, uma opinião, uma dúvida, uma pergunta e até um sofisma. Todo um jogo interior que consiga exprimir o percurso da busca dialética que é o caminho de todos os que se abalançam a sondar as realidades abstratas da metafísica, da interioridade, da teoria do conhecimento, da lógica incomensurável do percurso das sondagens humanas no limitado planeta terra.

Concedido este espaço insubstituível para o jovem que demanda peregrinar em áreas próprias da dialética filosófica, é importante que dentro do processo de iniciação, e treinamento do candidato a filósofo, se abordem os conceitos de filosofia que os filósofos das antigas escolas, a começar pelos conceitos greco-romanos nos legaram. É legal que esses conceitos legados pela tradição sejam apresentados aos aprendizes como parte importante do questionamento filosófico por mais variados que sejam. Autores de filosofia e escolas filosóficas representam as respostas dos vários períodos históricos. Representam sobretudo, a individualidade e a capacidade questionadora de seus autores. Desde Pitágoras até Martin Heidegger em  O que é Filosofia (“Was ist das die Philosophie”) ou Karl Jaspers em Introdução à Filosofia, temos noções e conceitos específicos sobre filosofia. As histórias da filosofia darão uma longa lista sobre deste tipo de questionamento. Pertence porém ao Mestre que dirige um bom curso de Introdução e Iniciação à Filosofia apresentar e direcionar o debate num sentido de participação de todo o grupo.

Vamos fazer um teste dentro da metodologia de estudo que estamos apregoando. Coloquemos na mesa para debate conceitos apregoados por Deleuze. Vamos tentar colher em seu livrinho O que é a Filosofia (1991) uma elucidação sobre seu conceito de filosofia. Diante de aprendizes desejosos de questionar o que é filosofia, Deleuze os inicia  respondendo que  “filosofia é a arte de formar, de inventar e de fabricar conceitos”.Vai mais longe. Tenta aprofundar a noção dada por Pitágoras de que “filosofia é o amor pela sabedoria”, e por fim passa a  explicitar o conceito de sophia em conjunto com “philia”. Para a palavra sophia Deleuze dá o significado de “conceito”. Juntando sophia com philia(=amizade), a tarefa do filósofo passa a ser a própria construção do conceito de Filosofia. O termo “philia” nos remete ao conceito de proximidade e o de proximidade a encontro. Este encontro (philia) cruzando com conceito(sophia) dar-nos-ia a noção de filósofo como “alguém que de antemão ainda não é mas procura, inventa ou pensa o conceito, sendo o filósofo, portanto, “um amigo do conceito”. A partir daqui Mestre Deleuze projeta a Filosofia como algo essencialmente criativo. Rigorosamente, segundo ele, “Filosofia” é a disciplina que consiste em "rasgar o caos",  "criando conceitos". Conceitos sempre novos. Filósofo é o que tem poder,  potência e competência para a criação de conceitos. Ora se a filosofia tem potência que a leva a uma ação criadora, conseqüentemente, não deve ser vista como mera passividade frente ao mundo. Quando dizemos que fazer  filosofia é "rasgar o caos" para criar conceitos, damos à filosofia a “função de intervir no mundo”. Mediante a intervenção, ela própria se encarregará de criar um mundo. Os conceitos, segundo Deleuze podem ser armas para a ação, para a crítica e para a instauração de novos mundos. O conceito é imanente à realidade e serve para torná-la compreensível. É uma ferramenta de conservação e de transformação.

A filosofia não pode reduzir-se a uma contemplação ou a uma reflexão ou comunicação. A reflexão não é específica da atividade filosófica. É possível que qualquer pessoa e não apenas o filósofo reflita sobre qualquer coisa.

Segundo Deleuze, o conceito não seria universal. É próprio do conceito colocar o acontecimento que é singular. Segundo a tradição, o conceito é sempre universal.

Segundo os filólogos franceses, “o conceito é uma aventura do pensamento que institui um acontecimento ou vários acontecimentos que permitem um ponto de vista sobre o mundo, ou sobre o vivido. Merleau-Ponty já afirmara que “a verdadeira filosofia consiste em reaprender a ver o mundo”. Aplicando o conceito de Deleuze,  ter um conceito seria “um reaprendizado do mundo. E é por isso que o conceito é exclusivamente filosófico”.“Todo o conceito é uma multiplicidade. Não há conceito simples. O conceito é formado por componentes e define-se por eles. Ele “totaliza seus componentes ao constituir-se, mas é sempre um todo fragmentado”, como um caleidoscópio. É incorporal, absoluto e relativo ao mesmo tempo. Não é uma entidade metafísica nem “um operador lógico nem uma representação mental: “é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar”(p.51). A produção de conceitos em Filosofia dá-se por meio da imanência.Os conceitos são acontecimentos, conclui Deleuze. Concluo, dizendo aos meus alunos aprendizes de filosofia, que lhes deixo agora o silêncio de criação que se segue à lição de Deleuze para que eles se encontrem a si próprios e rasguem o caos com uma criatividade pessoal sempre nova e crescente como quem busca uma luzinha no horizonte.