DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR E A DEUS O QUE É DE DEUS
João Ferreira
3 de maio de 2022
I
Enunciação do provérbio
Este provérbio é bastante conhecido e usado no mundo de Língua Portuguesa desde o Brasil até Timor Leste, na Oceania, passando por Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique.
Mas no fundo é um provérbio de valor universal. Países latinos como toda a América e países europeus, onde estão disseminadas várias igrejas de confissão cristã que se fundamentam na Bíblia, conhecem e usam este provérbio.
II
Fontes
O provérbio “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” tem origem na leitura da Bíblia. Os três evangelistas sinópticos, Mateus, Marcos e Lucas, apresentam-nos todo o contexto. O primeiro deles é S. Mateus, um dos doze apóstolos de Jesus, autor de “O Evangelho segundo São Mateus”. No capítulo 22: 15-22 oferece-nos esta narrativa:
“Quando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: - Mestre, sabemos que és verdadeiro e que de fato ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém, pois não consideras um homem pelas aparências. Dize-nos, pois, o que te parece: É lícito pagar imposto a César, ou não¿ Jesus, porém, percebendo a sua malícia disse: Hipócritas! Porque me pondes à prova¿ Mostrai-me a moeda do imposto. Apresentaram-lhe um denário. Disse ele: de quem é esta imagem e a inscrição¿ Responderam: de César. Então lhes disse: Pois devolvei a César o que é de César e o que é de Deus, a Deus. Ao ouvirem isso, ficaram maravilhados e, deixando-os, foram-se embora.”(Mt. 22:15-22).
Além de Mateus também Marcos ( 12:13) e Lucas, (20:20-26) relatam este encontro de Jesus com a multidão e a resposta que deu aos escribas e sumos sacerdotes (Lc 20 2—26) ou, segundo Marcos, “a alguns dos fariseus e dos herodianos” (Mc, 12:13); Mateus 22:15.
III
Conteúdo
Jesus diz para seus ouvintes e provocadores -fariseus, escribas e sumos sacerdotes, todos eles hipócritas que “fingiam de justos” - simplesmente para tentarem surpreender o Mestre em alguma palavra comprometedora- que há dois mundos a considerar: o mundo de César, que é o mundo político, comercial, tributário e o mundo de Deus, o mundo do ideal e da prática religiosa. Com prontidão objetiva, que deixou os adversários sem resposta, o Mestre, após a apresentação da moeda com o rosto de César, pelos hipócritas questionadores, deu a sentença: “Devolvei pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Foi uma resposta em linha reta. E seus provocadores saíram de orelha murcha e abandonaram a multidão: “E foram incapazes de surpreendê-lo em alguma palavra diante do povo e espantados com a sua resposta, foram em silêncio” (Luc. 20:26.).
IV
Implicações políticas e religiosas do provérbio
Este provérbio transformou-se numa fonte clara para dirimir questões modernas da relação de política com religião. Tivemos e temos isso em países islâmicos, como o Irão, o Afeganistão, o Estado Islâmico e certos governos islâmicos onde a religião comanda a sociedade civil.
No Ocidente democrático europeu, nos Estados Unidos da América e Canadá e na maior parte das repúblicas latino-americanas, o governo é de natureza civil e o Estado existe como realidade separada da Igreja ou das Igrejas.
No Brasil, a Constituição é taxativa ao declarar o país como “um estado laico”. Isso traz como primeira consequência que o Estado não tem poder sobre as igrejas, e que as igrejas devem deixar o Estado resolver os problemas dos cidadãos sem se imiscuírem com palpites ou intromissões. Como segunda consequência de o Estado ser laico, os dois poderes devem se respeitar dentro do que a letra e o espírito da Constituição Brasileira oferecem. Sendo assim a norma constitucional, resta aos poderes da República e às Igrejas estabelecer relações normais respeitando direitos e deveres, sem intromissões e ligações promíscuas, tendo sempre como farol orientador o princípio constitucional do Brasil como “estado laico”.
V
Relações práticas entre o poder do Estado e o poder religioso
Devemos conceder que nos vários Estados da União não há notícias públicas de anormalidades que ponham escandalosamente em destaque a laicidade do Estado em relação ao poder religioso. As duas instituições se respeitam, colaboram e seguem em suas linhas de atuação com destaque para a colaboração das igrejas na vida religiosa, assistencial e educativa dos cidadãos .
A nível de relações do Governo Central com as igrejas evangélicas, bancada parlamentar evangélica e evangélicos, a coisa é diferente. É comum encontrarem-se notícias, comentários e reportagens sobre eventos promíscuos na principal mídia do país nos quais se denuncia uma relação indevida em contrastaste vivo e radical com a letra da Constituição que define o Estado como laico. Sabe-se que uma relação promíscua só existe quando há uma troca de favores. O presidente da República buscando a reeleição quer os evangélicos apoiando sua candidatura e os evangélicos sempre ciosos de vantagens e privilégios topam a aproximação e a ligação promíscua. Desta forma, os próprios evangélicos esquecem a norma de Jesus “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e se politizam e se rebaixam a troco de interesses deixando sua independência de lado e correndo para usufruir dos privilégios do poder estatal. Essa ideologia chega ao parlamento onde atua a bancada evangélica, está até no Centrão, sendo parte também da chamada “bolha bolsonarista”. Ligações suspeitas e aliadas de ideologias que não se recomendam a pessoas com posturas evangélicas.
Se alguém quiser lembrar qual é a postura correta, sendo religioso, não encontrará melhor receita que aquela que o próprio fundador do cristianismo e autor das doutrinas ditas evangélicas deixou para meditação e prática de todos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
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