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Contos-->SANTANA E A GAROA -- 09/06/2003 - 16:40 (Fernando Antônio Barbosa Zocca) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Alguns mestres achavam que anular o passado era o primeiro passo que se dava para dominar consciências. E por que eu mesmo não creria nisso? Quem não tinha história boa, e tentava esquece-la, podia surpreender-se ao vê-la se repetir. Tico vinha ao meu lado e não parecia aborrecido com o silêncio. Caminhávamos em direção à rua do Porto onde algumas obras findavam.

Tico, sorumbático, iniciou num dado momento, depois que sentiu a ambulância estridulante passar por nós, um processo de mussitação, desviando minha atenção e pensamentos para o seu rosto. Perguntei-lhe o que lhe passava pela mente e ele respondeu-me num sussurro: - Cleópatra! O mandão precisava duma Cleópatra naquela sua vida de fastio. Sim era isso. - Eu não compreendi; mas para não tumultuar ainda mais nossa caminhada, não forcei aqueles seus neurônios velhos. Ele tinha esses momentos em que se via ausente. E quando isso ocorria, podia muito bem pisar num buraco, tropeçar nas pedras do caminho, ou simplesmente amolgar cocô.

Ele tomou o celular e aflito esgoelava: - Alô! Alô!! Alô!!! Cadê você safado!!! Pensa que tudo vai continuar assim desse jeito? - Diante dos meus olhares de espanto ele pos-se a explicar indigitando o telefone: - Esse cara é marmota. Surrupiou os pertences do nosso time de futebol. Largou todo mundo no prejuízo evaporando-se. Ele é louco!

Eu já conseguira compreender certas facetas psicológicas daquele meu agregado: quando se achava a descoberto por insinuações certeiras, criava logo fantasias, expressas ad nauseam, que serviam para resgatar o desequilíbrio descompensado.

Sua frustração insofismável ligava-se à morena exuberante, que naquele julho já bem distante, adornara-lhe a fronte com galhos pontiagudos. Por isso a incitação da ambulância colocara em evidência aquela sua agitação motora. É que depois de saber da traição, Tico tentara o suicídio, cortando o pulso. Não obtivera sucesso, por ser aquela sua lâmina de barbear bem cega; fora então, inapelavelmente, levado ao hospital na mãe-carinhosa.

Naquele dia, estava tão agitado que trombeteou, pelas ruas, a extinção das leis. Ele queria justiça. Pensei em perguntar como podia conceber justiça sem lei, mas ponderei que não deveria forçar tanto a natureza.

Tico viera dum meio onde a patuléia predominava. Naquela camada populacional, os ataques sob os poderes da inveja, corriqueiros e mortais, frenavam ou demoliam quaisquer pretensões que não coadunassem com os padrões térreos vigentes.

Aquele meu chegado, quando se via assim, como direi, com muita fome de pinga, entrava num parafuso aflito e a ansiedade, paulatina, apoderava-se da sua alma pobre e frágil.

Eu nunca tinha conhecido alguém tão tenaz quanto ele. Aquela sua contumácia beirava à doideira. Ele queria mesmo era chutar o traseiro do Alex, o salafrário abjeto que lhe enxovalhou a respeitabilidade social antes virgem. Apesar das lesões morais sofridas, e já esmaecidas pelo passar dos anos, queria, nem que se visse encarquilhado, dar um de trivela naquele bunda- mole. E quando elevava os braços aos céus exclamando pálido: - "Santana my dolly forever!", podia sair da frente. Aquilo era sinal de que a coisa desandaria.

Ele tinha um faro especial para sacar quem, sob a malícia, se entregava aos babados diruptivos. Tornava-se possesso e tentava a todo custo manter a auto-estima injustamente enodoada. Nas díades, os esgares à socapa, enrubesciam-no e tornavam o ambiente impróprio para a sua permanência. Num instante vociferou:
- Eu estou com meningite. Me acudam! - O silêncio bucólico que emanava das casas adjacentes foi quebrado pelas portas e janelas que se fechavam. -Tico continuava: - É a garoa! Ela está me matando. Socorro, eu estou com meningite. Ai Jesus, meus nervos!

Pensei que pudesse continuar caminhando ao seu lado, mas não foi possível. O escândalo, terrível e adstringente forçou-me a deixa-lo. Ensandecido parou uma criança na rua e explicou toda etiologia do suposto mal que o atacava. Disse que fora dominado por uma gripe horrorosa, pior até do que aquela espanhola havida em 1918. Garantiu que não conseguiu curá-la; e que o nervo olfativo infeccionara-se, por causa também dos fungos deletérios, do ambiente em que morava; a doença então se propagou até a base do cérebro, quando o derrubou em estupor.

O mísero descabelava-se e uivava. Com meneios de cabeça os passantes mostravam a desolação que lhes tomava o espírito ao ver aquele espetáculo triste. Sua vida sempre fora um desacerto. Aos desencontros vivera-a para vê-la agora terminar alí, na penúria, sob a comiseração de quem não podia ajudar.
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