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Contos-->Homem de Terra: Macarrão, Panfletos e Trânsito -- 14/06/2003 - 21:06 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O dia era aquele, mas poderia ser qualquer outro. Tanto faria. A vida de Dauri era sempre igual. De domingo a domingo, cada minuto tinha a mesma carinha sem graça, anêmica, pelancuda. Incolor, insípida e inodora. Uma água mesmo. Não era culpa só dele, terceirizemos. Era o mal do século: a rotina. O casamento era uma ilha deserta cercada de novela por todos os lados. Vez ou outra, uma embarcação furada trazia para prainha uns barris de cerveja e umas picanhas maturadas. No mais, era aquilo: acordar, trabalhar, dormir, acordar, trabalhar, pagar contas, trabalhar, dormir, acordar trabalhar, papai e mamãe, dormir. Figurinhas repetidas de um álbum pouco raro.
Era esse o dia, então. Acordou com o rádio relógio sintonizado na Estação 33 Comunitária. "Músicas para Despertar". Levantava até acamados em coma. O pulo da cama era em slow motion. A perna esquerda saía do colchão. Quadro a quadro, fazia uma parábola e relava no carpete que espetava a sola do pé. Os olhos fechados, o nariz congestionado, o gosto de saliva amanhecida e o chiado do rádio anulavam todos os sentidos. Só o tato imperava tonto e soberano. Em pé, caminhava pelo quarto procurando a porta. Ontem ela estava ali, lado esquerdo do quarto, tinha certeza. Mas, quem sabe se alguma coisa não resolvera mudar na vida de Dauri? Quem sabe a porta estivesse no chão, aberta esperando o próximo passo cambaleante de um homem sonolento?
Nada. A porta estava lá na parede, sólida e bem fechada. Do corredor ao banheiro. Uma infeliz ereção matinal involuntária não ajudava na beira da privada. A bexiga cheia teve que esperar o vai e vem da escova com pasta medicinal, tchec tchec. “Podiam fazer uma pasta mais gostosa..." Uma pasta de dente com sabor de café com leite e pão com manteiga. Era só esfregar o desjejum nos dentes e não se perderia tempo na mesa. Outros sabores completariam a linha de produtos: brioches com chá de hortelã, croissant com coca light ou, os mais radicais, feijoada com caipirinha e macarrão com molho de sardinha. Tudo em pasta e com embalagem colorida.
Mas, já que a invenção desceu pelo ralo da pia e terminou de sumir, devidamente, no redemoinho da descarga, o jeito era engolir o cream cracker e o café amanhecido. A televisão já estava ligada, aliás o milagroso aparelho ficava eternamente on line, de plantão, pronto para dar uma notícia nefasta, eletronicamente vinhetada e sonorizada.
“Novas notícias sobre a rebelião no Presídio de Nova Liberdade. O conflito teve início na noite passada quando um detento encenou um ataque epiléptico e mobilizou a equipe médica do presídio. O doutor Mauro Raspanti e o carcereiro Josemar Teixeira foram feitos reféns. O conflito incitou todo o Bloco D, de segurança máxima. Houve troca de tiros e dois policiais morreram, segundo a PM. Não há notícia de mortos ou feridos entre os detentos mas já se sabe que pelo menos 4 fugiram durante o tiroteio."
Tão comum quanto a média de café com leite eram as rebeliões no Presídio. A idéia inicial de um centro de recuperação holístico, com terapias naturais, estímulos de pontos energéticos dos recuperandos e toda aquela balela dos militantes do Partido Novo não passaram do audiovisual de lançamento. O Presídio era um luxuoso prédio recheado de tecnologia sem função e estrategicamente instalado ao lado do Parque Industrial. O ar intragável da região parecia colaborar com as constantes explosões dos detentos. Dauri terminou o café e as notícias continuaram negras:
"Neste momento, a situação parece sob controle. A tropa de choque mantém uma sirene ligada para impedir que os detentos durmam. Você está vendo o portão principal do Presídio. Os empresários do Parque Industrial, ao lado do prédio do Presídio permanecem indiferentes ao conflito e mantém os turnos de trabalho funcionando normalmen... shhhh!" Uma interferência cortou de súbito a transmissão.
- Preciso consertar essa coisa!
Desligando o aparelho, Dauri foi à garagem e bssst! enfiou a bota no presente matinal dos gatos de Marlene.
- Merda! - praguejou, literal.

..................................................
Marlene era um doce. Feito bala dietética que sempre deixa um gosto abusado, enjoativo. Marlene era um doce diet. Às vezes os adoçantes deixam os doces mais doces ainda. Um paradoxo: dietético doce demais. "Que é isso gente, é tão bonitinho." - dizia Marlene, fazendo biquinho: "bunitiinhu". Podia ser depauperado. "Mas olha direito! É lindinho!" E assim ela levava a vida. Com lentes cor-de-rosa. De cristal que era para não fazer mal a vista. Mas era exagerada na dose de ilusões. Achar tudo lindo, divino, maravilhoso, até de baixo d água, funcionava como um forte. Era só ficar ali, escondida embaixo da sutil e impenetrável concha de fantasias, que estava salva. Salva de qualquer coisa que fosse um pouquinho diferente do belo mundo erigido e cristalizado durante suas viagens por mundos além mar, ar, terra, fogo ou qualquer outro elemento. Contos-de-fadas, mitos longínquos com lindas princesas e vilões cansados de levar a pior para o belo príncipe, histórias de Dona Benta e cia., tudo isso era adulto e maduro demais numa comparação com o "mundo maravilhoso de Marlene". Lewiss Carol e irmãos Greenn estavam no primário de uma escola em que ela era doutora com Phd. Tudo livre de contas, preocupações com saúde, brigas. Marlene precisava sempre estar feliz, feliz, feliz.
O sol já entrava forte pelo vão da veneziana e empurrava Marlene para fora da cama. "Ah! Mas tá tão gostoso aqui...". Uma sessão de bocejos engoliu a preguiça e colocou a figura leve e aérea a flutuar no corredor em direção à sala, ávida pelo controle remoto.
" Não! Não diga agora! Pois você também leva este incrível porta-botões. Prático e fácil de guardar. Veja que beleza! E se você ligar agora, ganha, inteiramente grátis, um lindo porta-canetas de inox com o emblema do time preferido do maridão. Ele vai adorar! Quanto você acha que custa o Super Kit de Caixas Porta Tudo, com 14 caixas, mais este porta-botões inteiramente grátis, este porta-canetas personalizado para o seu marido, o seu manual de instruções e o Certificado de Garantia? Não diga ainda, porque você também ganha esta fita de vídeo com as melhores imagens de Cancum! Um refresco para o seus olhos. Tudo isso por apenas... shhhh! "
- Ah! Que pena!

...............................................

- Filho da puta! Não tá vendo o sinal aberto, não!?
O trânsito era o próprio inferno num carro popular sem ar condicionado, com El Niño fazendo churrasquinho. Quarenta graus e um mormaço subindo do asfalto. Na rodovia a velocidade produzia uma corrente baforenta carro adentro, um vapor quente que não refrescava mas enganava a pele. Os oito quilômetros até a Indústria de Massas eram intermináveis e cada vez mais esticados com os constantes engarrafamentos na única entrada do Parque Industrial. Dauri instalara um CD no carro para passar o tempo, ouvindo Pixinguinha. Em dias mais frios, a seleção musical pendia para o cool jazz ou coisa parecida. Mas a música popular era sagrada.

"Se Deus me fora assim clemente, aqui nesse ambiente, de luz..."

A paradeira do trânsito parecia maior. O carro, parado com motor ligado, esquentava com rapidez. Mas, se desligasse o carro, o rádio não funcionava. Os acordes resistiam ao calor 1.0.

"Meu coração junto ao seu lanceado,
pregado e crucificado pela rosea cruz
do arfante peito teu..."

Espaguete, cabelo de anjo, parafuso. Assim caminhava a Indústria de Massas, sem a menor tradição italiana. Os proprietários eram de Aracaju e, depois de grande sucesso com uma cadeia de pizzarias à beira-mar, resolveram investir pesado em massas semoladas. Dauri estava com eles há 12 anos. Começou como Engenheiro de Produção, logo depois de completar o curso superior. Agora era "quase" diretor do Departamento de Qualidade Geral. O "quase" era por conta do salário que não era diretamente proporcional a aplicação de Dauri. "A empresa é familiar! Você é como um filho pra gente!" - explicava Nigro, em meio a pratos de macarrão no refeitório da diretoria. A observação era comum e vinha sempre com lembrancinhas nordestinas e cacarecos de todo tipo. Talvez por não recusar uma boa macarronada dominical ou talvez pelo grude das massas, Dauri foi ficando, foi ficando, ficou. Nos mais de dez anos pediu demissão oito vezes. Voltou atrás oito vezes, sensível à dramaturgia de Nigro e ao jogo de palavras e pernas da diretora executiva, Helena, filha de Nigro.
- Nossa, Dauri! Não acredito que você
consiga ficar longe da gente!
Não conseguia. Do Nigro até que a distância não seria um grande problema. Já a Helena... quanto mais perto melhor. Uma questão de magnetismo, aquele tipo de paixão incubada que vai corroendo de dentro para fora até tomar conta do corpo todo. Era um câncer benigno. Dauri nunca teve coragem de chegar aos finalmentes com Helena. Aliás, tirando uma garota de programa em Tóquio, no segundo ano de casamento, ele sempre fora fiel a Marlene. "Ai, amor! Tem algo errado com a gente, né?" Foi o máximo de explosão a que Marlene se permitiu quando o marido, totalmente arrependido e afogado em culpas, contou-lhe sobre a aventura extra conjugal japonesa.
Uma hora parado, o trânsito parecendo um pântano em dias sem vento numa mata virgem. Dauri desligou o carro, saiu e se encostou na porta, braços cruzados sobre o corpo fora de forma. Enclinou, sem muito ânimo tentando enxergar o motivo do caos. Estava a uns dois quilômetros da indústria, num pequeno centro comercial. A única distração possível eram os luminosos das lojinhas de roupas infantis e as casas de produtos esotéricos com seus estranhos símbolos de metal e estatuetas de deuses desconhecidos. Um panfleteiro vinha na contramão e além do folheto de uma revista popular, trouxe notícias sobre a causa do quilométrico engarrafamento.
- Um carro da Polícia tombou e bateu num caminhão de cerveja. Foi feio. Tem sangue e cerveja pra tudo que é lado. Não dá pra passar nem moto, cara.
- Morreu alguém?
- Sei não. Acho que não. A polícia tava correndo pra caramba. Só podia ter capotado mesmo! Acho que vai levar uma cara pra liberar a pista viu...
- Puta merda! - praguejou Dauri.
Nove e meia. Atrasado, mais uma vez. Ninguém ligava mais para isso. Muito menos com ele. Passou os olhos no folheto que o garoto tinha deixado no pára-brisas do carro. "Mulher fica seis meses presa em casa e tem gêmeos. A baiana Maria Conceição de Jesus casou-se com seu primo Gineval Justino em setembro do ano passado. Dois meses depois, descobriu que estava grávida e começou a apanhar do marido. Nos últimos seis meses ela ficou trancada em casa, em cárcere privado. Só saía para lavar a roupa de Gineval que mantia tudo trancado. Há duas semanas deu à luz gêmeos, sozinha num quartinho nos fundos da casa. Desnutrida e com complicações mentais, Maria foi encontrada pelos vizinhos que ouviram os gritos de dor durante o parto e chamaram a polícia. Gineval foi preso e encaminhado para o Nova Liberdade. Maria Conceição está na Santa Casa, com insuficiência de vitaminas. Os gêmeos, batizados de Renan e Raí, morreram logo após o parto. A vida de verdade você só conhece na REAL & ABSURDO, a revista do povo. Já nas bancas."
-A que ponto nós chegamos! - pensou Dauri.E eu aqui, preso sem cadeia e sem fiança.
Voltou para o carro. Ligou tudo e o som. Varreu o box de cds. Puxou um Chico Buarque. Track 2. Brejo da Cruz.
"A novidade que tem no Brejo da Cruz,
é a criançada se alimentar de luz."
Lembrou-se de quantas reportagens sobre meninos de rua fumando crack ou cheirando cola já tinha visto sendo encerradas com esse hino buarquiano. Os jornalistas, sempre panfletários, tinham essa mania peculiar de eleger "trilhas oficiais" para assuntos recorrentes. "Brejo da Cruz" para meninos de rua e indigentes. "Polícia para quem precisa..." para as cenas de espancamentos da PM. "Cabelo, cabeleira, cabeludo, descabelada..." para reportagens sobre cortes de cabelo do verão. As notícias já eram banais. Era de se esperar que pelo menos o fundo musical fosse mais original. "Raindrops keep falling on my head" para as matérias sobre política. "A Cavalgada das Valkírias" para as reportagens sobre o caos no trânsito. E o melhor: "Ciranda, cirandinha" para falar da inflação. Um toque de originalidade musical.

"Já nem se lembram
que existe o Brejo da Cruz.
Que eram crianças e
Que comiam luz."

.................................................

Marlene pegou a agenda colorida e conferiu: aniversário da Janete. Não perdeu tempo e teclou o número.
- Alou!
- Janete?!
- Sim. Quem é?
- Parabéns pra você nesta data querida,
muitas felicidades, muitos anos de vida!
- ...
- Parabéns Janete! Muita alegria pra você!
- Quem tá falando?!
- É a Marlene!
- Oi, Marlene...
- E aí! Ganhou muitos presentinhos?
- Não, Marlene! Meu aniversário é no mês que vem.
- Como assim?! Desde quando?
- Desde que eu fiz um ano. Faz uns trinta e pouquinho...
- Mas aqui na minha agenda tá marcado que é hoje, menina! Acho que eu marquei errado. Mas tudo bem! É o seu mesversário. Não tem o aniversário? Então a gente comemora o mesversário, certo?
- É... Você é a primeira pessoa que me dá os parabéns pela entrada no inferno astral.
- Que inferno astral! Não liga pra isso, não! O ano passado eu me dei foi bem no meu inferno astral. Até ganhei flores de um admirador secreto. Lembra?
- Claro. E aí. Parou de tentar descobrir quem era o apaixonado? Admirador secreto não aparece todo dia, hein!
- Pois é! Eu não consegui descobrir, não!
Na floricultura ninguém soube informar nada. Parei de tentar.
- Eu até hoje acho que foi o próprio Dauri, querendo fazer média.
- Que nada! Isso não combina com ele, não! Ele é mais sérião. Aquele jeitão que você já conhece.
- Não sei como você aguenta ... Por isso que eu não me caso. Tô muito bem com este espação na cama. Pelo menos posso escolher o lado que eu durmo.
- É isso aí! Bom, vamos marcar uma hora pra colocar tudo em dia, certo?
- Vamos sim. Eu ligo pra você. Dá um abraço no Dauri.
- Dou sim! E parabéns!
- ...

.................................................

Dez horas. Em 30 minutos o carro não saíra do lugar. Nem um centímetro. Dentro não dava para ficar mais. Melhor seria uma caldeira. Fora o sol queimava a pele. Dauri estava com jeito de camarão.
- Vai um suquinho aí, chefia?
- Quanto é?
- Dois real.
- Deixa eu ver.
Dauri pegou a garrafinha na mão e analisou o rótulo manchado pelo gelo da caixa de isopor. Procurou o nome do fabricante, um telefone, qualquer informação que satisfizesse suas exigências de consumidor. Nada. Só o logotipo impresso em letras grandes e mal desenhadas: "Sucoloco".
- Quem faz esse suco?
- Minha senhora, mesmo!
- Tá muito caro. Desse jeito você vai ficar rico.
- Que é isso, chefia! Dessa vida não se leva dinheiro, não. Que que adianta ficar rico, né! Depois acaba feito aquele policial que tá preso no carro que capotou ali na frente. Esse virou suco de verdade.
- Como é que estão as coisas lá?
- Tá feio. Os bombeiros tão tentando tirar o corpo com maçarico e tudo. Mas já tá morto mesmo.
- Tô aqui há uma hora, cara!
- Então, chefia! Toma um suquinho pra refrescar o calor.
- Pago um real.
- Um e cinquenta. Feito?
- Só tenho um real trocado.
- O senhor é gente boa! Um real pela amizade, valeu?
Pegando a garrafinha Dauri entrou no carro decidido a não esperar mais. Voltar não dava. Ir em frente, só com velocidade de lesma. Virou o volante e jogou o carro sobre a calçada, incentivando outros motoristas que gostaram bastante da idéia.
- O jeito é ir a pé.
Fechou o carro. Abriu o suco. Seguiu bairro adentro. Apenas dois quilômetros até a Indústria de Massas.




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