Eu estava sentado, absorto na trama e saga do Comandante Aureliano Buendía - que viria a se lembrar, quem sabe quando?, do dia em que seu pai o levou pra conhecer o gelo - quando ela chegou. O ónibus, naquele exato momento, estremeceu. Olhei-a vindo para perto de mim: com olhos de ressaca, palpitantes, ela me olhou.
O engraçado é que nada mais existia, pois, assim como a Macondo de Cem Anos de Solidão, o banco em que estava sentado, lendo, parecia longe de tudo, prostado no irreal. E eu a olhei, e ela me olhava. Devassei-a na intimidade o mais que pude: fui ao àmago de sua alma, senti sua pulsação, sua respiração, e recuei.
Isso tudo se passou em longos milésimos de segundo. Logo eu já estava de novo em transe, dado à leitura; e o ónibus, seguindo o seu destino cotidiano, sacolejava como sempre. Ela, contudo, Vênus misteriosa, sentou-se em minha frente.
Desci alguns pontos depois daquela enxurrada de sensações e daquela experiência fulminante de empatia. Ficou-me, devido aos sagrados mistérios do corpo e do espírito, aquele vazio triste. Vênus, como amiga de Cupido, provou ter uma bela mira. Flecha certeira: só pensava nela e só sentia o nada.
E eis que cá estou, já calmo e sóbrio do veneno do malvado anjo, completando esta página em branco. Preencho, numa louca tentativa de alívio imediato, o vazio deixado por aquela linda mulher, Vênus eternizada...
Felipe Lenhart
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