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Artigos-->Os nossos duzentos anos -- 26/05/2002 - 11:07 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sentados em nossas poltronas estamos ansiosos, inquietos e alvorotados.

O filme está prestes a começar, eu e meu amigo há muito esperávamos por esta película que é um pouco da nossa trajetória e ousadia por acreditar que um outro mundo é possível. É um hábito antigo tomarmos chá quando assistimos televisão. Enquanto sirvo nossas canecas, meu companheiro, externa sua expectativa tamborilando com as mãos na guarda da poltrona.

As primeiras cenas desse filme se passam na França, quando a burguesia faz a sua revolução e se estabiliza enquanto classe dominante. Embora introdutórias, são cenas de suma importância, pois vemos a assunção da classe que dominará o mundo por um longo tempo e que tentaremos em todos os cantos da terra, derrubá-la. Aonde houver um indignado com as injustiças sociais haverá um revolucionário para transformar a sociedade.

Estamos no início do século XIX, as cenas são de vales verdejantes e riachos límpidos, na tela, as idéias do socialismo utópico a penetrar nas fileiras dos trabalhadores assalariados que começavam a criticar fortemente as mazelas do capitalismo. Podemos ver Saint Simon, um nobre que tentou explicar as injustiças sociais. Naquele 1847, apontavam-se como socialistas os seguidores de diversos sistemas utópicos, alheios aos movimentos operários, organizações sociais diversas e constituição de grupos autônomos de operários. Entretanto, em meados do século aparecem, imagens de Marx e Engels, revolucionando a filosofia com o marxismo. Nasce o socialismo científico. Com o princípio fundamental da unificação da classe trabalhadora. Trabalhadores do mundo, uni-vos! Ficou gravado em nossas mentes. Um sonho, num momento em que o capitalismo encontra-se fortemente aceito e estabelecido em uma série de países da Europa e na América do Norte.

Não podemos deixar de lembrar que estamos assistindo ao desenrolar da história comodamente sentados em nossas poltronas, e pelo desenvolvimento da trama no vídeo nós já estamos com quase oitenta anos. Nossos gestos são lentos e breves são os comentários. Esse filme é a nossa obra e legado.

Começo do século XX, estamos com cem anos, a barba encosta em nossos pés, não há tempo para cortá-la, pois o tempo não pára e estamos atentos a essa história. Confesso que me sinto meio velho, mas ainda tenho forças, fui um trabalhador de pegar no pesado e ainda me resta muita vitalidade. O meu parceiro, como eu, também está velho e cansado, ele foi um revolucionário, correu mundo, lutou por uma causa justa e um ideal de liberdade, foi preso e torturado várias vezes. Quando o vejo dar uma cochilada, em alguma parte do filme, eu não o acordo, pois ele é um dos personagens principais da tela e está apenas revendo as filmagens. Eu, apenas um coadjuvante dessa história, apreciador dos movimentos sociais e da luta libertária.

Estou precisando comprar umas poltronas novas e trocar as lentes dos meus óculos.

Neste instante nossa câmara focaliza a estação Finlândia e vemos um revolucionário partindo para a conquista, a vitória brilha em seus olhos. Gesticula bravamente e seu discurso é inflamado e incisivo. 1917: nosso grande êxtase, finalmente a classe trabalhadora chega ao poder. Eu, com quase 120 anos, choro de emoção, o mundo modificará, valeu a pena ter vivido. Comboio do exército vermelho invade Petrogrado, soldados exibem suas bandeiras vermelhas, as ruas são tomadas pelo povo russo e pelo exército bolchevique. Podemos ver Lenin exclamar em alto e bom som. “Depois das perseguições e dessa vida clandestina, chegamos ao poder!”. Trotski sorri disfarçadamente, enquanto, pensativo e profundamente emocionado, com o seu inseparável lenço branco, limpa as lentes de seus óculos.

E nós, nas poltronas da história, vendo o Estrela Vermelha, vapor de propaganda revolucionária, deslizando lentamente sobre as águas. Era a felicidade em seu extremo, o mundo é o nosso sonho... Finalmente! A utopia está realizada em sua plenitude.

Passado um breve tempo, algumas inquietações começam a aflorar, nos deixam extremamente preocupados e nossas poltronas desconfortáveis. Não era bem isso o que imaginávamos. Com Stalin o sonho degringolou e um pesadelo ronda nosso sono. No monitor do socialismo esquecemos o outro canal que passava o avanço do capitalismo, mas mesmo assim o socialismo Russo vai sobrevivendo, à moda Stalin, sobrevivendo. Vendo o socialismo, no monitor em frente aos nossos olhos, concluíamos que não era bem o que desejávamos, mas estávamos extáticos e não queríamos enxergar diferente. Iria dar certo, tinha que dar certo.

Não demorou muito, entra um plantão de emergência com notícias de primeira mão. Um minúsculo país, do outro lado do mundo, também faz uma revolução socialista. Nós ficamos boquiabertos. Aonde fica Cuba? Quem é este Fidel Castro? Che Guevara? Sierra Maestra! Camilo Cienfuegos... isso é nome? Como é que fazem uma coisa dessas e não avisam a gente? Como é que estes guris não nos convidaram para a conspiração?

E o filme vai rodando, nossas poltronas estão desbotadas e rasgadas e parece que foi ontem que eu tinha comprado um estofado novo. Na noite passada, uma senhora passou por aqui, aparou nossas barbas, trouxe-nos uma caneca de chá e se retirou silenciosamente. Disse que se chamava Olga. Não sei quem a mandou, muito simpática e prestativa. Outro dia um carteiro me entregou um telegrama de minha filha, uma linda mensagem de felicitações pela passagem do meu aniversário, que eu até tinha esquecido. A fisionomia do carteiro me lembrou os traços de um grande companheiro, que estava convidado para o ver o filme, e que não pôde vir, pois tinha que trabalhar na metalúrgica.

Em 1989 parece que o filme encaminha-se para o final, diga-se de passagem, para um trágico final. Vão-se por água abaixo todos os nossos sonhos e lutas. Vemos o mundo cair e estamos perplexos. Um a um, todos caindo, não era lá bem o que imaginávamos para os trabalhadores, mas ainda supúnhamos que poderia ser aprimorado numa melhoria gradativa . Não acreditávamos no que estávamos assistindo. Seria o fim?

De repente, esta poltrona tornou-se incômoda, noto que minha mão tremula ao roçar a barba que novamente está precisando de uma aparadinha, aquela senhora que esteve aqui, por onde será que anda? Como era mesmo o nome dela? Estamos com quase duzentos anos e ainda não conseguimos ver a libertação da classe trabalhadora. Valeu a pena perdermos tantos companheiros nas guerrilhas e sucumbidos nos aparelhos clandestinos? Pessoas que deram suas vidas em nome de uma causa, para tudo ser ruído a golpes de picaretas na derrubada de um muro, em uma festa que não estava programada.

O filme está terminando, as letrinhas sobem no monitor enquanto toca a música tema. Nós estamos cansados e sonolentos, pois esta película demorou duzentos anos e nós assistimos atentamente cada passagem dessa história. Embora meio sonolento eu vi umas imagens atrás das letrinhas do vídeo. Eram pessoas gritando e pulando, homens, mulheres, jovens, crianças, idosos, várias pessoas gritando alguma coisa que parecia ser justiça, outras vezes, liberdade. Brincavam de roda, jogavam amarelinha, soltavam pandorgas e pulavam sapatas. Algumas delas carregavam nas mãos rosas, bandeiras e estrelas. No céu voavam pombas brancas. Pareciam ser cenas do fim do filme, mas na realidade eram imagens do próximo capítulo. Finalmente a tela do vídeo torna-se escura.

Desligo a televisão e vou me deitar, talvez meus sonhos sejam melhores que a tela amarga da emissora e o que eu vi atrás das letras que subiam, cresça e floresça, nem que para isto tenhamos que viver mais duzentos anos. Olho para a poltrona ao meu lado e vejo meu companheiro em sono profundo e com um leve sorriso nos lábios que transmite um sensação de paz e serenidade ao rosto. Resolvo não acordá-lo.

Mando trocar esta poltrona novamente, está me fazendo calo na bunda. Tomo o último gole do meu chá de boldo e deixo a caneca cair no chão. Um esforço, por menor que seja, me deixa cansado, penso que a minha hora está chegando. São duas horas da madrugada, vou para o meu quarto deito e durmo, continuarei sonhando com um mundo mais solidário, de paz e harmonia entre os povos deste judiado planeta água, mas estou muito velho e cansado. Não sei se acordo amanhã com a mesma vontade e perseverança para lutar.

Nem sei se acordo amanhã.

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