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Artigos-->Nietzsche, afirmador da vida -- 26/05/2002 - 22:10 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
NIETZSCHE, afirmador da VIDA.

Dante Gatto



Em 25 de agosto de 1900, morria prematuramente Friedrich Wilhem Nietzsche (1844-1900). Cem anos depois, podemos constatar que sua filosofia ainda exerce enorme poder sobre nossas vidas. Não é difícil entender tal fascínio.

André Gide, nas Letres à Angèle (tomo III das Obras Completas), sintetiza a questão de uma maneira bastante oportuna: “Devemos todos nós a Nietzsche uma gratidão sem limites. Sem ele gerações se passariam ainda a insinuar timidamente o que ele afirmou com maestria, com ousadia e com loucura. É a partir dele que foi possível a criação e que a obra de arte pode existir. Eis porque considero a doutrina de Nietzsche como o prefácio, poder-se-ia mesmo dizer prefácio a toda dramaturgia futura. Parece, anacronicamente, que sua obra inteira se encontra subentendida na de um Shakespeare, de um Beethoven, de um Miguel Ângelo”.

As posturas de Marx e Nietzsche, afinal, situam-se nos extremos de ambições similares. Como observa Antônio Cândido (O portador, Os pensadores, p.5): se o primeiro ensaiava transmudar os valores sociais no âmbito da coletividade, o segundo imprimia uma transmutação do ângulo psicológico do homem, determinado pela espécie e processado pela civilização. “São atitudes que se completam”, uma vez que não é suficiente rejeitar a herança burguesa no nível das produção e das ideologias, mas, como fez Nietzsche (“psicólogo artista”), é preciso escavar o subsolo pessoal do homem moderno, iluminando-o enquanto indivíduo, “revolvendo as convenções que a ele se incorporam, e sobre as quais assenta a sua mentalidade”.

Sim, extremo limite do individualismo, a criação como um fenômeno humano por meio da arte, a transmutação de todos os valores… Vamos examinar tudo isto mais de perto.

Nietzsche analisa o fenômeno estranho que constitui a chave da alma de Sócrates, chamada por ele mesmo de o seu “demônio”. Nele, a sabedoria instintiva só se manifesta para se opor ao pensamento consciente: “Enquanto em todos os homens produtivos o instinto é precisamente a força criadora-afirmativa e a consciência se porta como crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se torna crítico e a consciência criadora ( uma verdadeira monstruosidade per defectum! (NIETZSCHE, O nascimento da tragédia no espírito da música – Os pensadores v.1 – p.12).

Antes de Sócrates, as “maneiras dialéticas” eram proscritas pela boa sociedade, tidas como inconvenientes, observa Nietzsche (O crepúsculo dos Ídolos, p.17-23, passim). Os que, eventualmente, apresentassem suas razões por meio dela eram examinados com uma natural desconfiança: “o que precisa ser demonstrado para ser crido não vale grande coisa”. Sócrates, originário do populacho, foi um polichinelo levado a sério. Pergunta Nietzsche: seria a ironia socrática uma fórmula de ressentimento popular? Na punhalada do silogismo, saboreia ele sua ferocidade de oprimido? Seria sua dialética uma forma de vingança? Sócrates previu que a idiossincrasia de seu caso já não era excepcional, era uma degeneração que se propagava rápida e secretamente. O “velho feitio” aos poucos desaparecia. Ninguém era mais senhor de si mesmo, os instintos se revolviam uns contra os outros. Ele, Sócrates, apesar da feiura, fascinava como dominador de todos os seus “vícios e maus desejos”. Fascinava “como resposta, como solução, como aparência do tratamento que visava a cura indicada em tais casos”. O racionalismo tornou-se forçoso como remédio e, diante disto, não é pequeno o perigo de que outra força nos tiranize: ou sucumbir ou ser absolutamente racional. Agora, qualquer concessão aos instintos e ao inconsciente nos rebaixa.

A degenerescência da filosofia, segundo Nietzsche, aparece nitidamente com Sócrates. Ele inventou a metafísica quando faz da vida “qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada, e do pensamento ... um limite, que exerce em nome de valores superiores ( o Divino, o verdadeiro, o Belo, o Bem...” Ora, a própria dialética prolonga este passe de prestidigitador, na medida que nos convida a recuperar propriedades alienadas. Tudo retorna ao espírito, no processo dialético.

O dionisíaco é a instauração de uma nova existência. Nossa plenitude, com a qual transfiguramos as coisas e a preenchemos de nossa própria alegria de viver. Sim, alegria de viver, apesar do sofrimento: “O profundo grego, extraordinariamente suscetível como ninguém ao mais terrível e ao mais severo sofrimento, consola-se olhando frontalmente para a terrível destrutividade da chamada história do mundo, assim como para a crueldade da natureza, e está em perigo de ansiar por uma negação budista da Vontade. A arte resgata-o, porém, e através da arte a vida” (HOLLINRAKE, Nietzsche Wagner e a filosofia do pessimismo, p.216).

José Miguel Wisnik (A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda, p.219) observa que muitos não entenderam jamais como que uma disposição radicalmente trágica pode dar origem a uma posicionamento afirmativo. O poder da liberdade dionisíaca suscita a transfiguração que garante seu lugar no eterno retorno.

Podemos considerar o eterno retorno, apesar das premissas antigas, como uma descoberta nietzscheana. Não se encontrava nos antigos, Nietzsche bem o sabia, nem na Grécia, nem no Oriente, a não ser de uma maneira parcelar e incerta, num sentido completamente diverso. O segredo de Nietzsche é que o eterno retorno é seletivo, isto é, não é simplesmente um ciclo, num retorno do todo, num retorno do mesmo, num retorno ao mesmo. Eis a doutrina nietzscheana: “Vive de tal maneira que devas desejar reviver, é o dever (porque tu reviverás, de qualquer modo! Aquele cujo esforço é a alegria suprema, que se esforçe! Aquele que gosta sobretudo de repouso, que repouse! Aquele que gosta antes de tudo de submeter-se, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba bem para onde vai a sua preferência e que não recue diante de nenhum meio! Aí está a eternidade!” (DELEUZE, Nietzsche, p.77).

A crítica nietzscheana à metafísica tem dois sentidos: o ontológico e o moral. Já nos referimos, por alto, ao combate empreendido por ele contra a teoria das idéias socrático-platônicas. Ao mesmo tempo, o filósofo do eterno retorno desenvolvera uma luta acirrada contra o cristianismo. Nietzsche chama-o “um platonismo para o povo” (“uma vulgarização da metafísica”), uma vez que o mundo terrestre é entendido como provisório e aparente, em detrimento do outro mundo, autêntico e verdadeiro. Faz-se necessário, pois, desmistificá-lo. Trata-se, o cristianismo, como o platonismo, de uma forma acabada de subversão que, apoiada em dogmas e crenças impõe, como virtude, a resignação e a renúncia, negando a vida. Portanto, à medida que Nietzsche avança filosoficamente, a verdadeira aposição aparece-lhe. Agora trata-se de Dioniso contra o crucificado.

Não é uma diferença quanto ao martírio. A questão é que ele tem sentidos diferentes. No caso de Dioniso, como seu paganismo, a vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno condiciona o tormento a destruição. No outro caso, o cristão, o sofrer, o crucificado como inocente, vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação. O homem trágico é forte na medida que afirma o mais acerbo sofrer. O cristão nega ainda a sorte mais feliz sobre a terra: ele é fraco, pobre, deserdado o bastante, para, em qualquer circunstância, ainda sofrer com a vida. Se Dioniso é uma promessa de vida, “o deus na cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontando para redimir-se dela” (NIETZSCHE, Sobre o niilismo e o eterno retorno – Os pensadores, v.2 – p.174).

A revolta dos escravos da moral, afirma Nietzsche, na Genealogia da Moral, começa quando o próprio ressentimento se torna criador e chega a produzir valores: o ódio encontra compensação numa “vingança imaginária”. A moral aristocrática, por sua vez, “nasce de uma triunfal afirmação de si mesma”. A moral dos escravos inverte o golpe de vida afirmador: “opõe de início um ‘não’ a tudo que não é seu. Este ‘não’ é o seu ato criador.” O mundo exterior converte-se no ponto de partida dos valores, e não o mundo interior: a ação torna-se reação.

André Gide, que abriu nossas reflexões, fecha-as agora, sintetizando afinal o que queremos dizer: “Seria mais simples dizer que todo grande criador, todo afirmador da Vida é forçosamente um nietzscheano”.



Dante Gatto, Professor da UNEMAT, Tangará Da Serra (MT)

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