Existem dois tipos de viagem, a que se toma atitude de viajar, e a outra, do imperativo do verbo viajar. E para quem não tem um salário digno, sonhos e delírios com a possibilidade de se conhecer algum lugar.
Era o caso de Lourdes, que morava na frente da rodoviária de Porto Velho, com vontade de subir naqueles ónibus e conhecer o Brasil.
Imaginava passeios pelas praias do nordeste, festa de chope em Santa Catarina, churrasco no Rio Grande do Sul, o morro do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e as cidades históricas de Minas Gerais.
Morou por ali durante dez anos, e depois foi parar no bairro Cai N Água, onde imaginava subir num daqueles barcos, conhecer os mistérios do Madeira, do Amazonas, depois pular para um navio de grande porte e ganhar o Mar Atlàntico, conhecer a Europa e os outros continentes. Queria chegar ao Oriente Médio, Israel, Egito, Líbia, Sudão. O mundo entrou em sua cabeça via fluvial e marítima.
Conseguiu se amigar com um soldado que a levou para próximo do aeroporto, e projetou sua cabeça para um Concorde, logo chegando a Paris. Atravessou o Canal da Mancha e foi em busca da família imperial. Vivendo de sonhos enquanto trocava de homens e endereços.
Até cair nas mãos de um traficante. Tornou sua existência ruim, além de miserável. Os sonhos com artistas, paisagens e comidas foram substituídos por drogas leves, depois por furos nos braços e pernas. E pelos problemas com a polícia.
Não ligava em ser detida. Na cadeia arranjava as coisas que precisava. O sexo fácil pela droga difícil. As doenças venéreas nem quis tratar.
Sua vida se transformou no que havia de pior, mas nada almejava, queria viajar de algum modo, tanto fazia física quanto hipoteticamente.
Quando babava ou delirava sobre o efeito das drogas continuava a imaginar seus castelos, seus mares, suas amizades com gente de outros países. Psicose.
Os traficantes se sucederam e ela ficou feia, doente, pestilenta. Ganhou o direito de viver nas ruas e calçadas da capital, de vez em quando viajando numa ambulància para escapar da morte.
Médicos humanistas tentaram curá-la, mas resistiu enquanto pode. Queria viajar.
Certo dia resolveu se juntar a um amigo viciado e assaltar um homem que caminhava pela rua escura do bairro Nacional. Estavam mal armados e não esperavam que o homem reagisse. O imperativo falar do homem satisfez o último desejo de Lourdes.
Gritando viajem , o homem puxou o gatilho seis vezes e despachou Lourdes e o amigo para o inferno. |