Ela trabalhava numa papelaria. Ficava o dia todo a vender clips, papéis, canetas, uma infinidade de trambolhos que servem aos professores, estudantes, pessoal de escritório e apreciadores de pernas bonitas. Sim, eu falei pernas bonitas.
Falei e falo. A guria tinha o mesmo tipo de material que se encontra em qualquer outro local para vender, mas o diferencial dos membros inferiores fazia com que o estabelecimento comercial tivesse qualidade superior no atendimento.
Claro que a jovem era bonita, mas o destaque eram as pernas. Pernas que faziam com que eu e os colegas fóssemos comprar coisas inúteis todos os dias.
O argumento era sempre idiota. Cada um levava uma borrachinha de dez centavos, uma caneta popular, régua, enfim, o que fosse mais barato para ver a rapariga com sua saia generosa a caminhar entre as prateleiras, conforme o ritual que seu rigoroso patrão exigia. Era um delírio. Com todo o respeito, que menina eficiente. Um pitéu de pernas bem torneadas e sedutoras, do tipo que faz um homem parar o carro fora da faixa, o guarda engolir o apito e o atropelado ressuscitar.
A turma que comprava os pequenos objetos era grande, algo em torno de cem alunos. Um grupo fechado, da oitava série.
Por ser em maior número, não permitia o acesso das turmas mais novas nem das veteranas. As pernas de Lucinha eram nossa vida.
Sem que ela soubesse se transformou na musa do ensino fundamental, e olha que suas pernas eram fundamentais para o nosso estudo. Todos estudavam muito para ter o direito de frequentar aquela papelaria. Aluno vagabundo não tinha vez.
Uma vez o Manoel chorou por não ter acesso ao antro de adoração. Tinha toda a razão. Foi quem descobriu a musa, e só por ter recebido uma nota com um décimo abaixo do mínimo foi excluído temporariamente. Em Educação Moral e Cívica.
Confundiu os nomes. Uma questão estúpida falando em energia. O termo correto era térmicas. Escreveu pérnicas. Sem querer. O professor anulou a dissertação, que valia três pontos. Mais um desconto por uma vírgula atravessada. Depois daquilo Manoel encheu o boletim de dez. Até em religião.
Religiosamente fazia questão de ver as pernas de Lucinha. Com todo o respeito, que a moçoila era da igreja.
Éramos todos batistas. Ela também. E filha do pastor. Mas o pastor era bom para ela e para nós. Deixava que os dons naturais ficassem ali, para nos converter.
E o tempo, que infelizmente passa, um dia me jogou para fora do colégio e da cidade onde Lucinha mora. Coisas de transferência de pai.
Ano passado estive lá para ver uns amigos. O Manoel casou com a Lucinha. Por causa das pernas, com certeza. Discretamente, na hora de me retirar olhei rapidamente o património da saudosa oitava série. Com todo o respeito. Com todo o respeito.