O DISCURSO BONITO DO FUTURO
Jan Muá
27 de junho de 2023
Acho que a maior parte das pessoas nunca pensou nisso.
Isto é, nunca pensou que o futuro tem um discurso muito bonito capaz de nos atrair e conquistar. O futuro mora na nuvem e conhece muitas línguas. E tem o dom único de entender a clássica linguagem universal com livre circulação entre gregos e troianos.
É perito na interpretação dos gestos e dos segredos hermenêuticos do sistema linguístico sobrevivente à confusão da Torre de Babel.
Falemos um pouco de seu discurso partindo do princípio de “que de todos os tempos o futuro é o mais rico”.
O que parece fácil de demonstrar. Até por exclusão.
Primeiro, porque o passado tem feição cadavérica. Já morreu.
E o presente... Sim: o presente é essencialmente problemático.
É problemático porque é usado, abusado, calcado, contrariado, vivenciado, sofrido e lamentado. Uma mistura de dores e alegrias, de falhas e êxitos. É por isso que há seres humanos infelizes. Todos os infelizes são infelizes no presente.
É também no presente que os ditadores cometem seus crimes e loucuras.
É no presente que as democracias cometem suas mais lamentáveis omissões e se deslustram.
É no presente que se luta por uma vida melhor e mesmo quando ficamos aquém. Tempo presente bom e até ideal seria aquele que distribuísse pão e arroz e proteínas animais e vegetais para o bilhão de pessoas que passam fome no mundo.
Presente como tempo positivo para a humanidade seria aquele que praticasse a justiça social e cuidasse das crianças e dos velhinhos com fome e com saúde abalada.
Mas o presente dominante é o capitalista.
E este tem como primeiro objetivo ensacar.
Ensaca trigo para vender, troca a ordem das coisas e deixa os estômagos, dos pobres, vazios.
Desprezados, abandonados e carentes, os pobres se lançam na espera de sua hora que raramente chega.
No meio de todo este bolo instável e injusto cresceu o prestígio do único príncipe capaz de dar esperança aos humanos, quando já foram esgotadas todas as hipóteses.
Este príncipe tem um nome. Chama-se Futuro.
Por sua natureza tornou-se aquele ser mítico que escolheu a nuvem para morar. Na mente dos humanos tem muito a ver com a esperança.
É aquele que entre os demais tempos, ao distinguirmos entre passado, presente e futuro, é considerado o mais rico.
Não que seja rico pela quantidade que tem de silos com muito grão ou com muito arroz para matar a fome das legiões humanas famintas.
É rico pelos votos que sempre teve e tem quando se disputam simpatias.
Ele é o príncipe.
Príncipe por morar na nuvem e por ter um rosto invisível que ninguém pode imaginar realmente que feições tem.
Por tudo isso, sua grande virtude é que ele dá fôlego aos planejamentos. Constrói fortunas de sonho. Fortunas inconcebíveis.
Dá muita tranquilidade aos humanos. Faz companhia nos lares. E as famílias antes de dormir oferecem-lhe um lugarzinho no sofá, ouvem falar dele na televisão.
Ao outro dia, na rua, todos os movimentos e conversas nas estações de metrô e nas rodoviárias, nos mercados e nas reuniões paroquiais, são de feição sonhadora.
O povão fica sonhando sempre com o futuro. Com o amanhã.
Sobrecarregados de dívidas, nossos trabalhadores, assim como nossas heroínas domésticas, as mães, em suas conversas e conselhos aos filhos sempre falam dele.
Sempre falam do futuro que ainda não chegou. Sempre falam do amanhã sob a forma de um ser virtual que mora na nuvem e não mostra o rosto. É o discurso bonito do futuro e do amanhã.
Para manterem a luta e para calar as bocas famintas, quando não há pão, os humanos falam do amanhã.
Entre nossas sociedades carentes, o amanhã leva a vantagem. Fecham-se as bocas e a esperança arrasta o povo sofredor para as horas seguintes.
É um enredo que faz parte da psicologia e da realidade social. A grandeza dos humanos consiste nisso. Eles têm que crer para poderem viver e sobreviver. Têm que revestir a realidade dura de paninhos quentes para segurarem a barra, para resistirem até à alvorada do amanhã.
Tudo isso é a imagem da esperança e da redenção.
Precisamos que estas simbólicas figuras circulem intensamente entre as comunidades humanas e as confortem para que a vida e a esperança persistam e se renovem.
O papel do futuro está na capacidade mental que ele dá aos humanos em sua trajetória existencial misturada de epopeias, tragédias e líricas e românticas cenas de amor e dedicação.
Eis a razão porque o discurso do futuro é um discurso bonito, apaziguador. Tem o condão de falar com simpatia sem ofender e sem enganar.
O futuro e o amanhã são nuvens de Deus. Paninhos quentes para pensar e cuidar das feridas dos corpos famintos que não perderam o poder de acreditar e de sonhar.
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