A LEBRE FARDADA
Narrativa popular da Guiné-Bissau
Narrador: Macário Perdigão.Ano de 1979. Recolha e edição do texto: JoãoFerreira
Era uma vez um lobo e uma lebre que saíram à procura de terra para cultivar. Cada um deles fazia-se acompanhar da mulher e dos filhos.
Foram andando, andando, até que chegaram a uma lala(1).
O lobo escolheu um lugar perto do rio, terra muito fértil. A lebre também escolheu seu lugar mas a terra era mais pobre e pouco fértil. Então a lebre e família viviam mal porque faltavam os gêneros.
Porém como a lebre viu que o lobo vivia numa boa, foi para a cidade comprar uma farda de cipaio(2). Fardou-se, foi ter com o lobo e disse para ele:
-Vamos fazer uma estrada aqui que vai passar nas suas terras. Então o lobo pediu para esperar mais um ano ou o fim da colheita e ele sairia.
A lebre regressou à cidade. Voltou no dia seguinte, fardada, e com um cassetete.
E disse, mais uma vez, ao lobo: a estrada vai passar por aqui . Você deve abandonar este local. Disse isto e nem deixou o lobo responder. Começou a bater, alegando que o lobo não cumpriu as ordens já recebidas.
Aí, o lobo não reagiu e a lebre voltou à cidade. No dia seguinte aconteceu a mesma coisa. A lebre foi ter com o lobo e disse: a estrada vai passar por aqui, etc. E começou a bater.
O lobo não conseguiu aguentar e teve que abandonar as terras imediatamente.
Após a saída do lobo, a lebre mudou para o lugar e se instalou nele, vivendo bem com a família o resto da vida(3).
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(1) Lala é, na Guiné Bissau, um tipo de terra bem irrigada, junto de rio ou curso de água.
(2) Cipaio era o nome que a colonização portuguesa dava aos auxiliares da administração investidos de autoridade quase policial.
(3) Trata-se de uma narrativa que tem como moral a esperteza. No caso, porém, é uma esperteza acompanhada de violência. Uma esperteza, por isso, abusiva e ilegal, reproduzindo o poder absoluto da autoridade em que o fundamento da ação se baseia na vontade ou no arbítrio da autoridade e não na lei cidadã.
Observações sobre o teor da narrativa:
Em primeiro lugar observa-se na lebre como personagem a reprodução da figura do cipaio colonial. Essa reprodução fica patente na farda, cassetete e na ação policial exercida pela lebre fardada. Em segundo lugar foi essa figura fardada e autoritária da lebre que se apresentou e intimou o lobo a abandonar a terra. A escolha do lobo como como personagem na narrativa é constrastiva pois trata-se de un animal selvagem e agressivo, aqui no caso dominado pelas ordens de uma simples lebre fardada, dando-se à farda o poder policial que o lobo não tinha como contestar.
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