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Artigos-->ENTREVISTA DO POETA SHURI KIDO COM L. C. VINHOLES -- 04/10/2023 - 18:21 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

 

ENTREVISTA DO POETA SHURI KIDO

COM L. C. VINHOLES

 

Nota: Esta entrevista foi concedida por e-mail ao poeta Shuri Kido em julho de 2013 e publicada em Tokyo na Gendai-shi-techo - Revista de poesia contemporânea. A presente leitura deste texto deve levar em conta os dez anos decorridos.

 

 

P1:  Quando e como você conheceu Katsue Kitasono pela primeira vez?

R1: Em 1953, conheci a Haroldo de Campos (1929-2002) na conferência Uma viagem ao Japão que o compositor H. J. Koellreutter pronunciou na Escola Livre de Música da Pro Arte de São Paulo. Haroldo soube de Katsue Kitasono (1902-1978)) por correspondência com Mary Omar Pound (1925- ), filha de Ezra Pound (1885-1972). Quando planejava a Exposição de Poesia Concreta Brasileira, em Tokyo, recebi de Haroldo recomendação para contatar a Kitasono. Meu primeiro encontro com Kitasono foi no café–galeria Fugetsu-do de Shinjuku por ocasião da projeção de um filme por ele produzido. Desde então construímos nossa relação e, em muitas ocasiões, recebi cartão postal (hagaki) convidando-me para as reuniões do Grupo VOU, às quais sempre compareci. Deve-se lembrar que sempre tive interesse pela obra de Kitasono o que, nos anos 1963/64, levou-me a traduzir a antologia Kemuri no Chokusen (Reta da fumaça).

 

Q2: Como você conectou o Kitasono ao exterior? (Como você o conecta à poesia concreta e à poesia visual?)

R2: A respeito dos contatos de Kitasono Katsue (1923-1978) com o exterior vou limitar-me a tratar daqueles que, em quarenta anos, foram, pouco a pouco, se consolidando mediante a troca de correspondência e de publicações e com a divulgação na impressa e exibição de poesias no Brasil e no Japão.

 

Haroldo de Campos (1929-2003), um dos líderes do grupo Noigandres, berço da poesia concreta brasileira, ouviu falar de Kitasono por correspondência com a filha do poeta Ezra Pound.

 

Os eventos e fatos nos quais estive envolvido ou dos quais fui testemunha são os que relaciono a seguir, aceitando a colaboração para amplia-los ou corrigi-los:

 

Setembro de 1957 – Haroldo envia a primeira carta para Kitasono. Nesta carta, da qual tenho cópia, está escrito:

“concrete or ideogramic poetry, as we name it, aims to create an object of its own: a verbal-object; it is aware of graphic field the ´verbivoco-visual´ virtualities of its medium, the word, disconnected of any subjective or decorative effect. The formal patterns of verse (´vers libre´ included) is left aside: an artisanal reminiscence. The contents. Shortness. Clarity. Straight forwardness. ´Kanji´fication of poem´s perception: it appeals not only to verbal, but to nonverbal level of communication as well”.

 

 

Novembro 1957 – Na revista VOU nº 58, Kitasono publica a poesia å˜èª¿ãªç©ºé–“ = tanchona kukan = reta da fumaça que despertaria o interesse dos nascentes poetas concretistas no Brasil e na Alemanha.

 

Maio 1958 - A poesia tanchona kukan = reta da fumaça, de Kitasono, em tradução para o português por Haroldo de Campos e o professor de japonês José Santana do Carmo, foi publicado no ensaio Poesia Concreta no Japão: Katsue Kitasono, do Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo.

 

Setembro 1958 - A versão em português de tanchona kukan por Haroldo foi publicada pela revista VOU nº 63. Esta versão acompanhada do texto em inglês também por Haroldo serviu de base para a versão em alemão de Eugen Gomringer publicada na Kleine anthologie Konkreter Poesie da revista Spirale nº 8, editada na Alemanha.

 

Fevereiro 1959 – Kitasono publica pela editora Kokubunsha 200 exemplares da sua décima nova antologia ç…™ã®ç›´ç·š = kemuri no chokusen, com doze poesias, inclusive a poesia å˜èª¿ãªç©ºé–“ = tanchona kukan = reta da fumaça, de 1957.

 

1960 - Nos primeiros três meses de 1960, tive oportunidade de comentar com Kitasono o projeto da exposição com obras de poetas brasileiros. Recordo a aceitação fácil do grande surrealista em redigir o texto solicitado para uso na abertura da exposição. Não tardou muito para que no café-galeria Fugetsudo (風月堂), reduto predileto dos poetas e artistas do Grupo VOU, eu tivesse em mãos o que Kitasono assinara e que, em 16 de abril de 1960, lado a lado com o plano piloto da poesia concreta, estaria exibido na entrada do citado evento.

 

Abril de 1960 - Por ocasião da inauguração da Exposição de Poesia Concreta Brasileira, no Museu Nacional de Arte Moderna de Tokyo, Kitasono proferiu sucinto, mas oportuno, discurso, transcrito no encarte Antologia de Poesia Concreta Brasileira, publicado pela revista mensal Design nº 27 (Dezembro 1961).

 

Julho 1960 – Conforme manuscrito, texto assinado por Kitasono intitulado Poesia Concreta Brasileira, traduzido pelo professor de japonês José Sant´Anna do Carmo, foi publicado na página Invenção do jornal Correio Paulistano de São Paulo (31.07.1960) juntamente com sua poesia menino na estufa, em tradução de Haroldo, com base no texto em inglês da publicação Japanese Literature, de Donald Keene, na mesma página da notícia sobre a Exposição de Poesia Concreta Brasileira no Museu de Arte de Tokyo (Abril 1960).

 

Setembro 1963 – Na minha tradução para o português, as poesias de Kitasono Caixa do poeta (VOU nº 88) e  Cenário branco (da antologia kemuri no chokusen), foram exibidas na Segunda Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, da Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte, organizada pelos poetas Affonso Ávila (1928-2012) e Affonso Romano de Sant'Anna (1937- ). Nesta exposição figuraram também poesias de Akito Osu (1920- ) e å°æž—ã€€è•—å­ = Kobayashi Fukiko (1937- ).

 

Junho de 1964 – Com uma de suas poesias, Kitasono participa da Exposição Internacional de Poesia Concreta, no auditório de teatro Sogetsu Kaikan, ao lado de obras de 28 poetas de cinco países, ocasião na qual a edição caseira de ç…™ã®ç›´ç·š = kemuri no chokusen, no original e em tradução de minha autoria para o português, foi distribuída ao público e lida pela poetisa Kyoko Torizawa e por mim.

 

Julho de 1964 – Tendo por base texto em francês da revista Le Lettres nº 31 (VII/IX.63), dirigida por Pierre Garnier (1928-2014) e sua esposa Ilse Garnier (1927-2020), Kitasono traduz para o japonês o Plano Piloto da Poesia Concreta Brasileira (1957) e o publica na revista VOU nº 95.

 

Dezembro 1965 – Na coluna Literatura/Diálogo do jornal O Estado, de Fortaleza, Ceará, o poeta e cineasta Eusélio Oliveira (1933-1991) informa ter recebido exemplar da revista VOU nº 95 e faz comentários sobre a tradução de kemuri no chokusen para o português

 

1967 - A versão inglesa de å˜èª¿ãªç©ºé–“ = tanchona kukan, de Haroldo foi incluída na An Anthology of Concrete Poetry, editada por Emmett Williams.

 

Julho 1977 – Às vésperas de deixar Tokyo e seguir para o Canadá, fui à Biblioteca da Faculdade de Odontologia despedir-me de Kitasono - não apenas o admirável poeta, mas também o amigo que ganhei no Japão. Reiterei meus agradecimentos pelo seu apreço pelo trabalho dos poetas brasileiros e dele recebi a antologia 白ã®ç ´ç‰‡ = Fragmentos brancos (1973), com a dedicatória:

 

à monsieur Vinholes, en hommage sympatique. Kitasono Katsue le 28 juillet 1977”.

 

Nas palavras de Kitasono, Haroldo foi lembrado como “o nosso amigo comum” e na hora da saída, por sua iniciativa, fomos para o terraço do prédio onde sua assessora, a poetisa Setsuko Tsuji, tirou a foto do nosso histórico aperto de mão, histórico porque não se conhece outra foto de Kitasono dando um aperto de mão.

 

Janeiro de 1983 - A revista Através, da Editora Martins Fontes de São Paulo, reproduz o texto bilíngue da edição caseira (1964) de ç…™ã®ç›´ç·š = ,, bem como a relação de suas antologias de Kitasono do período de 1929 a 1954 e sucinta cronologia do poeta.

 

SOBRE SEIICHI NIIKUNI

 

P3:  Quando e como você conheceu Niikuni pela primeira vez?

R3: Em 1963, Yasuo Fujitomi veio à Embaixada do Brasil e foi ele quem primeiro me falou sobre Seiichi Niikuni, tecendo comentários sobre a antologia ZERO-ON, publicada em setembro daquele ano. Dias depois Fujitomi voltou à embaixada e estava acompanhado por Seiichi Niikuni, poeta de Sendai há pouco chegado a Tokyo trazendo consigo sua coletânea, da qual presenteou-me o exemplar que muito me seria útil quando decidi traduzir seus poemas.

Neste dia, nos três tivemos uma longa conversa sobre a nova linguagem na poesia visual e sonora e sobre as relações entre poesia e a peculiaridade de diferentes tipos de arte plástica e da linguagem plural das expressões musicais. Mencionei o movimento da poesia concreta em São Paulo pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Expliquei como e por que, em abril de 1960, organizei a Exposição de Poesia Concreta Brasileia no Museu Nacional de Arte Moderna de Tokyo. Também lhes coloquei a par do projeto para organizar uma exposição internacional de poesia concreta, incluindo trabalhos de poetas japoneses. Nos encontramos inúmeras vezes até decidirmos colaborar um com o outro para a exposição no Sogetsu Kaikan (julho/1964), com a participação de 28 poetas de 5 países com apoio da Embaixada do Brasil e do Instituto Goethe. O Japão estava representado pelos poetas Katsue Kitasono, Yasuo Fujitomi, Toshihiko Shimizu, Niikuni Seiichi e Akiyoshi Miyagishi. É sabido que depois desta exposição Niikuni criou a Associação para Estudos da Arte da qual fiz parte ao lado de Hiro Kamimura, Yoshinobu Kagiya, Yasuo Fujitomi, Toshihiko Shimizu e Shutaro Mukai. Niikuni criou também a revistas homônima que muito fez pela difusão do pensamento concreto-visual e das ideias da poesia da segunda metade do século XX. Gostaria de registrar que, em 1966, de parceria com a esposa de Niikuni, a artistas plástica Kiyo Niikuni, criamos o poema-objeto Espiral, exibido na Galeria Cristal (1967), de Tokyo, e, mais de cinquenta anos depois, na exposição do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul (2018).

 

P4: Como você conectou Seiichi Niikuni ao exterior? (Como você o conecta à poesia concreta e à poesia visual?)

R4: Em meados de 1963, a revista Le Lettre º 32, publicou o Manifesto Poesia Internacional do poeta francês Pierre Garnier. Este manifesto foi assinado por poetas de 14 países inclusive o Japão, com Katsue Kitasono, Toshihiko Shimizu e por mim. Na ocasião por carta apresentei Niikuni e enviei alguns dos seus poemas. Garnier escolheu e publicou o poema “transmissão 9” no nº 33, de outubro/dezembro de 1964. Desde então, os dois poetas se entenderam, começaram a trabalhar e a produzir singulares poemas em francês/japonês, aos quais, plagiando uma expressão do mundo dos pianistas, passei a chamar de “poemas a quatro mãos”. Tais poemas passaram a ocupar as páginas das revistas que eles publicavam em Paris e Tokyo.

 

Com destaque, em uma das primeiras páginas da antologia Pierre, Ilse Garnier - Seiichi Niikuni (2016), excepcional obra de Marianne Simon Oikawa professora emérita de língua francesa da Universidade de Tokyo abordando o histórico e a obra destes poetas, está transcrita declaração de Garnier que diz: “La présence de Seiichi fut un des grandes événements de ma vie”. Sinto-me feliz e gratificado com o que Pierre Garnier afirmou e sou especialmente orgulhoso por ter sido o “nakodo[i] entre estes dois grandes poetas.

 

Com Niikuni foi com quem mais conversei sobre música e não apenas sobre poesia. Ele sempre mostrou ser bem-informado sobre as tendências da nova música produzida na segunda metade do século XX. Era interessado em conhecer as razões pelas quais eu havia abandonado a teoria dos doze sons de Schoenberg e criado minha própria teoria “tempo-espaço”. Fazia perguntas sobre as ideias que resultaram na minha Instrução 61 para quatro instrumentos quaisquer (revista Design nº 37, 1962), para criar música aleatória, apresentada pela primeira (31.12.1961) na estreia pelo Grupo de Música Nova Tomohisa Nakajima, de Tokyo.

 

Finalmente, é oportuno registrar que o poema “mizumi wo”, da antologia ZERO-ON, de Niikuni, em versão em espanhol baseada em minha tradução para o português, foi publicado na Argentina, na revista Cormorán e Delfín nº 3 (outubro/1966) editada pelo “poeta e capitão de um navio mercante” Ariel Canzani, sendo a primeira publicação de poema de Niikuni nas três Américas.

 

SOBRE NOIGANDRES

 

P5: Por favor, conte-me as histórias e memórias da época em que a Noigandres foi fundada.

R5: O grupo e a revista NOIGANDRES foram criados em 1952 por Décio Pignatari e pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, para servir como veículo de difusão de suas ideias e de suas obras, assim dando início ao movimento da poesia concreta, ao qual, mais tarde, filiaram-se Ronaldo Azeredo (1937-2006) e José Lino Grünewald (1931-2000). Como é sabido, noigandres é uma palavra que aparece em um dos poemas do trovador Arnaut Daniel (século XII), citado no Canto XX de Ezra Pound. A revista Noigandres teve cinco números, o último em 1962.

 

P6: Por favor, conte-me sobre suas lembranças dos irmãos Campos.

R6: Nos anos em que vivi em São Paulo de 1952 a 1957, poucas vezes encontrei aos poetas Augusto e Haroldo de Campos. Mas desde o final de 1959 foram inúmeras as vezes que troquei correspondência com Haroldo que, para mim, se tornou como que o arauto do grupo. Nas poucas vezes que estive em São Paulo durante os dez anos que vivi no Japão, sempre visitava Haroldo e Carmen, sua esposa e fotógrafa, e saíamos para conversar saboreando uma pizza no restaurante do bairro Pinheiro, onde eles moravam. Foi ali que, em uma das ocasiões, encontrei ao escritor e novelista peruano Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (1936). Os últimos encontros com Haroldo deram-se em Milão e Veneza, em 1996. Em Milão visitamos ao poeta argentino Tomas Maldonado (1922-2018) e, em Veneza, encontramos a Nanni Belestrini (1935-2019), organizador do Festival da Palavra do Festival Internacional de Poesia Contemporânea (junho/1997), do qual participei com Umberto Eco (1932-2016), com quem tive o prazer de compartilhar a noite de inauguração do festival, no dia 6 daquele mês.

 

P7: Por favor, conte-me sobre sua posição em Noigandres.

R7: Embora tenha saído do Brasil em julho de 1957 e contar com a amizade dos poetas e pintores concretistas, só conheci a revista Noigandres depois que cheguei ao Japão e comecei a planejar a exposição de poesia concreta brasileira. Para mim as revistas Noigandres e Invenção – também editada pelo grupo da poesia concreta –, foram importantes fontes de informação e estudo.

 

SOBRE VOCÊ

 

P8: Gostaria de saber sobre a relação ou ligação entre a sua poesia concreta e a sua música.

R8: As distâncias que separam poesia e música como linguagens parece ser grande, mas, na realidade, elas estão bem próximas uma da outra pois, de algum modo, são frutos dos que, em uma mesma época, se ocupam em usa-las e registrar o presente. Quando deixei o Brasil e fui para o Japão (1957) levava comigo uma bagagem de contestação. Depois de assimilar as técnicas e linguagem do passado e aprender aquela do dodecafonismo, a linguagem dos doze sons criada por Arnold Schoenberg, eu apresentara em três conferências públicas na Escola Livre de Música da Pró Arte de São Paulo, a teoria Tempo-Espaço, onde o silêncio, as pausas, eram usadas não como ausência de sons, mas como elemento estrutural da obra criada. A parte teoria por mim apresentada sustentava-se em duas pequenas peças que produzira como exemplo da viabilidade de aplicação dessa nova maneira de compor música. Para mim, estava superado o dualismo histórico europeu ainda presente na linguagem dos doze sons e igualados os valores do silêncio/pausa com os dos sons, como material composicional.

 

No campo da poesia, sai do sul do Brasil e cheguei em São Paulo com uma herança clássica na linguagem poética, mas com a pretensão de deixar o que fizera no passado e buscar uma maneira nova de usar a palavra como material fundamental e explorar o espaço do suporte papel, deixando para trás as regras da gramática e da sintaxe. Modesto exemplo desta tentativa foi o mini poema, de 04.07.1957, que dediquei à minha mãe.

 

 

 

sim

 

sem 

 

tu

 

 

 

 

tu

 

 

sem

 

mim

 

 

Minha estada em São Paulo, de pouco mais de quaro anos, permitiu-me vivenciar o fervilhar artístico-cultural que ali movimentava novas lideranças e novos caminhos na música, no teatro, na dança, nas artes plásticas, na arquitetura, no cinema, na literatura em geral e na poesia em particular. Ali encontrei a Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, futuros grandes colaboradores do que viria a fazer no Japão.

 

P9: Que comida japonesa você gosta?

R9: Nos primeiros dez anos em que morei no Japão, pouco a pouco experimentei todos os tipos da farta e variada cozinha japonesa. Frequentei restaurantes de norte a sul, de leste a oeste. Nunca esqueci as sazai degustadas em Enoshima e, quando voltava de Kansai nos dias de inverso, o saboroso nudol da pequena estação de Kumagaya, servido em um chawan de refinado artesanato. A experiência gastronômica no Japão mudou meus hábitos alimentares, fazendo com que eu abandonasse as frituras dando preferência a uma dieta mais sadia, sem sal e gordura.

 

P10: No Japão, onde você ia com frequência? Por favor, conte-me suas lembranças do Japão.

R10: Na virada das décadas de 1950/1960 o Brasil e o Japão trabalharam juntos para a construção de duas grandes usinas siderúrgicas: uma em Ipatinga, no estado de Minas Gerais, e outra em Tobata, em ampla área do mar aterrada, em Kyushu. Para tratar deste grande negócio foi criada a Comissão de Compras de Tokyo (CCT). Em 1959 passeia a trabalhar nesta comissão. Os membros desta comissão viajavam de norte a sul do Japão para encontrar aos engenheiros das mais de 40 grandes firmas japonesas envolvidas na produção dos dois altos fornos, dos laminadores, das máquinas e demais equipamentos das novas usinas de aço. Nos dias úteis, durante as viagens, minha obrigação era trabalhar para a CCT, mas nos sábados e domingos, eu tinha tempo livre. Era nestes dias que eu procurava aos poetas e artistas plásticos residentes nas cidades visitadas e a eles entregava os cartões de apresentação assinados pelos poetas e artista plásticos meus amigos de Tokyo. Foi assim que criei uma grande rede de contatos nas cidades de Osaka, Kobe, Hakata, Nara, Kanasawa, Toyama, Niigata, Sakata, Hiroshima, Toyonaka, etc. Esta rede de contatos foi sempre muito útil e até hoje me dá muita alegria.

 

              SEI QUE VOCÊ VISITAVA KAMAKURA COM FREQUENCIA!

 

P10-1: Lugares. Paisagens.

R10-1: São tantos os cenários inesquecíveis da paisagem no Japão que necessitaria de muito tempo e de muito papel para citar e descrever a cada um deles. Mas vou escolher apenas três: as paisagens às margens do Lago Ashi, próximo ao Monte Fuji, e as praias da costa do Mar do Japão na Península de Noto, onde estão as cidades de Suzu e Wajima.

 

Subi uma única vez até o cimo do Monte Fuji e de lá observei a exuberância da paisagem de montanhas, vilas, vales, campos de arroz, pomares, águas termais, etc. Para a praia de Shirahama, no Lago Ashi, em 1963, projetei o Jardim de Palavras utilizando vocábulos com a mesma sonoridade, mas que em japonês e português com sentidos opostos: æ„› = “ai”, amor / grito de dor /; 人間 = “ninguen”, ser humano, pessoa / nenhuma pessoa /; ç˜ “nada”, mar aberto, oceano, fonte de tudo (para o pescador/viajante, / nenhuma coisa, coisa alguma; e o monumento SOL com 12 repetições desta palavra que, colocadas lado a lado em um círculo, ganham a forma do “relógio do astro rei”.

 

Desde 1962 fui muitas vezes à Península de Noto onde, em Wajima, produzem belíssimas peças de laca e intensifiquei os contatos com os habitantes de Suzu, a cidade-irmã de Pelotas, minha terra natal, as primeiras cidades irmãs entre o Brasil e o Japão. Em 1963, na Escola Primária do Bairro Ohtani, entusiasmados meninas e meninos cantaram o hino que para eles compus com letra do grande poeta Iwamoto Shuzo (1908-1978). Como eterna lembrança, ali ficou, em indelével inscrição em pedra, o registro do meu sentimento para com a população daquele bairro:

 

            å‹äººã‚ˆ                                           Amigos!

                  ã‚‚ã—夢を見れã¯"                        se sonho

            夢ã«å¤§è°·ã‚’見る             sonho com Ohtani

           エル.ã‚·ï¼ ãƒ“ãƒ‹ãƒ¨ï¼ãƒ¬ã‚¹       L. C. Vinholes

                               1962.10.6                            1962.10.6

 

 

Convidado por Masuhiro Isumiya, prefeito de Suzu, em setembro de 2013, acompanhado de minha esposa Helena, participei da programação que comemorou os 50 anos dos laços de amizade entre Suzu e Pelotas. Em 1962, a Suzu dediquei o poema ç æ´²ã®èŠ±æŸ = Ramalhete de Suzu.

 

P10-2: Templos e santuários...

R10-2: Em Nara visitava com frequência o Todaiji e a Kasuga Jinjya.

No Todaiji fiz amizade com o jovem monge Washio, pernoitei em sua casa onde conheci sua esposa e aprendi muito com sua agradável conversa. Certa vez, quando em companhia de amigos da embaixada tive a eletrizante experiência de passar pelo buraco aberto em uma das principais colunas da monumental estrutura daquele templo. Na Kasuga Jinjya tive um grande amigo, Kanichi Kasagi, músico que me proporcionou mostrar minha habilidade e junto com ele tocar o sho, órgão de boca, durante cerimônia com a participação das jovens miko que performam as danças sagradas do Kagura nas shirines shintoistas.

 

Quando ainda era ryugakusei = bolsista e morava em Jyugaoka, fui muitas vezes a Kamakura para ver o Grande Buda, aproveitar da paz e tranquilidade do bosque Kotokuin que hoje inexistente, para ler, estudar e pensar sentado em uma das pedras redondas que serviram de base às colunas destruídas pelo maremoto. Fiquei amigo da proprietária da loja de suvenir e de suas colaboradoras. Uma delas, Yoshie Igarashi, reencontrei em 2013, quando, com minha esposa Helena e meus sobrinhos Luiza Helena e Luís Eduardo, visitamos o Grande Buda. Também era sempre um prazer levar os turistas brasileiros para visitar o templo shintoista Tsurugaoka Hachiman Jingu, com sua enorme escadaria e o famoso tronco da gingko, onde assassinaram o shogun Sanetomo. O escritor, filosofo e crítico de arte Mario Pedrosa, na época presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) foi um dos meus companheiros em uma das visitas à Kamakura.

 

P10-3: Restaurantes, bares, cafés…..

R10-3: Foram muitos os restaurantes que frequentei em Tokyo e em outras cidades de norte a sul do Japão, mas, infelizmente, não recordo os nomes. Não esqueci o café-galeria Fugetsu-do de Shinjuku onde encontrava muitos amigos poetas, assistia as projeções de filmes e ouvia boa música clássica ocidental, acompanhada de uma taça de chá ou café e uma fatia de bolo blackforest. Também em Shinjuku frequentava o café Moku-ba, onde, entre outros, encontrava a Emi Hatano, estudiosa profissional da creative dance, aluna de dança do Estúdio de Masami Kuni (Kunibuyokenkyujyo), onde morei meus primeiros meses de Tokyo; e ao clarinetista Sadao Watanabe que se interessou pela bossa nova, visitou o Rio de Janeiro e tocou com músicos brasileiros.

 

P10-4: Sebos

 R10-4: Sempre que tinha alguma economia, visitava os sebos de Kanda e de Roppongi onde adquiri dezenas de livros sobre o Japão, em japonês, inglês e francês, que muito me serviram para meus estudos relativos ao gagaku, música tradicional da corte japonesa, e também a valiosa coleção e The Tourist Library, edições de 1934 a 1942, da Japanese Government Railways. Em Roppongi também encontrei o antiquário de Masao Hara com quem muito aprendi a respeito das cerâmicas imari, kutani, nabeshima e sobre a ukiyo-e. Em setembro de 2013, como gesto de gratidão para quem foi um grande amigo, visitei pela última vez o antiquário que me deu oportunidade de adquirir grande parte do que em 2011 e 2012 doei ao Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo de Pelotas.

 

P10-5: Museus

 R10-5: Não perdia as oportunidades de visitar aos museus de norte a sul e de aprender muito com a imensa variedade do que apresentavam, abrangendo todos os períodos da história da cultura japonesa. Mas meu interesse maior estava no que era apresentado pelas galerias, mesmo pelas mais pequenas e modestas. Ali é que eu encontrava a produção contemporânea e a dos jovens japoneses, nelas é que eu ficava sabendo quais as tendências estéticas que mais a eles interessavam. Era o Japão das décadas de 1950 a 1960 que também me interessava muito.

 

P10-6: Pessoas...

 R10-6: Conheci tanta gente que é impossível fazer uma escolha. Mas para não decepcionar, vou citar a uma pessoa da qual não recordo o nome, mas da qual sempre lembro. Sua residência ficava a pouco metros da entrada do templo do Grande Buda. Era apenas uma porta que dava acesso ao interior da casa. Sentado sobre uma almofada, fabricava bonecas de madeira (kokeshi) e belíssimas lanternas (chochin) que ele mesmo pintava e coloria. Era muito curioso, fazia muitas perguntas, demonstrava que tinha cultura e se interessava por diferentes assuntos. Não foram poucas as vezes que me oferecia uma acolhedora taça (chawan) de chá japonês servido por sua esposa. Com ela pela primeira vez tomei o mugicha. Ela confidenciou-me que, há muito tempo, usava um colete para minimizar as dores que sentia na coluna. Na última viagem ao Japão, em setembro de 2013, fui procurar pelo amigo-artesão, mas nem mesmo os vizinhos tinham notícia para dar.

 

SOBRE SEUS AMIGOS NO JAPÃO (VOU MEMBROS)

 

P11: Suas lembranças de Yasuo Fujitomi.

R11: Em 1963 Yasuo Fujitomi procurou-me na embaixada do Brasil interessado em obter a legislação brasileira relativa aos árbitros de futebol, pedido posteriormente atendido pela Federação Brasileira de Árbitros. Todos sabem da sua proficiência na língua inglesa, tendo enfrentado com êxito o difícil trabalho de tradução dos poemas de Ezra Pound e de e. e. cummings. São também conhecidas e apreciadas suas biografias de Kitasono e Eric Satie.

 

Durante muito tempo, antes e depois da I Exposição Internacional de Poesia Concreta (1964) no Sogetsu Kaikan, Fujitomi e eu procurávamos uma aproximação entre Kitasono e Niikuni, levando em consideração a importância das ideias e dos feitos de ambos para a poesia japonesa da segunda metade do século XX. Mas nossos esforços e nossas estratégias nunca tiveram o resultado por nós esperado, mas nós sempre levávamos em consideração a hipótese da não concretização de nossa pretensão, pois reconhecíamos que Kitasono tinha um nome e uma história consolidados e Niikuni uma trilha que começou firme e que sempre foi promissora. Acompanhando a trajetória de Fujitomi por mais de meio século, permito-me registrar que sempre tive a impressão de tratar-se de um poeta e intelectual de ideias próprias que nunca se permitiu pertencer a um determinado grupo de poetas. A todos respeitava, com todos tinha as melhores relações, mas sempre com independência.

 

O interesse de Fujitomi pela poesia concreta brasileira e seu papel no surgimento da poesia concreta no Japão foram por ele reconhecidos. Em carta de 15 de abril de 2001, antes de viajar à Colômbia para dar conferência no XI Festival Internacional de Poesia de Medellin (01 a 10.06.2001) sobre o tema The concreter poetry and the Visual Poetry in Japan, escreveu: “The organization of this festival, ask me to give lecture about Japanese concrete poetry” ... “I must talk about you who introduced the concrete poetry to Japan and should like to explain by projecting the slids” … “If you were there in Medellin, I’d have been happy”. Registro que meu último encontro com este grande poeta e amigo foi em setembro de 2013, em sua residência nas Colinas de Midorigaoka, em Tokyo. Naquele dia, ao lado de tantas recordações, Fujitomi disse que não se conformava de não ter podido visitar o Brasil e, brincando, de não conhecer o Maracanã.

 

P12: Suas lembranças de Shohachiro Takahashi. 

R12: Conheci a Shohachiro Takahashi (1937-2014), mas nossas relações não foram intensas como foram as com outros poetas da sua geração. São coisas da vida sobre as quais não temos domínio. Senti profundamente a notícia do seu falecimento em maio de 2014, quando o Japão perdeu um dos seus mais insignes poetas, autor de tendência surrealista, mas também de tradicionais tanka e haiku. Recordo que em meados da década de 1970, na minha segunda estada em Tokyo, a poesia de Takahashi, abordando os mais variados temas, ganhou significativa aceitação.

 

P13: Suas lembranças de Toshihiko Shimizu.

R13: Toshihiko Shimizu foi um dos mais presentes parceiros que tive no Japão, sempre com sua elegante e inseparável boina. Nos conhecemos no café-galeria Fugetsu-do e quando, em 1963, criaram o boletim com a programação mensal Shimuzu assinou o texto de apresentação comentando meu poema de . a .  publicado no boletim de fevereiro. Com ele e Kitasono, assinamos o manifesto “Posição Internacional” apresentado por Pierre Garnier e pulicado na revista Le Lettre nº 32 (abril/junho de 1963). Assim como Niikuni e Fujitomi, foi um dos grandes colaboradores na organização e divulgação da I Exposição Internacional de Poesia Concreta (1964) realizada no Sogetsu Kaikan. Duas de suas pioneiras obras poéticas utilizando Scotch tape e intituladas 文字絵画 = “letter-picture” A-1 e B-2 chamaram a atenção do público e foram publicadas na revista ASA nº 1, da Associação para Estudos da Arte da qual foi-membro fundador. É o autor do pertinente ensaio Language and Contemporary Art (言語ã¨ç¾ä»£ç¾Žè¡“) publicado na revista ASA Nº7 (1974). Com uma “letter-picture” participou da exposição mista de pintura e poesia da Sociedade Internacional de Artes Plásticas Áudio Visuais (ISPAA), juntamente com um poeta da Alemanha, Escócia e Suíça, três do Japão e quatorze do Brasil. Em carta circular de 25 de fevereiro de 1979, informou oficialmente a dissolução do Grupo VOU, até então presidido por Kitasono, anunciou a criação da Publishing Association que tinha como projeto financiar e publicar uma coletânea de artigos e ensaio sob o título The World of Kitasono Katsue, e, como colaboração, solicitou uma mensagem de Haroldo de Campos, o primeiro poeta brasileiro a ter contato com o saudoso poeta japonês.

 

P14: Suas lembranças de Motoyuki Ito.

R14: Nem sempre se faz aquilo que se gostaria de fazer. Nem sempre se tem os amigos que se gostaria de ter. Neste segundo caso incluo a relação que tive com o poeta Motoyuki Ito. Tivemos raros encontros, mas a impressão que ficou foi a de que nunca esquecemos um do outro.

Uma das notícias mais belas que tenho deste amigo está no que ele escreveu à Keiko Onoda e que dela recebi em mensagem de 8 de janeiro de 2019 que, respeitosamente, transcrevo a seguir:

 

 “About Vinholes-san’s exhibition’s information, I thank Keiko so much. When Vinholes-san was in Japan, he kindly, often, sent me invitation letters of “Concrete Poetry”. But different from Seiichi Niikuni and Yasuo Fujitomi, who had reacted to the movement, we were crazy about “Camera" at that time, and I feel very sorry we didn’t answer the invitations. Upon the reflection and reglet, I thank Keiko for being able to see the pioneering, great works of Vinholes, now again!!! ”

 

 

Comentarios

Maria do Carmo Maciel Di Primio  - 09/10/2023

Prezado professor e amigo Vinholes.
Os seus textos, que são verdadeiras aulas de cultura, não basta uma leitura. Há que ler, reler, pesquisar e reter as informações preciosas.
Gostaria muito de estar, na ocasião, no CAFÉ-GALERIA FUGETSU-DO de Shinjuku. Fiquei imaginando a atmosfera do local !!
Abraços fraternos da Maria do Carmo

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