Nelsinho era o real nome do Branca de Neve.
A gente o conhecia como Nelsinho, o namorado da Mari, nossa prima que morou um tempão conosco, na Bela Vista.
O Nelsinho era o tocador de bumbo de um grupo chamado Originais do Samba, que tinha como estrela o famoso Mussum, dos Trapalhões.
Em 1979, 80, por aí, a Mari veio morar com a gente.
Era uma mulatona bonita, rosto afinado, nariz maravilhoso.
Gostosa, gostosa pra CARALHO!
Mas fresca, fedida, arrogante.
Ela ficou com minha cama, que estava no quarto de minha irmã, e eu desci para o “subsolo” da casa, dividindo o quarto com meu irmão Paulo. Aquele negão, lembra?
Minha família era de negros.
Por vontade.
Mas éramos todos, eu inclusive, apesar de branco adotado, mulatos.
Então, por sermos negros, ouvíamos música de negros.
E como se ouvia música naquela casa!
A discoteca da negrada, minha família, tinha papa-fina:
Sinhô (disco dado de presente por meu padrinho Odair, o pai-de-santo), Frank Sinatra, Ray Charles, Aretha Franklin (a negrada gringa quem trazia era o meu irmão Paulo, já que minha irmã era uma besta-quadrada para música gringa. Aliás, ela sempre foi uma besta-quadrada para muitas coisas. Ela tem, hoje, 47 anos. Eu tenho 10 a menos.), Stevie Wonder...
James Brown (de um disco que o Adilson deixou em casa, que eu pedi pro Adarowilson, priminho dele, me deixar ouvir. Eu era amicíssimo do Adarowilson, que foi morto ao tentar roubar um toca-fitas do carro de um policial civil. O Adaro, primo da Sandra Lídia, a neguinha que era minha vizinha e prima por consideração, aquela que queria dar pra mim mas era feia demais e louca demais. Era era filha da dona Zinha, que tinha um português impecável mas que bebia pra caralho, junto com o marido, o Dalton. O Dalton morreu de tanto beber, ela morreu do mesmo jeito, anos depois).
Quando tinham as festas, que diz a lenda que meu pai parava a rua, chovia disco no prato. Era costume o pessoal aparecer trazer discos, que rolavam de montão.
Muito, muito disco mesmo, caixas! E sempre sobrava uma coisa ou outra, que alguém esquecia, ou deixava de lado por preguiça, junto com guarda-chuvas, cigarros, óculos escuros (negrão sem óculos escuro não tem presença, era mais fácil pegarem de volta os óculos do que os discos).
E nessa atualização, chegava um dia em que a sala ficava entulhada de discos.
E eu fazia a festa!
Luis Airão, Wando em começo de carreira, Jorge Bem (A Táboa De Esmeralda, nunca me esqueço desse disco), Luis Melodia (a negada não ouvia direito, era esquisito), Elza Soares (não saía da vitrola), os próprios Originais do Samba (Assassinaram o Camarão, sucesso da época), Lady Zu, Biafra (sei lá o que ele estava fazendo lá), Conde E Drácula (Eu Não Quero Mais Pepino, eu ganhei do programa do Chacrinha!), Milton Nascimento (soltando a voz nas estradas), Bebeto (minha irmão gastou o disco de tanto ouvir), Marku...
A lista é enorme, tá faltando.
A Mari namorava o Nelsinho e ele deu pra gente um disco de capa azul. Eu peguei, olhei e tava lá a cara do negão. Ele tinha uma cicatriz no lado direito do rosto, picada de pernilongo que deu infecção, quando ele era menino. A mesma marca que tinha o falecido Estevão Sangirardi, do Show de Rádio. E no mesmo lugar.
O Nelsinho tinha rompido com os Originais.
Na verdade todo o grupo rompeu com o Mussum, por causa de sapatos: o Mussum ganhou centenas de pares de sapatos de uma fábrica aonde eles fizeram show, e não deu um pé para ninguém do grupo.
O grupo se revoltou e mandaram o negão ANDAR!
Formaram o grupo “Os Originais”, cujo samba era fraco, tocaram no Raul Gil, antes deste sumir. Mas faltava swing.
O Nelsinho gravou um disco solo. O “Branca Mete Bronca”. Grava músicas do Jorge Bem e namora a Mari.
O Nelsinho morreu de causas misteriosas e naturais um ano e pouco depois de lançar o seu primeiro disco.
Eu me lembro da cara do negão: comprida, voz rouca, ele não podia gritar senão perdia a garganta. Gente boa, me tratava bem, ria bastante mas, quando ficava sério, era uma esfinge.
Mari se casou com um cara desprezível aí e foi exercer farmacologia, que ela estudava pra isso.
Saí de casa, me casando com a japa, e a decadência começou.
Meu irmão Paulo, morreu, depois de se casar com uma negrona feia, gritona, histérica, mãe de três filhas de pais diferentes e mãe-de-santo. Dizem que o terreiro dela é lindo.
Meu pai morreu de infecção, uma morte sonolenta e horrivelmente deprimente, já que ele era um colosso de respeito na negrada.
Minha irmã trouxe pra dentro de casa meu cunhado, o Zizo, metade parasita, metade sambista, metade grosseria, metade tamanho gigante. Ele tocou no exterior, gastou cinco passaportes. No final, perdeu tudo que juntou por causa de uma mulher que o deixou meio louco de paixão e o usou.
A discoteca da negrada virou um monte de disco velho, sem graça, inexpressivos.
Um dia eles levaram os discos para baixo do sobrado e, numa enchente, muito se perdeu, estragou, embolorou. Mesmo a coleção de música clássica encadernada, as coletânias de samba da Abril, tudo foi destruído.
Devagarinho, com a chegada de meus sobrinhos e minha saída, os discos foram sendo substituídos por fitas-cassetes piratas e CD’s do Exaltasamba.
E o Nelsinho virou marco no samba-rock.
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