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Poesias-->O estrangeiro -- 19/01/2004 - 17:21 (Ricardo França de Gusmão) |
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Não faça poema na cidade dos outros.
A cidade dos outros não te pertence.
Não chegue John Wayne montado em um cavalo
Vindo assim mocinho-bandido forasteiro
A desafiar os xerifes nos saloons e nos societys
Da província.
Há um pórtico na entrada e outro na saída
Com câmeras assustadas a vigiar
Aqueles que chegam
E uma placa mentirosa dizendo “bem vindo”.
Nesse momento, sorria, que você estará sendo filmado,
Ardilosamente fichado, checado, catalogado,
Nesse sistema ovo.
Entre as faces decoradas deste povo
O teu rosto atômico de cidadão universal
É indolente e cativa uma experiência misteriosa
E ameaçadora.
Portanto, haja como um turista ocasional: sorria,
Peça informações, disfarça.
Não diga de onde veio, pois isto será checado.
Na cidade dos outros existe uma rede conectada
Uma classe social decadente ameaçada
Uma casta pseudo-intelectual carente de atenção
E uma situação carnavalesca tosca
Em meio a essa imensa papagaiada.
Mas isso tudo, para eles, é coisa muito séria.
Existem outros toscos igualmente bregas:
Seriais killer de ídolos locais generais trovadores
Com medalhas na pele incrustadas rugas
Poetas deuses de salada russa
Prosaicos senhores auto-intitulados de qualquer coisa.
Caras de pastéis condecorados com
me(r)dalhas, me(r)dalhinhas, me(r)dalhões.
Há muitos desses senhores na cidade dos outros:
Os senhores de qualquer coisa
Que para eles é muita coisa
Uma grande coisa
Ser uma coisa
Mesmo que essa coisa
Seja coisa nenhuma.
Isso é mais um título ensimesmado
No currículo quilométrico desses patéticos.
Crie uma forma de participar não participando
De estar não estando
De ser cidadão no varejo sem virar notícia.
Na cidade dos outros não há o que ensinar
Pois eles já sabem tudo do mundo exterior
E dos peregrinos ciganos e dos viajantes
Turistas de tempos sazonais sem direito a voto.
Há de se respeitar o profano
E as sacanagens por debaixo dos panos
Desses poetas municipais.
Mesmo que só saibam rimar
AABB, ABBA, ABAB,
Em quadrinhas bonitinhas, parabéns pra você.
Mesmo que a Semana de 22
Ainda não tenha acontecido lá,
Na terra dos malditos parnasianos.
Mesmo que os trovadores continuem
Distribuindo troféus entre si
Em concursos semanais nos anais
Das academias bairrenses.
Há de se respeitar a mesmice estética
Pois a mesmice é patrimônio deles,
Passada de geração a geração
Como uma aberração genética.
Ande esguio pelas ruas, vai pela sombra
Sob as marquises mas sequer pise
Nos acumulados de bosta e de cocô
Produzidos pelos cachorros da cidade dos outros.
Esta parte também a eles pertence
E a bosta exposta é protegida por lei municipal.
Evite fazer xixi nos postes de madrugada
Pois os postes são os pilares do reino
Engalalado
E os postes só põem ser devidamente molhados
Pelo líquido aromático dos caninos de rua
Nascidos na jurisdição da cidade dos outros.
Lembre-se do cão herói pedregulho sentado,
Êta orgulho besta, meu Deus!
Mas não beije sequer a mulher da cidade dos outros
Pois o beijo será bandido e caçado,
A culpa será taxada placa em sua testa:
“transgressor”!
Mas se em um dia de emputecimento
Você acordar violento
Acusado, acossado e acuado
Por “insubordinação mental”,
Bebe um trago de pinga, solta a língua,
Mostra aquilo roxo,
Faz sinais violentos com os dedos das mãos
Esculhamba os bons costumes,
Torce contra o futibolense,
Cospe no chão da cidade dos outros,
De preferência nas estátuas de seus ídolos
Ou nos carpetes da prefeitura,
Desdenha dos ancestrais e escarra
nos túmulos dos cemitérios municipais
e depois coma a cona, a dona, a mulher casada
a mais amada ou a mais puta
mas coma m esmo a filha da puta
e após o coito deixe o seu corpo usado inerte,
corpo morto nesta guerra intermunicipal
corpo usurpado da noite nupcial
corpo suado sugado por um forasteiro
corpo de rapariga que amanhã
talvez, produza, no dorso de uma nova geração
o filho miscigenado
a cria, a criação, o filho-poesia
de uma nova sociedade,
uma criança do tamanho de um país
órfã de um poeta que foi por aí
a fazer mais filhos nas cidades dos outros.
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