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Cronicas-->A senhora da ladeira -- 31/01/2003 - 13:16 (Aruanã Bento) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Foi o pé esquerdo esquentar para ela acordar. Ainda bem que tinha esse despertador pois o seu, com ponteiros e sineta, estava rouco faz tempo. Deixou ele de folga alguns dias, pós para tomar banho de sol, mas não era só aquela senhora que envelhecia na casa da ladeira, seus pertences e lembranças também sumiam na poeira. Pisou na tábua solta da sala e falou sozinha que precisava consertar isso antes do natal, igualzinho da primeira vez há oito anos. Apanhou um punhado de grãos e jogou pela varanda, misturando a outros muitos antigos que estavam ali. Via seus passarinhos todos os dias, um grupo que a acompanhava desde a época que tudo era roça: bem-te-vis, arapongas, quero-queros, azulões, até tucano tinha. A última empregada foi mandada embora por causa deles, uma vez tentou varrer as migalhas e espantou-os por muito tempo. Ainda bem que voltaram.
Ligou seu rádio a válvula enquanto estava na cozinha. Arrancou o botão para nunca mais ninguém mudar de canal - só a 1280am tocava suas músicas - pouco importava se a estação já havia sido desativada. A chiadeira lembrava o bonde passando e no meio do barulho ouvia o locutor Otaviano Frota, que tantas vezes a deixou suspirando com seus galanteios. Dedicou a ela a primeira música do dia e continuou contando sobre suas viagens pelo inimaginável. Lembrou a senhora que não gostava de café forte e de torrada dormida e havia escondido o fósforo fazendo-a perder um tempão procurando. Sob assovios do moço, mudou a camisola rosa e as meias amarelas de flanela pelo vestido quase sem cor, sentou na porta dos fundos junto com o litro de cloro; passava a química entre os dedos e no joanete para matar germes e frieira. Ouviu os moleques saírem na rua para começar a pelada e ouvia suas matraquices infantis imaginando ser este o linguajar de hoje em dia. Lembrou o quanto era bom ser criança, como era bacana ver futebol com o pai.
Não tolerava semvergonhice e podava as plantas todo dia. Quem mais dava trabalho era a trepadeira que sismava em cruzar as folhas com qualquer um, então arrancava-a e explicava pacientemente sobre decência e pudor. O camarão também havia aproveitado a noite fresquinha para se engraçar com a samambaia chorona, não entendia quando era sentimental a planta para entender suas libidinagens. Apesar do balé dos lírios e da lábia da papoula a atenção da velha estava voltada para a Orquídea. Era sua hóspede mais nova e mais frágil. Contou a ela que veio da Europa, onde era princesa, no bico de um de seus passarinhos e foi jogada ali pois fugia da inveja da corte, coitada dela, merecia ser feliz. Fez chá de cebolinha - achando que era capim limão - para comer com bolachas água e sal, mas antes precisava ver o que havia caído no quintal. Era a bola. Os meninos vão pular o muro. Se escondeu atrás da parede azul toda descascada pronta para a traquinagem. O fedelho pulou com seu short desbeiçado e joelhos ralados, indicou para os outros que podiam subir e logo, como guerreiros na trincheira, as cabecinhas iam uma-a-uma surgindo no muro. O terceiro, amedrontado, pulou entre as roseiras. Ela queria brincar também, era boa de queimada e bandeirinha, mas estava nervosa, não lembrava nada para falar, então arriscou repetir o que eles mais diziam durante a semana quando jogavam bola: "Se ficar de onda vou quebrar sua perna"; "Sai voado seu bucha" . Pena que não ficou nenhum no quintal para comer seus biscoitos.
Junto com a escuridão da noite veio uma imensa vontade de deitar e o vício de fazer tricó. Adiantou o banho ao som de Noel Rosa, trancou a mesma porta de madeira 3 vezes e continuou com as roupas no varal achando que ainda não estavam secas suficiente. Um e dois dentro, três e quatro fora, gira e dá nó, ágil com as agulhas fez meias, gorrinhos por muitos anos pra muita gente, agora havia decidido confeccionar a seu gosto e estocava mais de vinte centros de mesa da mesma cor e formato. Tudo seria igual ao outro dia tão igual se os cupins não tivessem comido a última sustentação da tábua solta, injustiça com a senhora que não se importava de almoçarem as cadeiras e móveis. Estava na hora de dormir, porque teimava tanto em se deitar? Agora, com a pancada, não podia se mexer nem pensar, enfim chegava ao fim. Adeus à todos, sentiria saudades. Já podia ouvir a marchinha de despedida de Otaviano e suas súplicas apaixonadas. Mas quem irá acordá-lo de manhã? Ainda queria casar com ele. Os pássaros morrerão de fome e sede, as plantas treparão no quintal a luz do dia, o que dirão os vizinhos? Além do mais a Princesa Orquídea tem que se recuperar... Os garotos! Precisam da bola. Sem bola não há infància. Isso não pode ficar assim. Reuniu seus últimos esforços, abriu os olhos, espanou a poeira, passou cloro no roxo da perna e foi dormir. Envolta em lendas a velha da ladeira continua viva, vendo gerações passarem e o mundo dar outra volta. Mais que a disposição como jardineira, mais que a expectativa de receber visitas ou a insistência de manter tudo em ordem, é gostar de viver que a faz seguir, mesmo que para isso precise passar o resto da vida sonhando acordada.
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